Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho

Revisão: Arisu


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: Treino

Engoli em seco enquanto tentava ouvir algo naquele inferno branco.

Não sei quanto tempo se passou desde que Zozolum me abandonou no Quarto Branco e nem sei o caminho de volta. Segundo o desgraçado, esse é o ponto.

Tenho que achar uma forma de sentir a Energia Astral e encontrar a saída. O problema nisso está que pouquíssimos Sensores Naturais nasceram desde os últimos 500 anos, o mais recente morreu recentemente com seus 168 anos de idade.

Sendo bem sincero, eu não sou um Sensor. Mal consigo moldar a Energia, e isso vem direto do fato que não consigo a sentir.

Sinto saudades de quando eu comecei e entendia a teoria com facilidade. Agora, quanto a prática, só tenho dificuldades.

Caminhei para norte… ou seria sul? Mal conseguia discernir o céu do chão naquela imensidão clara. Não havia objeto algum ali, nem vida. Quando penso nisso vejo que esse local não é diferente de um deserto.

Sem nada comestível, sem civilização alguma…

Quanto demoraria para eu começar a ter alucinações?

Senti um frio me percorrer conforme a sensação de solidão me consumia. Andei mais alguns quilômetros quando algo chamou minha atenção.

— Oi, Hollick. — A voz distorcida pertencia a Truman e eu só pude fechar os olhos e então os abrir de novo. Antes aquela figura estava a uns bons 15 metros de distância, mas agora o punho do carniceiro estava sobre mim.

Senti o impacto de uma rocha me mandar voando. “Não pode ser… esse cara morreu… né?”

Idiota, não divague demais. Senti um impulso me empurrar para a direita e só então percebi que me movi por instinto. Após isso, eu mandei um forte Jab contra o rosto do meu antigo colega.

— Só pode ser piada — reclamei ao ver meu punho o atravessar como se ele nem estivesse ali. Em seguida, uma enorme dor surgiu no meu abdômen. “Como? Esse cara é uma ilusão, então por que dói tanto?”

Provável que seja alguma fantasia doentia sua.

— Cala boca! — gritei e então corri contra o Nor, que desapareceu e ressurgiu nas minhas costas. Virei-me e defendi um cruzado contra o rosto, a força foi tanta que me enviou para longe.

Cacete, pirralho. Sabia que tu era fraco, mas perder para si próprio é ridículo. — Conseguia ver o sorriso debochado na cara do meu espírito ancestral. Não sabia como era o rosto dele mas tinha certeza que estava sorrindo. — Você sempre está me surpreendendo… acho que isso é o único lado bom da nossa parceria.

— Fica quieto! — Observei os movimentos do Nor, prestando atenção em cada detalhe. A exaustão mental começou a me corroer após dois minutos de atenção completa naquele ser, e só após os cinco, quando enfim ele desapareceu, pude descansar. — Ótimo… Ei, Espírito de Merda, que tal ser útil e me ajudar a sentir a energia?

Eu até poderia, mas estou tentado a deixar você se debater aí… se bem que assistir um cachorro sendo chutado sempre me deixou com um gosto ruim na boca… Bem, vou te dar uma dica.

Esperei alguns segundos. Podia sentir o suspense me consumindo e amaldiçoei o desgraçado, que se divertia com o meu sofrimento.

Você pensa demais disse, enfim. Senti um pouco de incredulidade ante aquele conselho e estava prestes a reclamar, mas o espírito não parou. Os vivos percebem as coisas de forma tediosa e lenta. Conceito, memória e vocalização… primeiro você capta o conceito, em seguida o associa a uma memória e então dá um nome aquilo… precisa se livrar dos últimos dois estágios e apenas… viver.

— Mas… mas isso não me faria diferente de um animal, não é? Ou de alguns Nors…

O silêncio me causou raiva, e eu parei para sentar. Não adiantaria se preocupar com moralidade quando os inimigos descartam a humanidade. Ainda assim, ao menos queria manter uma identidade.

Ninguém sabe o que se passa na cabeça de um humano enquanto se transforma em Nor. Acho que é mais fácil não pensarmos nisso. No entanto, vários estudos sobre a anatomia desses seres provaram que eles pensam de forma mais animalesca, movidos apenas pelo instinto.

Suspirei enquanto tentava limpar minha mente. Ocasionalmente, pensava em alguma coisa e tentava tirar o processo de vocalização… para minha surpresa, essa foi a parte fácil.

O complicado era tirar a associação com a memória, algo que eu descobri depois de horas tentando. Podia sentir os olhos do fantasma me perfurando enquanto soltava os insultos ocasionais.

Das primeiras vezes que respondi, continuei com o processo inicial e era punido com uma forte dor na nuca. Após a quarta resposta, aquela dor parou, e eu notei, com certa irritação, o que o desgraçado estava fazendo.

“Ele tá me treinando lentamente para conseguir alcançar o objetivo…” Após isso, uma forte dor na nuca, ainda que essa fosse mais fraca… quase de uma forma carinhosa. Sacudi a cabeça enquanto ouvia a risada sardônica do espírito.

Conforme as horas foram passando, meu processo melhorava. Minha mente estava mais clara e conseguia responder aos insultos sem perder o controle da vocalização.

Não sei quanto tempo se passou de fato, parei de me importar faz muito. — Então, como se sente?

— Bem. — Arregalei os olhos ao perceber a ausência da associação. Agarrei aquela sensação antes que a dor voltasse e fui recompensado com uma intensa dor em todos os lugares do meu corpo.

Não sei se gritei ou não, nem se estava acordado.

Não perca o foco! — A voz dele vinha de longe e era soterrada pela cacofonia e flashes de luz. Senti um frio tão intenso que queimava, e então um calor tão absoluto que me congelou. — O que está sentindo agora é normal! É quase como se viesse ao mundo de novo. Não lute contra o sentimento!

Mesmo com a multitude de cheiros, com a sensação na minha pele, com a luz cegante, com a multitude de barulho e eco, segurei-me naquelas palavras e, de fato, quando estava prestes a enlouquecer, meu cérebro começou a se acostumar com a multitude de sentidos.

Seja lá quem projetou esse quarto, essa pessoa deve estar ardendo no inferno agora… — sussurrou o ser, a voz mais clara do que nunca. Olhei para o lado e vi um humano que brilhava ametista, a luz como um véu que cobria sua identidade… quase como um “Espectro”. — Por mais eficiente que esse método seja em criar Sensores, só posso imaginar o quão brutal é a experiência de ir de 0 a 100 em um instante.

Tentei responder, mas apenas vomitei no chão e me deitei ali, incapaz de me levantar. O Espectro me deixou ali, e eu adormeci com tranquilidade.

 

Acordei e olhei para cima. Senti um cheiro desagradável e limpei meu rosto com minha manga.

Levantei e então entrei naquele “modo”. Senti meus sentidos serem destruídos, mas foi menos intenso e mais rápido que a última vez.

Notei as luzes ao redor e senti uma atração numa delas assim que desejei uma saída. Com um sorriso, comecei a caminhar naquela direção, confiante de que não estava cego dessa vez.

Naquele dia, senti que um mundo inteiro se abriu para mim, e só pude sorrir.

 

 



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