Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho

Revisão: Arisu


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: Resignação

Meus olhos cansados fecharam até me acostumar com a luz forte daquele quarto. Ao meu redor havia apenas escuridão, como se o ponto focal da lâmpada fosse um pequeno círculo.

Rosnei quando senti os tentáculos e fios líquidos me tocarem e senti um arrepio percorrer minha espinha quando elas enfim me deixaram.

As sombras obedeciam apenas a um homem.

— E parar pra pensar que você tava certo… — sussurrei enquanto sentia meus órgãos crescerem de volta. Era um sentimento estranho e dolorido, definitivamente não queria repetir a experiência. — Eu realmente devia ter aceitado a proposta, Zozolum.

A escuridão se partiu como o mar vermelho e, dali, saiu um homem. As trevas cobriam sua forma como uma capa. Os fios negros lustrosos e o vermelhão que tingia os olhos realçavam a beleza idealizada de muitos poetas e escultores.

Aquilo me dava náusea.

Era tudo tão falso e artificial que a decepção de perceber a farsa tornava a morte convidativa. Lembro da primeira vez que conheci essa cara… de como fiquei encantado com as palavras que ele carregava…

Não mais.

Ambos nos encaramos por alguns segundos e o mais velho apenas suspirou cansado. — E mesmo assim, ainda se recusa ter fé — falou enfim, as sombras o levaram como servos carregando um imperador. — Diga-me, preciso fazer para provar, minhas intenções.

Suspirei e olhei para o teto. Lembro bem do que ocorreu e das minhas responsabilidades. Do meu dever.

Tentei passar pelo concreto e visualizar o céu a cima de nossas cabeças, ver as estrelas que poderiam brilhar ali… buscar por algum resquício do meu velho.

— Me de o Diário de Davi… — sussurrei, resignado ao meu destino. Zozolum pareceu surpreso e então sorriu.

— Mudou? Dois anos, estava todo receoso. Agora está disposto, sacrificar, normalidade… a vida com sua irmã? — Uma vez mais senti aquele aperto no peito. Sempre que pensava no que me foi negado, naquilo que jamais poderia dar para minha irmã, do cargo que o destino me deu, sentia tanta raiva.

Mas eu fiz uma promessa para minha mãe que protegeria minha família. Fiz uma promessa ao meu pai que não deixaria o nosso legado morrer…

Viver da melhor forma que podia não era mais uma opção. Nunca foi e nem será. Não enquanto monstros como os de ontem existirem.

— Por minha negligência, um inocente morreu ontem — comentei enquanto olhava para a minha mão. Ainda podia ver o vermelho e tripas, o cheiro de ferro, o calor na minha pele… — Não quero sentir isso de novo.

O Bruxo parou e olhou para mim com clara surpresa. — Arrependimento? Que inusitado.

Olhei para o lado e suspirei. Não podia dizer muito contra isso e nem devia. Fazer tal coisa seria esquecer do passado e dos meus erros, algo que não planejava fazer tão cedo. Ainda assim, doía não ter resposta e provar o ponto dele.

— Então, fará? Treinará sob, tutela?

Olhei para o teto e murmurei um “sim”. Já estava na hora de deixar de ser fraco, e não havia alguém melhor para me ensinar do que o homem à minha frente. Zozolum era alguém difícil de confiar, mas não duvidava da capacidade dele de formar lutadores incríveis.

Além do mais, meu destino foi selado no momento que nasci no seio dos Hollick e não podia fazer nada em relação a isso. Apenas aceitaria e seguiria em frente.

— Excelente! Começamos, dia seguinte — exclamou, como se lesse meus pensamentos. Andou até o final da sala e abriu a porta. Fiquei só com as sombras que, sem dúvidas, calculavam cada movimento meu.

“Acho que nunca vou me acostumar com esse cara…” Agora que tinha tempo para pensar em tudo o que aconteceu, posso perceber o quão infeliz foi o dia de ontem. Só agora tive tempo para processar tudo o que aconteceu e percebi a diferença daquele dia para os outros até então.

Era normal que eu fosse esporadicamente atacado por um Nor tolo. Não era incomum que eu me ferisse e conseguisse vencer, mas aquela era a primeira vez que o ataque pareceu coordenado.

Os inimigos também eram inteligentes e fortes o suficiente para quase me matar duas vezes. A experiência de quase morte ainda era única no sentido de que não me abalou tanto quanto devia.

Bem, eu estava acostumado com a ideia de mortalidade, então não era tão difícil assim de aceitar isso. Nunca pensei que duraria muito, mas ao menos queria viver da forma como eu queria.

Sério, você reclama tanto que parece um pirralho mimado. Seus pais deviam ter te dado uns corretivos a mais. Estreitei os olhos com a voz e procurei de onde ela saiu, mas não tive sucesso. Parecia ter vindo de dentro da minha cabeça, mas não era possível…

Eu não estava ficando louco, não é?

Louco? Não. Idiota? Talvez, muito provavelmente, você fez uma lobotomia recentemente?

Um sentimento de irritação cresceu no meu peito, mas como não havia um alvo para soltar a raiva, tentei me acalmar e focar no que vi até então enquanto ignorava o sentimento de esquecer de algo importante.

 

Segurei o Diário em minhas mãos com um olhar resoluto, enquanto Zozolum repetia a lição de história que todo herdeiro ouviu ao menos uma vez na vida.

— Os Diários foram criados após o primeiro Nor surgir e começar a converter humanos normais em Nors. No princípio, haviam quatro diários. O de Adão, Sete, Enos e, por fim, o de Lucas. Após anos de batalha, os dois primeiros foram divididos após as duas linhagens principais morrerem. A guerra continuou e, em uma batalha onde os nove Portadores Puros precisaram dar suas vidas, os diários se dividiram uma vez mais…

— E então oito dos quinze restantes morreram, e seus Diários foram integrados nos outros, criando assim os cinco Diários Híbridos. Já ouvi essa história mil vezes — resmunguei, tanto para interromper a monotonia na voz de Zozolum quanto para mostrar que já ouvi aquilo.

A sala de aula era repleta de sombras e eu estava confortável num sofá, enquanto o meu professor escrevia símbolos estranhos num quadro negro.

— É? Então, diga o que aconteceu, último diário.

— Último?

— Lucas. Se sabe tanto, saber que não foi dividido.

Aquilo me pegou de surpresa. Lembro de ter estudado bem a história dos Diários mas não consegui achar uma única menção sobre o Diário de Lucas depois da morte do Portador de Sete. Encarei o teto, refletindo na pergunta e, só então, percebi uma falha na história contada.

Se um Portador não deixa descendentes, o Diário é, ou dividido entre os Vassalos, ou combinado com um outro e dado para o herdeiro daquela família. No entanto, não havia um único Diário que carregasse o traço de Lucas, que era o fim de todas as coisas. Acho que nem Davi, o Diário das Chagas e Aflições, tinha tal coisa.

Olhei para o livro em questão com curiosidade. Se havia um Diário que parecia o de Lucas, esse era o meu. Davi tinha a capacidade de doar vida aos enfermos e tirar daqueles que não mereciam. O Portador original era tido como o “Matador de Gigantes” exatamente por isso.

Os Gigantes eram uma raça quase invulnerável a qualquer Energia Astral, e a guerra esteve a favor dos Nors por muito tempo graças a isso… ao menos, até São Davi surgir.

Era dito que a Energia que carregava no seu Diário era tamanha que ele podia causar ferimentos e doenças onde não havia. Graças a tal feito, a pele impermeável dos Gigantes não pôde fazer nada contra os ataques internos que o Diário causava, e a orgulhosa tribo foi exterminada em apenas um mês.

— Errado — suspirou, olhei para ele surpreso e então lembrei de quem estava à minha frente. Zozolum era um dos poucos que poderia, sem dúvida, saber o que houve com o Diário de Lucas. Ele viveu naquela época, depois de tudo. — Seu Diário carrega os traços de Sete, Zadoque e Moisés, nem mais, nem menos. Enquanto Davi pode trazer a morte, é diferente daquele que originou a Morte.

— A Morte? O que quer dizer?

— Exatamente, falei. Antes do Diário de Lucas, a morte era algo bem mais vago e que ocorria com alguns indivíduos… para matar os Nors, foi preciso, morte igual para todos. Foi uma criação humana.

Três segundos se passaram até eu enfim processar o que foi dito. Meus olhos se arregalaram em surpresa, e senti o Diário no meu colo pulsar de forma ansiosa, como se pedisse algo que só eu pudesse dar. Foquei minha atenção na capa dura e deixei o zumbido entrar no meu coração.

— Que defesa fraca. Parece até que quer que eu penetre em você, seu pervertido de merda — a voz de antes comentou e eu grunhi. Desde que acordei venho ouvindo essa desgraça me xingando em toda a oportunidade que ele tem e, só agora, entendi quem era o dono da voz.

Todo Diário Astral vinha com um espírito ancestral, que guiaria o herdeiro e o auxiliaria a tomar as melhores decisões, mas tudo que esse porra me deu até agora foram insultos e mais insultos.

— Zozolum, não tem como eu trocar de Diário não? Acho que o meu está quebrado.

— Não, tem… por que disso?

— O Espírito Ancestral. Ele não para de me insultar.

— Estranho… muito estranho. Seu pai definiu o espírito, bondoso e gentil.

Arqueei uma sobrancelha com aquilo e olhei para o livro, que me olhou de volta. A capa negra e dura pulsava com veias e o cadeado, que bloqueava a energia e a mantinha contida, brilhava em prata.

Como se sentisse minha pergunta, as veias pulsaram mais forte. Que medo desse seu olhar. Devia sorrir mais vezes e, se o destino for EXTREMAMENTE bondoso, pode até arranjar uma mulher.

“O que quer dizer com isso?”

Bem, me diga você. O que acha que eu quis dizer? Ou além de feio também é burro?

Por enquanto, eu ignoraria os insultos gratuitos. Contanto que esse desgraçado não passe dos limites, não me importo muito. Olhei para Zozolum, que mantinha um sorriso no rosto.

— Ele, insulta mesmo. — Arqueei uma sobrancelha e respirei fundo. Acho que devia ter me lembrado da forma como o meu professor podia ler meus pensamentos com facilidade. — Vou, ensinar. Um dia, conseguir esconder os pensamentos.

Sabendo o quão lento esse inútil é, acho que ele morre antes de conseguir aprender algo assim. Uma pena que meu portador é um fraco e não consegue nem esconder os seus pensamentos.

Com isso, a minha primeira aula de história terminou e ambos seguimos para a próxima parte.

Prática.



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