Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho

Revisão: Arisu


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 5: Nobrezas e Maldições

Enfim cheguei na saída e toquei no que parecia um espaço vazio. A superfície seria imperceptível para alguém que não conseguisse sentir a Energia Astral como eu aprendi.

Puxei o fluxo com força o suficiente para quebrar a barreira e abrir a porta dimensional e, com um passo trêmulo, adentrei o véu das sombras.

Senti os tentáculos se moverem no espaço negro e me enviar para frente. Conforme os segundos passavam, podia sentir mais e mais aquele abismo me olhar e estudar. Ouvi os sussurros infantis das trevas enquanto tentava passar a sensação de segurança.

As sombras obedeciam Zozolum, apenas… mas haviam rumores que elas ainda tinham consciência própria… e que Zozolum não tinha total controle delas.

O portal sombrio se abriu, e desci da plataforma, meus olhos caíram sobre o Bruxo, assim como os dois convidados.

Ahh, Lewnard. Enfim, chegou — falou, a voz carregava um tanto de melancolia e irritação. Era estranho o ver incomodado com alguém sem que aquela pessoa desaparecesse num vórtice de trevas, mas decidi não questionar. Invés disso, apenas prestei atenção nos dois loiros à minha frente. — Esses, Elizabeth e Vanitas Juvicent… os dois são os Nobres que cuidam da nossa estimada cidade.

Assim que ouvi os títulos, arqueei uma sobrancelha, mas, como era esperado de um “plebeu”, apenas me curvei levemente como forma de serventia. — No que posso ajudar?

O Rei olhou para mim, e eu podia ver a forma como calculava cada movimento meu, assim como a preocupação que demonstrava pela garota. Ele tinha uma barba, e cabelo loiro e grande, e olhos verdes com imensa vivacidade.

A garota, Elizabeth, tinha o mesmo cabelo e olhos, mas ambos eram muito mais mortos, como se não tivessem nenhuma energia ali. Era… assustador, de certa forma. Claro, ela se portava com a elegância e beleza esperadas de uma nobre, mas a dicotomia daquilo com o quão frágil parecia era chocante.

— Vou ir direto ao ponto… quero que cure minha filha — pediu, não, implorou. Era claro para mim que ele se via numa situação de serventia… quase como se eu fosse o nobre ali. Olhei para Zozolum e o vi suspirar.

— Portadores, mais poder, que muitos nobres.

Acenei e olhei fundo para a garota. Mesmo com meus sentidos astrais recém-desenvolvidos eu consegui ver claramente o que tinha ali… era estranho. Muito bizarro.

Havia algo no sangue dela que sugava a energia ao redor e usava-a para esmagá-la de dentro para fora. Meu choque deve ter sido transparente visto a cara do meu mentor, do quão surpreso estava.

— Tens bons sentidos… Até hoje, ninguém, identificar. — Pela forma que ele disse aquilo, era claro que não esperava que eu me tornasse um Sensor, ao menos não um competente o suficiente para diagnosticar o problema. — Então? Qual, problema?

— Ela foi amaldiçoada. — A forma como disse aquilo soou surpreendente até para mim e era claro que os outros dois não esperavam ouvir isso. — Há um selo… mais ou menos na região do rim. Ele pega o sangue filtrado e espalha uma Energia Astral que suga os nutrientes do corpo e a energia residual deixada ao redor dela… vai ser irritante de tirar.

— Então só precisamos remover o rim — perguntou o rei, esperançoso. Eu suspirei enquanto tentava sentir mais daquilo. Enquanto o núcleo estava em um órgão, era claro que o selo era complexo o suficiente para se ligar a outro. Expliquei isso da melhor forma e os dois pareceram desesperançados.

— Olha… acho que, se eu usar o Diário e tiver o auxílio de um “Rompedor”, podemos tirar o selo daí. O problema, no entanto, é que eu não sinto uma origem desse poder… é quase como se ele estivesse atrelado a ela desde o nascimento.

O rei então explicou que ela nasceu com isso, assim como a mãe dela e o resto da família dela. Ao que parece, o lado materno da família só produziu mulheres e, inacreditavelmente, todas ficavam estéreis após conceber a primeira criança.

Alguém queria prolongar o sofrimento de uma linhagem inteira até que ela desaparecesse…

— Zozolum, sabe de alguém que seja especializado em Romper maldições?

— Bem, eu sou um especialista em Abjuração, então posso ajudar com isso, visto que selos e manipulação espacial são meu trabalho.

Ótimo, agora só precisava de tempo até que pudesse controlar o Diário e seus poderes o suficiente para parar o fluxo sanguíneo sem matá-la. Senti um puxão no meu ombro e olhei para trás. Zozolum arqueou uma sobrancelha mas não importava.

Se quer viver uma boa vida, não se envolva nisso. — A voz do Espectro era repleta de animosidade e raiva… um tipo totalmente diferente do sarcasmo e cinismo que mostrava para mim. — Seja lá quem plantou esse selo, ele é poderoso o suficiente para ainda estar vivo… além de ser um Bruxo habilidoso, o que o daria poder na Arca. É melhor apenas observar.

Lembro-me da explicação sobre Bruxos, humanos especiais que eram disciplinados nas Artes Astrais, o suficiente para moldar a energia e adquirir habilidades, divididas em oito diferentes escolas. Zozolum era o maior especialista em Abjuração vivo, o que o rendeu o cargo de Magistrado, assim como o Título de “Imperador” devido ao controle que exercia nas sombras.

Ainda assim, não pude deixar de ficar chocado com a preocupação e passividade do Espectro. — Não — disse em voz alta, o que atraiu a atenção dos outros presentes. — Vou ajudar ela, me recuso a deixar alguém morrer sendo que posso fazer algo para ajudar.

Que pirralho problemático… esse teu cérebro de neandertal não entende que há lutas que não se pode vencer?

— É o certo a se fazer!

Quer saber… foda-se. Se quer jogar sua vida fora por um senso de moralidade vazio, que seja.

Os outros ocupantes me olharam com certa estranheza, apenas Zozolum parecia entender o que havia ocorrido. — Ele tem um jeito diferente de se preocupar — comentei enquanto pensava.

Teria de aprender as habilidades do Diário a ponto de conseguir fazer um milagre… e, pelo estado que Elizabeth estava, deveria ser logo.

— Bem, o que mais tem pra hoje?

 

Após alguns dias, Zozolum enfim me liberou para dar uma volta na cidade e ir ver minha irmã. Ela ainda estava sob a proteção de meu pai; no entanto, os Nors se provaram inteligentes o suficiente para usar armas de fogo, então não posso só deixar ela sem supervisão.

Além disso, já que o Diário agora é meu, a proteção começará a enfraquecer cada vez mais, até o ponto em que os Nors possam tocá-la. As ruas estavam movimentadas, mesmo com a escuridão começando a tomar o lugar da luz.

Olhei para uma loja de brinquedos e reparei no ursinho que estava numa das prateleiras. Busquei minha carteira num bolso e, assim que abri, suspirei fundo.

Nem um único centavo…

— Nem mesmo posso comprar algo para ela… Quantos aniversários já foram que não pude dar um presente que fosse? — Voltei a andar enquanto pensava, não só na falta de dinheiro, nem no tempo que se passou, mas também nos meus arredores.

Um pequeno amontoado de pessoas se reunia em frente a um pódio. As palavras que saíam do palestrante me pararam, e eu comecei a ouvir atentamente o que ele dizia.

— Se quiserem um mundo verdadeiramente justo, temos que nos unir e destronar o Imperador! — discursava enquanto as pessoas mostravam-se mais e mais nervosas. — Não há justiça no nosso sistema, mas não se desesperem! Há esperança! Minha organização está recrutando!

E foi nesse ponto que eu perdi o interesse. Apenas me escorei numa parede e aproveitei o show que começaria em alguns minutos. A presença de vários policiais cercaram o homem, e as pessoas se dispersaram.

A figura parecia amedrontada, mas ainda parecia determinada a causar o máximo de confusão, gritando (enquanto era algemado) que os policiais eram o braço de um sistema falido e sabe-se lá o que mais.

Nunca me importei com política. Não ligo quem veste as roupas do rei ou quem se senta no trono da rainha. Apenas quero viver em paz com minha irmã, ou, atualmente, dar a ela a melhor vida possível.

Talvez ele estivesse certo e eu devesse usar minha influência como um Portador para mudar as coisas (considerando a explicação que Zozolum me deu, talvez eu até conseguisse), mas quem lideraria depois? Como saber se não haveria um governante pior do que o anterior?

Esse tipo de mudança requeria paciência e inteligência, duas coisas que eu não tenho.

Caminhei por mais uns minutos quando, enfim, cheguei em frente ao orfanato que meu pai deixou eu e minha irmã. Era uma pequena capela, com uma casinha ao lado, ambas desgastadas pelo tempo.

Assim que estava próximo o suficiente, senti a energia que mantinha o lugar a salvo. Era esperado que a Igreja tivesse conhecimento sobre a Energia Astral, mas aquele nível de Abjuração era excepcional. Zozolum não era um simpatizante, mas eu reconheceria o trabalho dele em qualquer lugar.

— Ô de casa! — exclamei, chamando a atenção das crianças e das duas irmãs que ali viviam.

— Irmãozão! — Vários garotos correram em minha direção e se atiraram sobre mim. As garotas eram mais portadas, por mais que houvessem algumas que me abraçaram também.

Sorri e me dirigi para a irmã Danielle, que me olhava com tristeza e felicidade. Ambas emoções conflitantes, mas que tinham apenas uma raiz.

— Você o herdou?

— Sim… ele está aqui comigo.

Naquele momento, vi os olhos dela umedecerem, e ela então me abraçou, tanto para esconder as lágrimas como também por buscar consolo. — Sinto muito! Eu sinto muito, muito, muito!

As crianças nos olhavam com estranheza, os mais velhos sabiam do que se tratava e mostravam reações de gratidão e admiração, assim como tristeza.

Aquela era uma família em primeiro e uma fábrica de soldados especiais em segundo.

— Posso ver? — disse, após me puxar para longe dos mais novos, que continuaram brincando.

Sorri e puxei o objeto. Ela ficou quieta por um momento, observando a capa e as runas que estavam inscritas ali e que tinham apenas um significado.

“A dor é justiça.” Esse era um dos lemas da minha família e queria dizer muitas coisas, por mais que não soubesse todas as interpretações. Abaixo dali, junto ao cadeado, dizia: “Aquele que olhar será amaldiçoado por toda a eternidade.”

Engoli em seco ao lembrar do dever mais importante dos Portadores.

Ter certeza que aquele cadeado permaneça fechado, não importa o que. Se o cadeado abrir, os portões que seguram o Plano Astral começarão a abrir, e o relógio do apocalipse começará a bater.

— Lewnard… por favor… valorize sua vida. Não importa o que os outros esperam de você, não a jogue fora! Não por um Diário! Quero que você viva, arranje uma mulher, envelheça e veja sua família crescer… pode fazer isso por mim?

Apenas fiquei calado. Não podia responder, tanto pelas emoções que surgiam em minha mente quanto pelo medo de firmar aquela promessa.

Afinal, para mim, promessas devem ser cumpridas…

Não importa o custo.



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