Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 8: Treino ante as sombras

Meu corpo foi jogado ao chão imaginário de um lugar inexistente. Levantei e encarei meu adversário assim como mentor. Avancei e tentei um soco, mas tudo o que eu fazia era inútil.

Bloqueios, desvios e contragolpes… e nem parecia cansado.

Um chute impactou no meu peito, a força era diferente de tudo o que eu senti até então. Tentei me levantar mas o pé dele me manteve preso naquela posição.

E agora? O que fará?

Não havia Energia ao redor, nem havia algo que pudesse ser usado. Estava claro que eu teria de prosseguir com minha própria força. Com esse pensamento que usei todos os anos de treino e empurrei o chão abaixo, a força tirou o pé dele por um instante e fui rápido em usar daquele fato.

— Toma essa!

Meu golpe foi antecipado de novo e o Espectro deu um forte soco no rim, o ataque me paralisou e me deixou no chão. O seu pé foi até minha mão e começou a quebrar um por um meus dedos.

E? Já está desistindo? perguntou enquanto prestava atenção especial no meu dedão, tendo a certeza de torcer para triturar melhor meu osso. — Como todos antes de você, tu é fraco demais. Seu pai foi a mesma coisa… um escravo até o dia de sua morte. E você não é diferente.

— Tá espiando minhas memórias, seu merda… — grunhi e então gritei de dor quando a sola do pé pisoteou meus dedos fraturados.

É difícil não olhar. Tu não tem defesa nenhuma… — Ele então se afastou enquanto olhava para o horizonte vazio, nenhum de nós sabia o que falar. — Você é um escravo das suas promessas, alguém que só vive no passado, e, um dia, isso vai se voltar contra você. Meu trabalho é ter certeza que esteja pronto para isso…

Olhei para o Espectro, raiva e confusão me perturbavam. Nada fazia sentido com aquele cara, uma hora estava me insultando, a outra estava querendo me ajudar… E o pior de tudo era que ele me odiava. Eu podia sentir isso dentro do meu âmago… pois eu também o odiava.

Não era apenas os insultos nem a arrogância, mas sim algo mais simples, instintivo. Eu só tenho vontade de socar a cara dele sempre que o vejo… eu não suporto a presença dele.

É quase como se me olhasse num espelho que só reflete o que há de pior em mim. Tenho ânsia de vômito só de estar no mesmo cômodo, e o fato de que estamos ligados eternamente só me trazia miséria.

Talvez aquilo me tornasse uma pessoa ruim, mas não me importava com isso. Se eu me preocupasse com o que pensam de mim, nunca poderia ser um Portador.

— Agora suma… só para garantir que você não vai tentar se mover, vou desligar suas funções motoras. Pense nisso como um castigo.

Voltei para a sala de enfermaria e tentei me mover mas meu corpo não respondia. Enquanto estava lá, percebi que não conseguiria o que eu queria e amaldiçoei o desgraçado.

Enquanto a raiva crescia, ouvi a porta abrir e vi um homem, vestido com um uniforme negro e com as condecorações de capitão. Ele mais parecia uma boneca com a pele de porcelana e os olhos frios.

Eu ouvi rumores de um Dhampir liderando um esquadrão único na polícia secreta mas não imaginava que era verdade. Os olhos amarelos me encontraram e senti um calafrio percorrer meu corpo imóvel.

— Então esse é o Portador de Davi… — Uma voz comentou ao lado dele, uma garota com orelhas de gato e cabelo negro preso num rabo de cavalo. Uma Nekomata e Cabo do mesmo esquadrão.

O Capitão caminhou lentamente até a minha cama e se sentou numa cadeira enquanto me olhava com aquela mesma frieza, como se eu fosse um sapo numa aula de anatomia.

— Vou lhe explicar as regras só uma vez, então preste atenção. Primeira, aqui temos uma hierarquia e vai agir com respeito a todos os Cabos ou acima. Segundo, não quero você saindo daqui por conta própria. Falhe em agir de acordo com a segunda e vai morrer.

Tentei responder mas tudo estava trancado. O Dhampir estreitou os olhos e saiu da sala junto a Nekomata. Enquanto via isso, só pude pensar na situação de merda que eu estava.

Quis gritar e chorar. Senti lágrimas descendo dos meus olhos assim como a irritação que os assolou. Quis coçar eles mas não podia me mover…

Quis dormir, mas a luz ligada não permitia…

Ali eu fiquei enquanto esperava alguma coisa, algo que me tirasse daquela situação.

Amaldiçoei tudo e todos, desde meu pai, que me colocou nesse inferno; Zozolum e Shiki que apenas queriam ajudar; Nick, aquele que me deu esperanças de uma vida melhor…

Eu já havia desistido de um milagre. Nesse mundo, os fortes são os que tem direito de fazer algo e nada muda isso… não podia fazer nada com esse meu coração mas não tinha força para o descartar. Só podia esperar que continuasse firme numa luta sem salvação.

Conforme me afundava no abismo eu senti uma presença próxima. Não me dignei o esforço de observar ela, apenas queria morrer.

— Que situação, meteu em, Lewnard… — Ótimo, Zozolum estava aqui… mais um para me olhar com pena e decepção. Já estava me preparando para a bronca que viria por perder. — Quer salvá-la? — Óbvio que quero… mas não posso fazer nada enquanto estou preso aqui.

Observei de relance a mão dele se aproximando da minha forma desacordada e um círculo mágico aparecer ali. — Entre os inúmeros títulos, tenho, só esse importa. Sou o Rei da Abjuração. — De imediato meu corpo recuperou a força que tinha e eu me levantei assustado.

— Mas… mas eu…

— Antes que, procurar ela como, cachorro louco, tenho que pedir, treine. — Ele me mostrou um papel nas mãos e então escondeu ele de mim. — O inimigo, um Lobisomem poderoso… temos três dias para aumentar teu poder, falharmos, Grace vai morrer.

Aquilo me parecia conveniente demais. Meu adversário provavelmente achou que eu me recuperaria em menos de três dias e deu um prazo fixo. Com o dia que perdi na cama, não podia mais gastar tempo e me levantei.

— O que estamos esperando? Vamos!

Zozolum riu e então permitiu que as sombras me puxassem por um buraco no chão. Agora que eu conseguia sentir a Energia Astral que eu conseguia ver aonde elas me levavam. Antes apenas existia uma ausência de racionalidade e sensações nelas, mas agora… eu consigo ver tudo que se passa na cabeça delas e isso me deu mais confiança do que nunca.

Assim que paramos, vi uma sala negra, com as paredes derretendo em sombra. Era tão extensa que mesmo os meus sentidos não conseguiam ver o final dela.

— Temos 64 horas. Essa sala é um espaço de treino pessoal meu, que transformará essas 64 horas que temos lá fora em 64 dias aqui dentro… — Notei que ele abandonou o padrão de fala e meus olhos capturaram o sorriso dele.

— Nós bruxos temos um contrato com o Plano Astral. Abdicamos nossa liberdade de fala normal e traduzimos isso para algo que representa nossos elementos. Isso nos dá o poder de nos tornar parte do elemento sem arriscar o recuo que vocês, usuários normais, tem. Aqui, no entanto, é uma dimensão que essas leis não se aplicam…

Por mais fascinante que aquilo pareça, sessenta e quatro dias passam rápido e precisava ficar mais forte, por isso, começamos o treino com intensidade. — Primeiro, vou te colocar para lutar comigo até desmaiar de exaustão. Consegue me acompanhar, Portador de Davi?

Assim, começamos o treino infernal da melhor forma que poderia pedir. Ambos fomos um contra o outro e, quando nos encontramos no meio, tentei um soco carregado de energia, mas que foi interceptado com apenas a mão nua do meu mentor.

Aquilo me deixou surpreso mas ainda conseguia lutar então, com toda a minha agilidade, tentei diversos Jabs e cruzados, mas nenhum deles teve qualquer efeito. Cada golpe era defendido com maestria por aquelas mãos.

— Como?

Zozolum sorriu e contra-atacou com um forte soco no meu peito. O golpe foi tão forte que meu controle escapou e eu me contorci no chão. — Seu controle é uma porcaria. Você também se foca demais num aspecto do oponente apenas. Quando você luta está sempre olhando para meus olhos e calculando meus próximos movimentos. Algo bom mas que ainda te impede de ver o resto.

Ao falar isso ele permitiu que pequenas explosões de Energia Astral escapassem de sua mão direita. — Eu estou aplicando uma versão mais fraca do “Canhão Astral” para bloquear seus golpes. Duas forças iguais quando se encontram são anuladas. Isso é especialmente verdade com a Energia Astral.

— É mesmo… já tinha me falado isso. Em um embate de Energia Astral, o golpe mais poderoso absorve o mais fraco e usa o poder liberado…

— Exato. No entanto, você é um lutador a curta distância. Se eu usasse esse método, ficaria sem energia e você me superaria uma hora ou outra, ou talvez eu não consiga enfrentar um inimigo mais para frente. Quanto menos consumo você tiver, melhor.

Acenei e me levantei com um soco pronto. Dessa vez, tentei usar meus sentidos e não pensar em nada, aplicando as lições do Espectro enquanto o fazia. Vi cada flutuação da energia de Zozolum, e o que ela significava.

Notei que meu corpo agia por instinto e a energia buscava ser liberada contra energia semelhante mas não a deixei me controlar. Não podia me cansar demais e teria de aumentar minha eficiência.

Uma vantagem de não pensar em nada era que eu comecei a aprender mais sobre como a Energia Astral se comporta numa luta. Assim que cai pela décima sétima vez e não consegui me levantar mais, Zozolum me pôs a refletir sobre a luta e eu me peguei notando mais e mais isso.

A verdade era que eu conseguia prever o próximo movimento dele apenas observando e sentindo como meu poder interagia com ele. Após um tempo de descanso, senti que minha conexão já podia ser usada sem riscos e coloquei meu esforço em meditar.

Lembro de como isso me ajudou a sentir a Energia, então, talvez, também me ajude a melhorar meu controle. Conforme sentia meus arredores, percebi que não estava só.

Sei que pensar não é muito seu forte e odeio ser quem aponta o óbvio, mas o controle vem de dentro.

— Me deixa.

Credo, tá brabo? Só porque eu te fiz de gato e sapato? Se eu soubesse que perder a liberdade teria esse efeito em você, eu teria feito isso a tempos.

Rosnei mas não parei de meditar. Invés disso, voltei meus sentidos para dentro de mim e notei o quão descontrolada era a Energia no meu interior.

A teoria de manipulação era simples: “Todos tem uma alma que os conecta ao Plano Astral. Ao trazermos essa conexão ao Plano Material, a energia vem de dentro e sai pelos poros, onde é moldada pela mente e desejo do manipulador.”

Parecia mais fácil do que é. A verdade é que eu tenho muito poder entrando de uma vez só e, se eu forçar muito para fora, vou arrebentar os poros e sangrar até a morte. Mas dois corpos não ocupam o mesmo espaço, então esse poder que está dentro de mim busca ser liberado e, como tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, acabo por não conseguir me concentrar o suficiente para moldar a Energia Astral.

“Alma sã, mente sã, corpo são.” Essas são as bases para manipular a Energia com perfeição. Coisas que não tenho e que nunca vou ter pelo jeito que as coisas andam.

Eu rejeitei o futuro onde não consigo fazer nada. Aceitá-lo significa aceitar que meu pai estava certo em me ignorar e isso é algo que não posso fazer. Por isso, tenho que ficar melhor do que sou.

Conforme meditava eu notei um ponto estranho dentro do meu corpo. Enquanto não podia dizer com exatidão, meu poder entrar em desarranjo nos músculos, pontos duros e que não deixavam a energia passar.

Muita energia se concentrava nos órgãos vitais, era levada para outras partes pelas veias e então buscava uma saída. Enquanto notava isso, uma ideia me veio a mente.

Era estúpida e poderia dar muito errado, mas eu tenho o Diário de Davi, que pode curar qualquer ferimento grave… Sorri e decidi experimentar.

Se isso desse certo, talvez, só talvez, eu poderia mudar meu destino.

 

 



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