Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 10: O Licantropo, parte 1

Se tinha uma coisa que eu sabia sobre meu irmão era o quão determinado ele era. Sabia que ele não morreria para aquele cara malvado e também que voltaria para mim e me deixaria segura.

Não é um estilo de vida que eu goste mas é o que o destino me deu. Como filha mais nova eu não pude herdar o Diário e aliviar o sofrimento que assolava Lewnard. Acho que esse sempre foi meu pecado… a fraqueza.

Desde muito nova que vi expectativas impossíveis serem colocadas nele, coisas que alguém normal jamais conseguiria realizar… e vi que, mesmo com um grau de sucesso na medida do possível, nunca que Lew recebeu o reconhecimento que merecia.

Meus pais sempre preferiram eu a ele por motivos que não consigo dizer. Não era forte nem bela, apenas era… bem, eu… enquanto meu irmão tinha não só a conexão mais forte com o Plano Astral que nossa família viu em séculos, ele também se esforçava mais que todos para ficar mais forte.

Não era justo que eu, a filha mais fraca, recebesse tanta atenção.

O pior de tudo também era a promessa que minha estimada mãe forçou nele. Graças a essa promessa, eu sou um peso nas costas do Lewnard, não posso nem morrer sem saber que isso tiraria o motivo dele de viver.

Aquilo era sufocante. Mesmo depois da morte, minha família ainda tinha as mãos sobre nossos destinos. O pior de tudo é que eu sabia que enquanto eu vivesse, meu irmão jamais seria livre. Nunca conseguiria viver sem se preocupar com a irmã fraca e incapaz dele.

Se ao menos eu tivesse metade da força dele… metade da determinação dele…

Mesmo agora eu sou um peso para ele, presa por esse maldito ser. Já se passaram duas horas desde meu sequestro e não conhecia bem ele mas conseguia dizer o que ele queria.

Eu era a isca para pegar meu irmão.

— Seus pais eram pessoas de bom gosto — comentou enquanto tocava nos caixões dentro do mausoléu. — Acho que é esperado de membros da nobreza. Céus, imagine minha surpresa quando soube que as duas crianças herdeiras dos Hollick acabaram sem nada…

— Por que se importa? — perguntei com a voz calma, tentando ao máximo esconder meu nervosismo.

Ele não me respondeu. Invés disso, apenas continuou apreciando a decoração enquanto cantarolava uma música bela, quase agradável para meus ouvidos, algo que fazia desde que me trouxe aqui.

Pelo que ouvi, ela contava uma história de um lobo que adotou duas crianças humanas. O lobo ensinou-as a caçar e dominar a natureza ao redor. No inverno eles se aninhavam juntos, até que as crianças cresceram e um inverno rigoroso chegou.

Numa prova de amor, o Lobo arrancou a própria pele com os dentes e cobriu as duas crianças e, quando a noite chegou, se atirou ao fogo, onde se tornou alimento para suas crias.

Era um conto trágico que retratava o nascimento dos Licantropos… uma história que mesmo eu conhecia, mas não esperava que um Nor conhecesse tanto do passado.

— Você é bem articulado para um monstro — sussurrei enquanto tentava me aquecer. — Quase faz parecer que tem inteligência.

O Licantropo sorriu com aquilo, mostrando as presas. Senti um calafrio ao ver o quão afiadas eram e lembrei do quão diferente eram os sorrisos para os animais.

Enquanto humanos sorriem para expressar felicidade, os carnívoros sorriem para mostrar os dentes como forma de intimidação.

— Eu sou mais inteligente do que pensa — disse enquanto se aproximava lentamente de mim. — Nós não sobreviveríamos nesse conflito sem esperteza. Admito que tem vários Nors burros, mas o mesmo também é verdade para vocês, não?

Senti a respiração dele no meu ouvido e comecei a tremer. — Seu irmão é um idiota. Eu sei sobre vocês dois… ele virá, e quando vir, vou arrancar o coração dele e te devorar em seguida. — Afastou-se e olhou fundo nos meus olhos. — Você parece um coelho assustado agora… mas não se preocupe… ainda vou fazer você sentir bastante medo.

Passou-se a primeira noite e eu mal consegui dormir. Estava com fome e frio, algo que meu carcereiro parecia não se importar. Ele apenas olhava para cima esperando meu irmão chegar com aquele sorriso no rosto.

Mais um dia se passou e nada do meu irmão. Estava varada de fome enquanto o nervosismo me consumia. O Nor não fez nenhum movimento desde aquela última conversa, algo que me incomodava. Como uma criança de quatorze para quinze anos, eu me entediava fácil e nunca odiei tanto esse fato como agora.

E-ei… você não tem nada para comer aí? — perguntei, com um sorriso nervoso. O Nor suspirou e puxou do bolso dois pacotes. Um continha carne crua e podre, já o outro… — Doces!

Ele me atirou o pacote cheio de guloseimas enquanto guardava o pacote podre no bolso. Aquilo me deixou curiosa e imediatamente perguntei se não ia comer.

— Essa carne está no meu bolso há algumas semanas… sem dúvida que o odor concentrado dela mataria sua vontade de comer — comentou enquanto eu enchia a boca com um chocolate. O gosto era um dos melhores que eu já havia comido e percebi o porquê assim que olhei a embalagem.

Era de uma marca cara e que apenas nobres ou comerciantes conseguiam comprar. Crescendo num orfanato e sem nada, nunca pude experimentar o gosto daquilo e, sem sequer perceber, disse um “obrigada”.

— Não há de que…

Aquilo me deixou surpresa. Nors sempre eram descritos como monstros que jogaram a racionalidade fora, mas ele… o estranho tinha boas maneiras e era caridoso com alguém que seria um inimigo no futuro.

Talvez ele sequer me veja como uma adversária digna e seja por isso que ele me deu esse chocolate. Tenho certeza de que deve ser isso… bem, quando meu irmão chegar, ele vai ver só!

Ainda era estranho que ele tinha um chocolate consigo… não é como se ele se importasse o suficiente para conseguir isso e, até onde eu saiba, Nors não podem consumir coisa que não seja carne… então por quê?

— Eu consegui isso de um amigo que trabalha numa das fábricas. Tem… algumas crianças mestiças no ninho… elas sempre preferiram doces a carne humana — disse e então sorriu de maneira arrogante. — É feio falar de boca cheia, sabia?

Senti minhas bochechas corarem ao perceber que disse aquilo em voz alta. — Mestiços? Tá falando dos filhos de Nors e humanos? — perguntei, mais para mudar o rumo do assunto e saciar minha curiosidade. Alguém como ele não parecia ser um Mestiço e não era como se ele fosse um santo também.

— Eu sempre me considerei alguém justo… e pessoas morrerem sem ter a chance de revidar sempre pareceu injusto para mim — falou, a postura caindo um pouco.

— Mentiroso! Se isso é verdade, então por que tá me mantendo presa?

— Não é relevante.

— Pra mim é! — gritei e me levantei. Tinha um pouco de chocolate manchando minha boca, mas não me importei. O nervosismo entrou na maior das proporções e queria apenas descontar minha raiva. — Olhe pra mim! Como pode dizer que não é relevante? Sou eu que estou sendo feita de refém! É meu irmão quem você quer matar! Me responta!

Ele rosnou. Notei como as garras dele se alongavam e meu coração palpitou mais alto no peito. Engoli em seco mas não desviei o olhar. Se eu fosse morrer, encararia a morte de frente, como meu irmão faria por mim.

— Esse mundo não é justo, criança idiota! — rugiu, sua pele se expandia e sangue começara a jorrar dos buracos na carne, onde um exoesqueleto começara a sair. — Há coisas que, não importa o quanto você lute, jamais poderá mudar. — Ele pareceu se acalmar enquanto a transformação recedia.

Engoli em seco e cai no chão, meus joelhos estavam bambos e meus olhos úmidos com lágrimas de medo e frustração.

— Não me orgulho de minhas ações. Não pense que gosto de fazer isso… Estamos numa guerra. Nós não escolhemos lados nem quem vamos matar. Não temos escolha. Nem eu, nem você.

Ele desviou o rosto e voltou a olhar para a escada, já eu processava o que dissera e o quão verdade aquilo era.

Lewnard foi posto numa guerra desde seu nascimento e, sem dúvidas, um dia teria de matar pessoas e fazer todo o tipo de ato questionável.

Olhei para minhas próprias mãos e pensei se conseguiria amá-lo caso ele tenha que sequestrar e matar crianças… e se torne um monstro.

Não… eu provavelmente não conseguiria.

Olhei para aquele monstro e não senti nenhuma repulsa nem ódio dele. Era algo diferente do que eu esperava e apenas fiquei paralisada ao identificar esse sentimento.

— Não vai terminar o chocolate?

Aquela dor e tristeza nascidas da empatia, a forma como minha garganta se contraia e um vazio adentrava meu peito só de olhar para ele… Conhecia bem esse sentimento e jamais imaginei que direcionaria isso para um inimigo.

Eu, Grace Hollick, olhava para um Nor com não desprezo ou cautela como fui instruída desde minha infância, mas sim com pena que direcionaria a um herói trágico.


Desculpe o atraso de um dia, ontem eu estive ocupado e precisei resolver umas coisas.

O lado bom é que o próximo lançamento é de 'A Lenda do Destruidor', no dia 15/01... 

Até logo...



Comentários