Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 8: Andar Bônus

Akito sentia apenas um leve formigamento.

Não obstante forçasse uma expressão estoica no rosto, a situação era desesperadora. O veneno do Basilisco tomara seu corpo, enroscando-se feito uma serpente para lhe injetar paralisia. Antes veloz e resistente, sua atual condição mais lembrava uma marionete quebrada, amarrado por cordas a um maciço tronco de árvore.

— Você… deve ter enfurecido alguém de altíssimo escalão, não é verdade? — Arcandros indagou num sussurro gélido. Sua fala era lenta e deliberada, cada palavra cuidadosamente escolhida. — Acho que nunca vi um contrato de assassínio ser encomendado no mesmo dia que o Caçador chegou à Fantasia.

A mente de Akito permanecia lúcida, mas o corpo teimava em não responder. Seu olhar, ainda aguçado e perspicaz, varria o ambiente em busca de salvação, mas a única coisa que ele divisava eram árvores de galhos tortos e folhas de um verde doentio, silenciosas testemunhas de um destino selado.

— É uma pena ter de lidar com você num ambiente tão inapropriado, Sr. Urushibara — o timbre do Basilisco era rouco e profundo, ecoando feito o som de pedra contra pedra. — Em condições adequadas eu seria capaz de fazê-lo durar dias sob meus cuidados. Todavia, o contrato tem como máxima prioridade a incapacitação permanente do alvo.

Os sons da natureza ao redor eram indiferentes ao seu sofrimento. O vento sussurrava entre as folhas e os pássaros continuavam seu canto tristonho na Floresta do Inferno. Até mesmo o sol brilhava impiedosamente no céu azul da masmorra.

Sentindo na pele uma brisa, Akito desejou lutar contra o destino que o aprisionara, ao mesmo tempo em que seu algoz começava a retirar dos bolsos seus instrumentos de dor: um martelo pequeno, meia-dúzia de pregos, e uma garrafa d’água.

Os olhos do rapaz se fixaram no horizonte, nas últimas lembranças de um mundo que se desvanecia. Em seu íntimo, ele tentava manter viva a chama da esperança, mas à medida que a escuridão o envolvia essa chama minguava, e as árvores a sua frente pareciam murmurar pesarosas.

Com uma estranha delicadeza no toque gélido, Arcandros o despiu de sua jaqueta e camisa, deslizando um dedo longo e pálido pelo torso nu de músculos torneados. Em seguida, ele despejou a garrafa d’água em Akito, tendo a certeza de molhar o cabelo e espalhar bem o líquido com a palma da mão em seu peito.

— Está vendo esse pequeno anel? — o assassino perguntou, retirando do bolso uma peça de joalheria, polida com cuidado para exibir um suave brilho metálico, com a superfície gravada em runas angulares e fluídas. — Ele é ativado a um toque do usuário, as runas começam a brilhar à medida que o poder se acumula, e quando atinge o pico descarrega uma corrente elétrica. Permita-me demonstrar.

Ao encaixá-lo no anelar da mão esquerda, as runas faiscaram num leve fulgor, até que um raio azulado saltou para atingir o peito de Akito. Uma explosão de dor irrompeu por todo o seu corpo, a eletricidade dilacerando-o por dentro, e uma sensação de calor abrasadora o envolveu instantaneamente.

Sua mente se obscureceu em meio à intensidade do choque, e um turbilhão de visões fragmentadas e sons distantes fizeram-no sentir uma profunda agonia, enquanto os músculos se contraíram violentamente. O sofrimento era quase indescritível, com o mundo ao seu redor se desfazendo num borrão de luz e sombra.

— É muito cedo para encontrar a paz, Sr. Urushibara! — exclamou o Basilisco em êxtase, fazendo outro relâmpago azul dançar pelo torso molhado de Akito.

Estilhaços de memória encheram a visão dele: seu pai se despedindo, os homens de terno preto no escuro, a casa de seus avós, seu mestre, a batalha contra Nicol Chevallier, a guilda Brigada de Estrelas, Layla Pearson, os goblins…

Os goblins!

Sua mente se iluminou num súbito clarão, que bem poderia ser a ardência de mais um choque mortal, inundada pela voz de Corrin. Ele dissera para terem cuidado ao usar o gear na masmorra. Concentrar uma boa quantidade de Prana tornava os monstros mais agressivos.

Era isso! Finalmente um plano de fuga começava a se desenhar em sua mente. Arcandros se apoiava em veneno e itens mágicos porque ele sabia que usar o poder da alma chamaria a atenção dos monstros, exatamente o que Akito precisava fazer. Sua melhor chance era atrair as criaturas para dar combate ao Basilisco, aproveitando-se da confusão para escapar.

Dois problemas me surgem, no entanto. O primeiro é que a quantidade de Prana em minha alma é baixa demais. Ainda que eu invoque Aglavros pode não ser o suficiente para atrair monstros com força para desafiar esse miserável. Já o segundo, é que eu não tenho como saber se o meu corpo estará em condições para escapar, mesmo que ele esteja suprimindo o veneno para que a tortura dure mais.

Não havia mais tempo para divagações, mesmo que fosse arriscado, o plano era tudo ou nada. Ele tinha de chamar por Aglavros e dissipá-la, fazendo com que o Prana residual se acumulasse, ao mesmo tempo em que distraía seu algoz.

Preciso fazer esse desgraçado falar!

Akito pigarreou e cuspiu sangue, mostrando ao Basilisco um sorriso carmim.

— Seus superiores devem estar mesmo desesperados para ter de se preocupar com um mero classe F.

— Ora, não se faça de tolo — Arcandros retribui-lhe com um sorriso anormalmente branco, guardando o anel de volta no bolso. — Quem foi mesmo que comprou essa briga? Você não é um simples caçador de classe F, Sr. Urushibara. Com certeza não é ameaça para os reis celestiais, mas ainda assim é perigoso.

Ele tomou o braço inerte de Akito e posicionou um prego sob a unha do indicador. Com uma batida de martelo a sensação angustiante dela se desgrudando da carne espalhou-se feito uma queimação, provocando um riso meio tossido em Arcandros que o rapaz se forçou a acompanhar.

Levante-se e me obedeça…

A espada se materializou numa batida de coração, para logo depois se despedaçar, liberando um tênue fio de cristal.

— Se eu não represento ameaça, por que se preocupar? Essas atitudes drásticas apenas confirmam o que eu já sabia sem ninguém ter me dito e seu mestre Henzo Hashimoto quer esconder: a minha irmã está aqui!

Outra pancada do martelo e dessa vez a unha foi arrancada por completo, deixando um fio de sangue na carne exposta ao cair. O filho do deus da guerra trincou os dentes para conter o grito, enquanto Arcandros posicionava o prego noutro dedo.

— Eu não sei quem é a sua irmã, moleque. E não tenho nenhum mestre! — O assassino vociferou, descontente por ser tomado como um rufião qualquer. — Aceitei o contrato para te matar e isso basta. O que os reis celestiais estão escondendo não me importa.

Aglavros!

A espada se materializou, para logo desaparecer quando o Basilisco acertou outra pancada de martelo. A visão de Akito se estreitou e pontos de luz dançaram pelas copas das árvores.

— Não minta para mim… — o rapaz balbuciou e, arfando, juntou todas as forças para formar mais uma frase. — Havia registro dela como uma Caçadora nessa cidade.

O assassino suspirou e com mais um golpe arrancou a segunda unha, o som do estalo apenas intensificando o horror da experiência. Uma dor tormentosa latejou da raiz de carne, mais uma vez espalhando-se por todo o corpo de Akito. Uma sensação tão avassaladora que ele sentiu embrulhar o estômago.

— Você é mesmo um sujeitinho angustiante, Urushibara — queixou-se Arcandros. — Não grita e não implora mesmo estando à beira da morte. Vou te fazer um favor e dizer o seguinte: se está procurando alguém que desapareceu sem deixar rastros, os reis celestiais são a sua melhor pista e um rei celestial que governa o submundo é um excelente início. O problema é que você nunca vai chegar ao fim disso. É simplesmente impossível, porque você é um inimigo desta cidade. Quem quer que tenha pensado o sistema de classificação de Caçadores o fez para que os fortes governassem os fracos e previu até mesmo a criminalidade. O Submundo tem lugar em Fantasia, o trabalho sujo precisa ser feito e o melhor é que seja por alguém de dentro. Mas e você, Akito? Pode dizer o mesmo? Será que há um lugar para você nessa cidade em que a simples ideia de um Caçador sem talento galgar o topo é um pecado?

Outra vez, Aglavros se quebrou feito vidro, deixando um filete de Prana residual no ar.

— Não! — Arcandros respondeu sua própria indagação com um aceno negativo de cabeça. — Então, por favor, pare de invocar o seu gear, achando que essa conversa mole está me distraindo. Você não tem mais forças. Entregue a sinfonia de gritos e desespero que vim até aqui para reger!

Ele posicionou outro prego, desta vez sob a unha do dedo médio de Akito, preparou uma martelada e…

BAM!

Não muito longe de onde eles estavam soou o estrondo de uma árvore derrubada em meio à floresta.

Sobressaltado, o assassino desistiu da tortura por um momento e ergueu-se para espreitar os arredores, notando, para seu espanto, um alto farfalhar que ficava cada vez mais próximo.

BUM! BUM! BUM!

O som de algo pesado, que parecia explodir contra o chão, estremecendo as copas das árvores, vinha ao encontro deles.

— O quê…? — indagou-se o Basilisco, mas foi interrompido pelo riso insano de Akito.

— Será mesmo que eu não te enganei?

BUM! BUM! BUM!

Arcandros virou-se para ele perplexo e conforme o entendimento lhe chegava, pela primeira vez Akito viu medo em sua face lívida.

BUM! BUM! BUM!

— A espada… Você tem ideia do que fez?!

Não havia tempo para dizer mais nada, uma sombra gigantesca saltou do meio das árvores para aterrizar diante dele.

BUM!

À primeira vista o monstro parecia um gorila albino. Uma verdadeira parede de músculos com quase dois metros e meio de altura, mas um olhar atento revelava seus quatro braços feito toras de madeira, além das presas afiadas como navalhas e garras compridas.

Num golpe de punho cerrado, a criatura destruiu o tronco em que Akito estava preso, arrebentando as cordas. O monstro, na realidade, tinha Arcandros na mira, porém, o assassino fora rápido em se esquivar do primeiro ataque com um rolamento, colocando-se no flanco do oponente.

— Gear… — ele chamou pelo poder de sua alma, mas, provavelmente desacostumado ao combate contra inimigos em iguais condições, o Basilisco ignorou o segundo par de braços da criatura.

Ainda olhando para cima, esperando um golpe vindo dali, ele mal notou quando o monstro lhe agarrou com os braços inferiores, perfurando os lados de seu corpo com as longas garras. A besta então rugiu cara-a-cara com ele, engolfando Arcandros em seu bafo quente, banhando-o em saliva.

ROAR!

Com o Caçador bem preso, a criatura usou os braços superiores para segurá-lo e num puxão dilacerou aquele pretensioso assassino, rasgando-o ao meio. O som do corpo humano se partindo feito uma boneca de pano fez Akito estremecer.

Felizmente, a primeira parte de seu plano fora um sucesso, mas se por um lado o rapaz estava livre, por outro restava a parte mais difícil naquelas condições: a fuga. Ele tentou se arrastar, recuperando o mínimo dos movimentos do corpo, e sentiu um frio na espinha ao ouvir carne sendo mastigada.

Akito não precisava se virar para saber que a criatura engolira o corpo do Basilisco, mas sentindo o olhar fulminante dela em suas costas, decidiu que não morreria feito covarde. Usando das últimas forças para virar o corpo, ele caiu de costas na grama e fitou os olhos cruéis do monstro.

BUM! BUM! BUM!

A passos pesados a besta caminhou lentamente na direção dele, com a boca suja pelo sangue de Arcandros. 

Desculpe, pai. Não vou cumprir a nossa promessa. Perdão, Mayumi. Seu irmão não pode salvá-la. Mesmo passando pelo inferno no treinamento e me cercando de orgulho como numa armadura, para evitar a contaminação com minha própria fraqueza, no fim era mesmo impossível.

Lágrimas escorreram por seu rosto, embaçando os óculos. Indiferente ao seu medo e sofrimento, a criatura rugiu outra vez, abaixando-se para que seu rosto ficasse a centímetros dele.

No fim, apesar do que meu mestre dizia, eu tenho de admitir: se os Caçadores de Fantasia lutam contra monstros como esse, eles são mesmo alguma coisa.

Ele pensou em fechar os olhos antes do golpe final, mas se o tivesse feito não veria a linha prateada que surgiu no ar logo a sua frente, cruzando o torso do monstro. Boquiaberto, Akito fitou a criatura, que esbugalhou os olhos antes de ser partida ao meio com suas duas metades tombando pesadamente na grama, pouco antes de a linha se expandir até virar um retângulo prateado, mais ou menos do tamanho de uma porta.

Sem acreditar na própria sorte, Akito se arrastou, dando a volta naquela estranha forma geométrica, para averiguar a besta derrotada. Os olhos do gorila estavam completamente brancos e as entranhas saltavam para fora de seu abdômen, dividido num bolo putrefato de carne do que antes fora Arcandros, reconhecível apenas numa mão deformada em que estava grudada uma gosma que bem poderia ter sido um olho. Morto, sem nem mesmo um último rugido.

O mais sensato a se fazer era sair dali e buscar ajuda dos outros da guilda. Akito tinha o mapa de Corrin, afinal, e o estudou enquanto ainda tomava fôlego, estatelado no chão.

Aquele estranho retângulo prateado curiosamente o atraía, surgindo a todo momento em sua visão periférica, mesmo quando o rapaz tentava ignorá-lo. Contudo, ele não mais pode fazê-lo ao notar algumas indicações no mapa que assinalavam: “Andar Bônus”.

Será que aquilo era um andar bônus? A lógica dizia-lhe para não investigar. Corrin dissera que todos os andares da masmorra até o décimo foram completamente mapeados e ferido como estava, ele não manteria a consciência por muito tempo.

Entretanto, a forma retangular era estranhamente convidativa. Akito estudou-a, observando que não era possível ver para além da superfície prateada. Em seguida, ele chamou por Aglavros e mergulhou a lâmina no retângulo, puxando-a de volta após alguns segundos. Nada acontecera.

Olhando da espada para a opaca superfície de prata, juntou coragem e pôs ali sua mão, afundando-a quase até a altura do antebraço. Não sentiu nada e quando puxou a mão de volta ela não estava diferente.

Eu só espero que essa coisa não me mate.

Com esse pensamento, ele atravessou o portal.

 



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