Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 7: Shiki Weissbreak

Quando foi a última vez que nos vimos mesmo? Acho que foi há quatro anos atrás. Eu ainda era um pirralho que se metia em brigas e você sempre esteve lá para cuidar dos meus machucados.

Ainda lembro daquela tarde em que me encontrou todo arrebentado num beco qualquer e me levou para uma das várias lojas de Zozolum…

Até quando vai se meter em encrenca? — perguntou Shiki enquanto passava uns remédios nos meus machucados. — Sabe bem que um Portador deve ser exemplar e… está me ouvindo?

Deixa ele, Shiki — grunhiu Reide, que olhava do lado enquanto limpava sua pistola. — Tolos que nem ele precisam quebrar a cara para aprender senso comum.

Fica quieta, sua velha!

O que falou, moleque de merda?

Naquele tempo eu era revoltado com tudo e todos. Não conhecia amor e só buscava a liberdade. Devia ser frustrante para você, né? Ter de cuidar de alguém como eu…

Não lembro como começou, apenas que aquela discussão levou ao tópico família e responsabilidades… e você me disse algo que eu jamais me esqueci.

Eu… sempre odiei minha chama — sussurrou Shiki, acendendo o fogo azul com um estalar de dedos enquanto olhava fixamente para ele. — Ela é quente e descontrolada. A prova do quão diferente sou dos Weissbreak, que dominam um gelo belo e calmo… a vergonha da minha família…

Aquelas palavras ressoaram na minha alma de uma forma que não consigo explicar. Seu sonho de ser aceito pelos outros, um que parecia impossível devido a forma como a Aristocracia dos Bruxos é, era belo em sua simplicidade.

Aquele foi um dos momentos-chave que definiu minha existência…

Mais uma rajada de fogo que afastou o Ogro e queimou um pouco de minha pele. Olhei atentamente para Shiki e notei o quão diferente nós eramos. Enquanto minha constituição era focada em velocidade, o corpo do albino era musculoso e poderoso, assim como a pele de porcelana que era iluminada pelas chamas.

Decidido a lutar, eu me levantei e comecei a cercar Valak.

— Ei, ei… tá meio injusto isso aí, não acham? — O comentário foi recebido com uma bola de fogo e eu corri em direção ao Nor.

Havia um motivo pelo qual os Nors duraram tanto na guerra contra os Portadores.

Não era só uma questão de força bruta, também havia o óbvio fato da habilidade deles de converter humanos em outros Nors, assim como a capacidade de evoluir e se adaptar, criando novas espécies.

Os Ogros descendem dos Trols, que descendiam dos Gigantes da Montanha, um povo que foi quase erradicado e, para sobreviverem, tiveram crias com os espíritos das pedras.

Combine essa linhagem com uma Salamandra e você tem um Ogro, um ser de puro magma, menos resiliente que seus antecessores, mas ainda tinha uma força assustadora.

Enquanto Shiki distraia o monstro com bolas de fogo azul, comecei a juntar energia ao meu redor e avançar. Por mais bizarro que parecesse, o Nor sentia aquelas chamas e tinha que usar seu magma para se proteger como podia.

Assim que a oportunidade apareceu, pulei e dei um cruzado, carregado de Energia Astral, no queixo do adversário. Enquanto essa técnica era melhor executada com um Jab, eu preferi adicionar mais força para garantir o efeito.

As pernas do Nor ficaram bambas e eu saltei para longe, permitindo que o Bruxo atrás de mim lançasse uma intensa chama. Tão intensa que os ventos originados da explosão cerúlea me jogaram para longe.

Era de fato uma visão única.

Quando aterrizei sorri para o meu amigo, que parecia irritado. — Você está brincando com o perigo! Zozolum estava se preocupando muito contigo, pirralho.

Ignorei o uso exagerado de gerúndio, já acostumado com essa peculiaridade dos Bruxos, e foquei apenas na mentira. — Zozolum me deu permissão, vai ter que achar uma mentira melhor, Shiki.

Finalmente criou atitude! Só o que precisou foi algumas horas comigo pra deixar de ser aquele molenga.

Ignorei o Espectro pois sabia que ele não teria nada útil a acrescentar nessa situação e me foquei na fumaça. Olhei para as runas que foram postas ao redor do espaço em que estávamos e entendi o porquê de nenhum civil aparecer ainda.

Bruxaria era algo bem conveniente.

— Seus porra… — tossiu o Ogro enquanto tentava ficar de pé. Os olhos vermelhos brilharam em nossa direção e, imediatamente, cuspiu uma explosão de magma. Esquivei da melhor forma que podia enquanto Shiki criou uma barreira de chamas ao redor dele.

O Ogro não parecia satisfeito e formou bolas de fogo nas mãos, atirando-as contra nós uma depois da outra. Desviei enquanto sentia minhas reservas acabarem e, decidido a encerrar a luta, corri em direção do monstro.

Não importa o quão forte o adversário seja, contanto que eu ainda pudesse lutar, o Diário me daria o poder necessário para seguir em frente.

Desviei de um orbe laranja, as chamas pareciam línguas que lambiam minha pele.

Ignorei a ardência e, assim que estava perto o suficiente, dei um forte soco no peito dele, a energia ametista era o suficiente para cegar os presentes.

Após o brilho cessar, meu adversário caiu no chão, desacordado.

— Nem acredito que conseguimos.

— Parabéns. Como está se sentindo, derrubando um Nor como Portador?

— Fantástic…

Como se meu interior congelasse, toda a alegria e conquista se esvaíram, dando espaço para uma gélida e medonha confusão. Olhei aos arredores e dei por falta de dois elementos importantes.

— Aonde está o segundo? — perguntei mais para o vento do que para Shiki, que ficou confuso por um segundo, até que entendeu e voltou a uma postura de batalha. — Grace… GRACE! CADÊ VOCÊ?!

Apenas silêncio.

Senti de imediato um frio me corroer enquanto a Energia ao meu redor desaparecia. Shiki viu isso e correu em minha direção.

“Ahh” pensei, como se sofresse uma epifania. “Eu não consigo mais lutar.”

 

Aquela cama, aquela mulher, aquela promessa…

Era tudo tão simples, tão belo, tão nostálgico… mas tão, tão doloroso.

— Você precisa cuidar da Grace, Lewnard… como o irmão mais velho… — Minha mãe forçou a voz a sair dos lábios, seus olhos não tinham mais luz, prova da doença que se espalhou pelo corpo dela.

Ela morreu no dia seguinte.

Desde que eu me entendo por gente, vi meu pai ser um escravo do Diário. Ele não tinha amor algum pela minha mãe ou irmã, ambas eram frutos de um casamento arranjado para criar um herdeiro forte.

Achei que ele se orgulharia de mim e me treinaria desde novo…

Nossa relação era morna, quase fria. Eu via ele como um pobre coitado e ele não tinha interesse algum em mim. Esse desinteresse não mudava, não importava o quanto eu tentava.

Ao longo da jornada, quando descobri o quão sintonizado eu estava com o Plano Astral, eu quis que ele olhasse para mim com orgulho, tive medo também que ele me odiasse, afinal eu lembraria ele do que perdeu, da liberdade que nunca teve.

Eu… queria que esse fosse o caso.

Qualquer coisa era melhor que a indiferença.

Minha mãe era uma boa pessoa, mas ela escolheu priorizar Grace. Para ela, eu era parecido demais com o meu pai e, como resultado, lembrava ela de sua falta de liberdade. Mesmo em seus momentos finais ela não viu quem eu era. Apenas me incumbiu com uma promessa.

Mesmo que não fosse o melhor começo, foi o que me foi dado. Uma promessa foi a única coisa que meus pais me deram e, como resultado, foi a força motriz que me moveu para validar minha existência.

A frase “Eu penso, logo existo” é falsa. A causa e a consequência não tem relação alguma com a outra. O valor dessa frase, ao menos para mim, só é alcançado se mudar as coisas de lugar.

“Eu existo, logo penso” é algo muito mais aceitável, mas ainda não era o ideal, não… a verdadeira causalidade é simples.

“Eu existo, logo justifico minha existência”.

Eu só adquiri um motivo para existir quando a minha mãe me fez prometer que cuidaria de minha irmã. Daquele dia em diante que eu mudei e minha existência passou a girar ao redor dessa promessa.

Como um dogma sagrado, eu a mantive e, como um dogma ainda mais sacro, eu não firmei promessas que não tinha a total consciência que pudesse manter.

Foi assim que eu vivi e vai ser como morrerei…

Afinal, sem a promessa que firmei, não tinha razão para existir…

Eu decidi que qualquer coisa era melhor que inexistência, que a inércia que vinha com isso… ainda assim, eu… ainda assim…

Eu quebrei minha jura…

 

Abri meus olhos e me levantei, a tontura e fraqueza foram esquecidas completamente. Não me importei com a ausência do meu estômago, nem com a falta dos meus músculos…

O Diário de Davi os recuperaria.

Fique na cama falou o Espectro, o tom não dava espaço para discussões, mas eu… — Esqueça sua irmã, ela foi levada por um Nor. As chances dela morrer são altas demais e você não está em condições de lutar.

— E você espera que isso vai me impedir?

Não… não espero. Você é muito idiota para ouvir a razão e, pelo que eu vi em suas memórias, é patético demais para conseguir esquecer de sua promessa. Logo, você vai ir lá e vai ser morto. É a única alternativa para você, não?

Aquilo me fez parar e olhar para ele. Esperava ver qualquer coisa naqueles olhos, mas havia algo indecifrável por trás do véu, algo que não conseguia discernir não importa o quanto eu tentasse.

Você é fraco demais para fazer qualquer coisa. Pare e pense bem antes de prosseguir.

— Sério? Você falando isso? Você que disse que eu penso demais! Você que me ensinou a seguir meus instintos!

E o que eles dizem agora? perguntou enquanto se levantava da cama.

— Que… que se eu for lá sem um plano, eu vou morrer… mas… eu…

Mesmo que eu morra… mesmo que eu saiba da importância que carrego… eu tinha que fazer isso. Minha promessa é mais importante que qualquer coisa e eu… eu…

O Espectro notou meu conflito interno e se levantou, indo até mim. Com a mão em meu ombro que me deu um forte chute no peito, seguido por um soco no queixo e uma palmada no coração.

Eu sou mais forte que você, então tu vai fazer o que eu mandar… e eu te ordeno a descansar e pensar numa forma de prosseguir.

Embora meu corpo estivesse pesado eu me levantei e olhei para ele. Entrei na postura de boxe das ruas que conhecia e vi o sorriso feral no rosto dele.

Se vamos fazer isso… precisamos de uma arena melhor…

No instante seguinte, as sombras consumiram minha visão.

 



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