Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 9: Salvação Divina

Ele prendeu a respiração.

Atrás do portal para o suposto andar bônus, estendia-se um vazio metálico e completamente estéril, inundado por uma fria luz branca, sem qualquer fonte visível, que criava uma estranha sensação de delírio. No ar, cruzavam linhas luminosas como raios de um arco-íris, desencadeando um espetáculo de cores hipnotizantes em contraste ao fundo monocromático.

Cada linha vibrava num zumbido sutil que preenchia o ambiente e, ao tocar numa delas com a lâmina de Aglavros, o rapaz sentiu o corpo estremecer com um intenso formigamento.

Prana.

Aqueles raios multicoloridos eram instâncias da energia da alma, que alimentavam o gear e impregnavam Akito de um poder que jamais sentira.

— Quinteto de Espadas — ele sussurrou, disposto a experimentar qual a diferença em sua técnica — Kyoko!

Numa investida, o filho do deus da guerra usou da força que lhe restava nos braços e pernas, junto da velocidade ao avançar numa carga, concentrando todos os vetores de seu poder na ponta da espada, e ao desferir um corte feroz de cima para baixo, colocando toda a frustração de sua impotência maculada pela experiência traumática de quase morte, a lâmina se incendiou num fulgor e rasgou o vazio infinito. Ao redor dele, um tornado de cores ameaçava unir-se em branco puro, mas antes disso, os braços do espadachim fraquejaram e o poder acumulado explodiu num estrondo como se rompesse a barreira do som.

Akito foi arremessado para trás e caiu. Ofegante pelo esforço hercúleo, ele sentiu as costas molhadas e só então reparou que o chão era um espelho d’água, perfeitamente calmo não fosse uma única onda gerada por sua queda, que se expandiu num círculo a perder de vista. Com o ambiente de volta a placidez mórbida, ele reparou que a superfície líquida refletia as luzes num efeito de duplicação infinita e, sentando-se para melhor estudar aquele plano, notou que era mesmo incapaz de discernir seus limites.

A paisagem tinha uma atmosfera desconcertante, preenchida de todo aquele Prana que fluía sabe-se lá para onde, como se estivesse em algum lugar entre sonho e uma existência distorcida. Para agravar ainda mais o sentimento incômodo, o rasgo que Akito fizera na própria realidade permanecia há uma curta distância, despindo aquela casca artificial para revelar um vazio de negrume mais escuro do que a noite.

Obrigando-se a manter a calma, ele procurou a entrada que usou para chegar até ali, mas não havia nenhum indicativo de onde estava o portal. Se aquele era mesmo um andar bônus, haveria algum requisito a cumprir antes de retornar e provavelmente também uma recompensa.

Será que a masmorra me trouxe até aqui para suprir minha deficiência de Prana?

Não era um pensamento completamente descabido, apesar de ele nunca ter ouvido falar num aumento de energia da alma por exposição ao ambiente. Ainda mais estranho seria o fato da Babel Verdadeira, impiedosa mesmo para com os fortes, nivelar o jogo para um Caçador fraco simplesmente porque ele persistiu em quase morrer.

O rapaz então se voltou para o rasgo, uma escarra de negrume que continuava a observá-lo. Se aquele lugar era um invólucro para escuridão oculta, a fresta que ele talhara devia ser a resposta.

Não havia outro caminho,apenas de observar a infinitude metálica Akito soube que não chegaria a lugar nenhum, ainda que seus instintos o compelissem a se afastar da escuridão. Mesmo assim, ele avançou cauteloso, determinado a cutucar a fenda com sua espada.

Foi quando um estranho ruído metálico escapou do rasgo, feito um guincho agonizante. Levou o espadachim a se afastar num salto para trás, colocando uma boa distância entre ele e a fenda, bem a tempo de evitar a criatura que emergia dali.

A princípio ela parecia apenas uma forma cinzenta e vagamente humanoide que veio deslizando pela escuridão, menor que um grão de areia, mas ao ser arremessada pela fenda, sua figura revelou-se como alta e majestosa. Vê-la naquela imensidão de sombras provocou-lhe uma estranha dor de cabeça, mas ao materializar-se numa mulher de longos cabelos dourados que fluíam em ondas suaves até a altura dos ombros e cujo brilho remetia ao esplendor do sol naquele mundo infértil, Akito foi preenchido de um estranho acolhimento.

Sua pele alva e imaculada contrastava o negrume da armadura que trajava por cima de uma longa túnica carmesim, consistindo numa placa de peito que cobria da região torácica aos ombros, com uma gargantilha de ferro ao redor do pescoço, braçadeiras robustas, uma cota de malha oferecendo proteção adicional e um elmo ático muito bem polido com asas esculpidas em ambos os lados, finamente trabalhadas com penas em relevo, além da escultura de uma coruja de olhos expressivos e garras delicadas no centro. Em cada lateral do elmo, próxima às asas, havia também uma incrustação de pequenos cristais rubros. Por sobre a armadura ela vestia uma longa capa negra e nos pés usava sandálias de um tom fosco de vermelho.

Apoiada sobre um joelho, ela usou de uma lança longa, numa das mãos, para se colocar de pé e virou o pescoço para encarar Akito. Seu rosto estava coberto por uma máscara rubra, trabalhada em metal com uma expressão serena de linhas suaves, contornos elegantes e bordas arredondadas.

Para o rapaz, ela pareceu que diria alguma coisa, mas foi interrompida por outra forma que emergiu da escuridão. Esta tinha uma compleição impossível de determinar à primeira vista se era homem ou mulher. Akito estudou seu rosto, de desenho suave, com uma mistura de espanto e curiosidade, que exibia uma beleza delicada e olhos hipnotizantes, cor d’água, brilhando numa expressão perspicaz. Seus cabelos eram originalmente castanhos, mas foram visivelmente tingidos de loiro, e o aspecto mais distintivo de sua aparência era um par de pequenos chifres de diabo, que se elevavam sutilmente de sua cabeça.

Olhando de Akito para a figura de armadura, aquele ser deixou escapar um sorriso travesso de seus lábios suavemente curvados, que fez o sangue do rapaz gelar, emanando ao mesmo tempo inocência e malícia.

— Não adianta, não se esconda — pediu, ao adentrar naquele plano metálico, sua voz melodiosa num timbre etéreo. — Nada poderá me deter agora que estou a um passo de derrubar essa torre de pecado.

Erguendo o braço esquerdo, ele invocou uma esfera de sombras flamejantes que mergulhou o ambiente em crepúsculo, lançando chamas de um calor gélido. Sob sua cabeça apareceu uma pequena coroa de fogo negro, flutuando tombada para a direita, feita da mesma terrível energia sombria.

— Confesso que eu esperava um pouco mais daquela que ostenta o título de deusa da sabedoria e da guerra. Queime junto dessa existência falsa que o Conselho da Eternidade erigiu. Nada restará ante ao poder do meu Sol Sombrio!

A criatura fez saltar da esfera uma torrente de chamas, que arrepiou todos os pelos da nuca do jovem espadachim, ainda que estivesse a uma distância segura da peleja. Sua oponente firmou os pés no chão e materializou um escudo com o rosto de górgona, que imediatamente abriu os olhos, repelindo o fogo sombrio com uma força invisível antes dele sequer tocá-lo.

Em seguida, ela concentrou energia dourada no punho, atirou a lança para o alto e investiu num piscar de olhos para desferir um soco no oponente. Mesmo com sua Visão Perfeita, Akito foi incapaz de acompanhar o movimento, apenas discernindo quando o golpe acertou precisamente o rosto andrógino do usuário de chamas.

— Punho Divino! — ela exclamou, com a voz ligeiramente distorcida pela máscara e um brilho ofuscante d’ouro envolveu o inimigo.

Quando o clarão se dissipou, o rapaz arfou ao ver que a face dele continuava esmagada pela pressão do golpe, mas afora isso o mestre do fogo negro permanecia incólume.

— E com isso você planejava me purificar? — indagou em sua voz tranquila, permeada de encanto e falsa virtude. — Logo eu, Angra Mainiu, o deus da escuridão, a antítese de Ormuz.

Ele cruzou os braços na frente do rosto e canalizou a energia do Sol Sombrio para liberar uma onda de labaredas que se transformaram em correntes negras. Akito, novamente, mal acompanhou quando a combatente de armadura tentou escapar com um sobrepasso para trás, mas já era tarde.

— Fique eternamente presa em grilhões de escuridão: Emissário da Noite! — logo que ele terminou de falar, a guerreira se viu aprisionada pelos pés e mãos, além de uma das correntes deslizar feito cobra para agarrar-lhe o pescoço.

Sufocada naquela escuridão, a mulher deixou escapar um lamento e Akito notou embasbacado que uma espécie de plasma dourado fluía dela para Angra-Mainiu. O escudo caiu-lhe das mãos, porém, ela tinha forças para ainda resistir, concentrando a energia dourada de seu corpo numa aura que fez as correntes estremecerem.

— Réquiem Divino! — exclamou, lançando uma sobrecarga de energia que obliterou seu cárcere numa onda de choque e afastou tanto o deus da escuridão como Akito, que imaginou se o requisito para resolver o andar bônus não seria dar fim àquela batalha. O que estava claramente fora de suas capacidades.

Mainiu foi arremessado para longe, mas caiu graciosamente numa acrobacia, sem ferimentos, mesmo que o rapaz tivesse de usar toda a sua força para se segurar diante do impacto daquele golpe, ainda que há vários metros de distância. A guerreira mascarada, entretanto, não abriu espaço para um contra-ataque e emendou uma segunda investida logo que seu inimigo colocou os pés no chão.

— Roda da Fortuna! — disse, num bater de palmas, materializando uma enorme roda de metal com seis raios, esculpida com uma figura metade anjo e metade demônio no topo, além das estátuas de um bebê, menino, jovem, homem e um idoso gravitando ao seu redor.

Imediatamente, os raios da grande roda giraram para se desprender, rapidamente substituídos por novos ao se transformarem num enxame de espadas. A um comando dela, as espadas cercaram Mainiu e caíram sobre ele cortando e estocando para todos os lados, mas o que pasmou Akito foi a graça com que o deus da escuridão se esquivava de todos os ataques com a leveza de uma pluma.

— Já chega dessa futilidade — ele decretou, pela primeira com um sorriso que mostrava todos os dentes, e canalizou as chamas negras em sua mão, moldando-as em uma lâmina. — Gladius Tenebrarum. 

Por um triz a mulher se esquivou, jogando seu corpo para o lado, mas a roda da fortuna partiu-se ao meio com o simples toque do fogaréu tornado em espada, que a incendiou e consumiu todas as outras lâminas, deixando apenas um rastro de cinzas. Ela, porém, valendo-se de reflexos em combate que Akito invejou, aproveitou-se da esquiva para cair num rolamento que a armadura pesada não atrapalhou em nada, chamando por sua lança.

— Metamorphosblade… — a uma palavra da guerreira a arma se transformou numa espada longa, feita de coral, com pequenos cristais se projetando da guarda na forma de nadadeiras simétricas, flanqueando uma joia esmeralda — Regalia Imperial da Ondas!

A lâmina possuía um leve tom de verde com linhas ornamentais de cor azul-marinho e explodiu num espirro d’água coroado de alva espuma do mar ao bloquear o arremate da Gladius Tenebrarum.

— Volte para o Abismo, deus herege — ela o repreendeu, fazendo com que a espada mudasse de forma outra vez. — Ventos de Furacão!

A lâmina se dividiu num par de Sai, punhais cegos com longas projeções centrais contrariamente direcionadas. Cavalgando o vento que sua nova arma chamou para aquele mundo alienígena, ela dançou em estocadas ao redor do deus da escuridão.

Mainiu, porém, tinha a desenvoltura de um bailarino e ao se esquivar de um golpe em que ela precisou abrir mais a guarda, contra-atacou com um pilar de chamas do Sol Sombrio, engolfando a oponente por completo.

— Parece que é o fim, Atena…

— Varunastra! — ela ressurgiu com a armadura chamuscada, dissipando as labaredas com uma alabarda de guarda circular dourada e uma fita púrpura amarrada logo abaixo da lâmina.

Foi sua vez de avançar, transformando a armada de novo em meio à investida. A técnica de movimentos primorosos fez brilhar os olhos do filho do deus da guerra, fazendo-o imaginar se era possível decifrá-la com sua Visão Perfeita.

— Tormentífera! — era uma lança de duas pontas conectadas à haste numa roda grafada com uma coruja. A roda permitia que as duas pontas criassem uma cavidade entre si, de onde saltaram relâmpagos para abrir a guarda de Angra Mainiu.

Uma fita branca que, presa na haste por um nó e caindo pela lateral como dois fios soltos, decorava a lança, tremulou numa estocada sem chances de esquiva, mas para a surpresa dela e de seu espectador, o deus da escuridão agarrou a arma em pleno movimento, recebendo apenas um arranhão ao deter a investida.

— Tormenta Obsidiana! — Mainiu concentrou a energia das chamas.

Rapidamente, entendendo o que aconteceria, Atena soltou a lança e performou um salto acrobático para invocar seu escudo, mas ao invés de se proteger, ela girou o corpo e o arremessou para o jovem espadachim, cujo raciocínio de guerreiro desta vez não lhe falhou. Akito sentiu os ossos de ambos os braços estremecerem ao segurá-lo, bem a tempo dos olhos de górgona se abrirem para protegê-lo da explosão avassaladora que se espalhou por todas as direções, consumindo tudo em seu caminho.

Quando as chamas finalmente cessaram, o rapaz baixou a defesa para ver como ficara sua salvadora e se assustou ao ver Atena sem o elmo, com a armadura em ruínas. Mainiu caminhou até ela e pisou com força em seu peito, mantendo-a caída no chão.

— Tola — ofendeu-a com um largo sorriso a tomar conta de seu rosto —, é justamente essa a fraqueza do Conselho da Eternidade. De que adianta sacrificar a si mesma para salvar aquele verme se assim que eu acabar com você matá-lo-ei?

Os olhos de Atena eram como o reflexo de um céu sem nuvens quando ela virou o rosto para Akito. Há alguns minutos ele estivera à beira da morte na masmorra e foi por sua curiosidade inconsequente que chegou até ali para atrapalhar.

Essa batalha não é minha!

Não era mesmo.

Eles são muito mais fortes!

De fato eram.

Mas eu preciso fazer alguma coisa!

Precisava mesmo.

Olhando ao seu redor ele ainda discernia as linhas de Prana e canalizando-as, concentrou toda a energia que fluía desde a lâmina da espada em seu jogo de pés, criando uma pós-imagem de si mesmo ao atacar num avanço suicida para libertar sua salvadora.

— Ponha-se no seu lugar, verme — ralhou o deus da escuridão, lançando contra ele uma torrente de chamas.

— Quinteto de Espadas… — ele chamou pelo nome de sua técnica, com as linhas de Prana como que numa aurora boreal ao seu redor, ameaçando fundirem-se num branco puro — Homura!

O fogo negro engoliu a imagem residual e Akito desferiu um corte à queima-roupa. Ainda assim, era lento demais em comparação àquele inimigo mitológico. Mainiu estendeu o braço e com um dedo deteve a lâmina de Aglavros.

Mas, se a força dos braços de Akito foi insuficiente, desta vez a Prana ressoou em uníssono e um fio luminoso saltou do aço para beijar a face do deus, arrancando-lhe uma gota de sangue dourado na vergastada.

— Impossível! — Angra Mainiu urrou, numa fúria que pela primeira vez abalou sua aura de confiança e travessura. — Pecador imundo que escala Babel, como ousa erguer seu punho contra um deus!

Com um simples peteleco ele despedaçou o gear do filho do deus da guerra e arremessou o rapaz para longe. Ao cair, Akito sentiu vários ossos se quebrando e fitou o inimigo com a vista turva. Sem forças, ele assistiu à divindade dar um único passo em sua direção, antes de ser perfurado por Atena.

— Joyeuse… — ela materializara sua lança e a transformou numa espada de lâmina cinzenta e guarda decorada em rosa, lembrando um par de asas de serafim, com uma joia gris esférica contendo a efígie de uma coruja no centro.

— Mal… ditos… — sangue dourado escorreu de sua boca e a coroa de chamas que ele usava para controlar o Sol Sombrio desapareceu, ao mesmo tempo em que tentava canalizar o resto de seu poder para arrancar a espada que lhe varou o peito.

— Fez mal em me subestimar — o rapaz balbuciou para Mainiu. — Um verme pode muito bem se transformar num demônio!

A luz se apagou em seus olhos e Akito finalmente se deixou envolver pelo acolhedor abraço da escuridão.



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