Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 7: Basilisco

O homem estendeu a mão, pedindo por pagamento.

— Jenna, por favor — pediu Corrin, dando um passo atrás, para que a vice-mestra tocasse na palma da mão estendida do ascensorista.

Ela concentrou um pouco de seu poder na forma de uma aura violeta, que o estranho consumiu, antes de se virar para os aparatos que operavam o elevador. À medida que subiam pela masmorra, as paredes de latão se fizeram translúcidas e os aventureiros viram passagens que desapareciam tão rápido quanto surgiam, levando a diferentes áreas da torre.

— Quem é ele? — Akito perguntou a Corrin, sem tirar os olhos da figura que os conduzia.

— Caronte. Não precisa se preocupar, ele não é agressivo. Está aqui desde que os primeiros Caçadores vieram há trinta anos. Às vezes, outro sujeito, chamado Tânatos, o substitui, mas no geral é ele quem leva os aventureiros pela masmorra.

Akito grunhiu em concordância.

— Mas por que ele cobra um preço por seus serviços? Não seria mais fácil a Administração Geral remunerá-lo?

O mestre da guilda deu de ombros.

— Ele só aceita Prana ou antigas moedas greco-romanas. Assim, fica mais fácil que cada um dos que queiram usar o elevador, paguem de seu montante. A maioria não tem problema com isso.

— E como ficam os outros Caçadores que precisam se locomover pela torre enquanto estamos aqui? Quer dizer, só há um elevador para todos.

— Ninguém sabe ao certo — Corrin explicou —, mas ao mesmo tempo em que nós estamos aqui, outros também estão usando o elevador em diversos pontos da Babel Verdadeira. Alguns conjecturam que seja uma distorção espaço-temporal, que o elevador seria outra dimensão, ou que Caronte esteja em mais de um lugar ao mesmo tempo. É um dos mistérios da Cidade da Masmorra.

Mal ele acabara de falar, o elevador parou e as portas se abriram num ranger tormentoso para revelar uma densa floresta. Altas e frondosas árvores bloqueavam a luz do sol, criando uma escuridão constante debaixo do nível das copas.

Os Caçadores desembarcaram numa clareira mais iluminada e com vista para o céu, o que deslumbrou Akito. Havia sol e nuvens no interior da torre. A maravilha da impossibilidade quase lhe arrancou um sorriso, mas ao notar que Mila não demonstrava a mesma empolgação, ele se conteve.

— Sejam bem-vindos à Floresta do Inferno — o mestre da guilda abriu os braços para indicar a paisagem ao seu redor. — A mata está cheia de monstros, principalmente dos tipos humanoide e besta. Caçadores das classes E/D preferem esse andar porque não há criaturas mais poderosas do que as da classe intermediária e o chefe do andar foi derrotado há tempos.

"— Para começar, vamos nos dividir em dois grupos: o primeiro terá Mila, que não pode ir sozinha, já que é uma curandeira sem experiência em combate, e eu devo acompanhá-la para avaliar sua competência".

— Eu não vou com ele! — decidiu Jenna, dando um passo para longe de Akito.

— Não posso dispensar Petr para ir com ele, Jenna — Corrin argumentou. — Estamos com uma novata sem experiência, vamos precisar de um batedor no grupo principal.

A vice-mestra, porém, estava irredutível e negou furiosamente com a cabeça a sugestão implícita de seu companheiro.

— Tudo bem — Akito deu de ombros, não era novidade para ele ser a última escolha. — Eu vou sozinho. Basta marcarmos um ponto de encontro. Também vou precisar de algum item para não me perder, afinal desconheço o terreno.

Corrin hesitou.

— Minha ocupação é guerreiro — o filho do deus da guerra justificou. — Devo conseguir caçar monstros suficientes para obter sucesso no teste e ficar sozinho não é nenhuma novidade para mim.

— Que seja — concordou o mestre da guilda num suspiro.

Mexendo num bolso interno do moletom, ele puxou um pedaço de pergaminho. Akito o desdobrou para revelar um mapa cheio de pontos de interesse marcados.

— A Floresta do Inferno é um dos poucos andares completamente mapeados. Vamos marcar nosso ponto de encontro aqui: nos portões da Vila de E’en Shaeras, na clareira central.

Seu dedo deslizou para a indicação do nome de um assentamento, bem abaixo de uma grande árvore desenhada no mapa com a palavra “chefe” riscada logo acima.

— Para compensar a falta de supervisão, você pode vender tudo o que caçar e não precisa dividir os lucros com a guilda.

Jenna franziu o cenho ao ouvir o mestre dizer aquilo, mas antes que protestasse contra a decisão, Corrin ergueu um dedo e ordenou que se calasse.

— Você quer ir com ele?! — indagou-a, desafiando que o contradissesse.

Ela não discutiu, mas partiu dali com Mila, em meio a alguns resmungos.

— Boa sorte — desejou Corrin, seguindo-as com Petr em seus calcanhares.

***

Akito vagou sozinho pela floresta.

O cheiro úmido do ar e os barulhos estranhos na mata, não atrapalhavam seus sentidos ao ponto de não perceber que estava sendo seguido.

Por vezes, seu perseguidor tentava mesclar a presença com roncos baixos, uivos de lobo e sibilos de coruja, mas o silêncio inquietante fazia com que não restassem dúvidas ao espadachim de que alguém ou alguma coisa afastava os animais. Mesmo no solo coberto por uma camada espessa de musgo e folhas em decomposição, ele discernia o som de galhos se partindo e relva pisoteada, ainda que houvesse uma tentativa de se fazer passar por sons naturais.

Uma hora após ter se separado dos outros, Akito topou com um grupo de humanoides baixos, de rosto achatado, narizes longos e bocas grandes, cheias de dentes afiados. Goblins de pele verde musgo, vestidos em trapos de couro e restos enferrujados de armaduras. Seu líder, estava montado num gordo javali de presas lascadas e aparência arredia.

Em busca de observar a reação de seu perseguidor, o jovem espadachim resolveu dar-lhes combate, na esperança de que o inimigo oculto se revelasse em meio ao caos da batalha, e num saque rápido, a uma batida de coração, ele invocou Aglavros.

De imediato, os goblins se voltaram para ele. A primeira criatura avançou de forma temerária, brandindo uma faca de pedra rústica, enquanto um segundo goblin preparava uma flecha em seu arco tosco de madeira.

— Quinteto de Espadas: Kyoko!

Numa investida, Akito se aproveitou da força de seus membros mais longos que os do goblin, junto da velocidade de avançar numa carga ao encontro do inimigo, e concentrou todos os vetores de seu poder, direcionados na ponta da espada. Aquele era o maior poder ofensivo dentre todas as suas técnicas e, antes que o goblin assumisse uma postura defensiva, seu peito explodiu em sangue numa morte limpa e instantânea.

Valendo-se dos reflexos de luta treinados à exaustão, Akito cortou ao meio a flecha que o segundo goblin atirara e se esquivou de uma investida do furioso javali que o líder cavalgava.

— Sayaka!

Numa demonstração da técnica mais veloz do Quinteto de Espadas, ele executou um golpe em tal rapidez que ultrapassou a visão dinâmica do goblin. O inimigo ainda tentou encaixar mais uma flecha no arco, mas sua cabeça rolou do pescoço após o corte invisível e ele tombou.

Restava o líder goblin, que sacou uma espada quebrada, talvez a única lâmina de metal daquele trio maltrapilho, e arremeteu contra o filho do deus da guerra. Com um sobrepasso para o lado, Akito evitou o pior da investida, mas propositalmente não se afastou o bastante para sair do alcance da lâmina do goblin.

O golpe veio de cima para baixo, mas, ao receber o ataque direto, o espadachim absorveu a carga para, num giro, como se estivesse fazendo um círculo no próprio eixo, contra-atacar com seu Quinteto de Espadas: Madoka.

Aquele miserável goblin não estava preparado para o impacto e foi arremessado com força num tronco, quebrando o pescoço com o impacto, antes de cair morto num monte de folhas secas.

Por último o javali, meio sem rumo depois que seu mestre se fora. Era uma criatura esplêndida, apesar de mal-cuidada, que Akito em nenhum momento planejou equiparar em força bruta. Quando ele avançou, o rapaz manteve-se estático até o último segundo, evitando as presas num movimento mínimo do corpo, sem mover a espada ou se afastar do ponto em que atacaria.

— Quinteto de Espadas! — bradou. — Espada solitária, Tomoe!

Era a técnica mais difícil de se executar do quinteto, exigindo postura incomparável e a agilidade de um mestre espadachim para se esquivar do oponente tão próximo e com tão poucos movimentos. Tratava-se da habilidade de alcançar a verdadeira solidão, dissipando o mundo ao seu redor. Só havia lugar para Akito e sua espada.

Quando a lâmina, num bote de cobra, perfurou a cabeça do monstro, estava tudo acabado. A criatura desfaleceu num grunhido e seu corpanzil escorregou até bater no tronco de uma árvore.

Fora uma boa caçada, nada muito complicado. Como seu mestre dizia: os Caçadores de Fantasia eram como crianças, brincando de explorar no jardim.

Akito recolheu as presas do javali e uns poucos itens dos goblins que pareciam ter algum valor. O que de fato o incomodava era o inimigo escondido, mas não tardou para ele ouvir passos se aproximando, acompanhados num odor pungente.

Um homem tentou surpreendê-lo com sua adaga, mas o jovem espadachim se esquivou com um salto para trás.

— Esplêndido! — admirou-se o recém-chegado. — Você tem bons reflexos, garoto. Para escapar de um assassino da Classe C…

Ele possuía um rosto pétreo, quase como se fosse um monumento de si mesmo e sua expressão era fria, imperturbável, marcada por pequenos olhos de um gélido azul cinzento, que penetravam até a alma dos que ousassem encará-lo.

— É você que vem me seguindo desde que me separei dos outros? — Akito indagou.

O assassino sorriu ameaçador para ele, revelando uma coleção de dentes serrilhados, e passou a mão pelos cabelos cor de palha, meticulosamente divididos ao meio, que lhe caíam em mechas simétricas, emoldurando a testa.

— Você é mesmo um adversário perigoso, mas descuidado por andar sozinho. Há um contrato de assassínio com uma boa recompensa pela sua morte, Akito Urushibara.

— Então você é do Submundo?

— Sou Arcandros — ele respondeu, erguendo as finas sobrancelhas. — Arcandros, o Basilisco, ao seu dispor.

— Sei… — Akito assentiu. — Quinteto de Espadas: Homura!

Concentrando toda a energia na velocidade do jogo de pés, ele criou uma pós-imagem de si mesmo, para confundir seu algoz. Previsivelmente, Arcandros mordeu a isca e golpeou sua miragem com a adaga, providenciando a Akito uma abertura para desferir um corte à queima-roupa de cima para baixo.

Contudo, o golpe saiu mais lento do que o esperado e seu inimigo retomou o equilíbrio a tempo de desviar a lâmina de Aglavros com a adaga.

Gotas de um suor viscoso escorreram pela testa de Akito e uma violenta tremedeira se apossou de seus joelhos, fazendo o Basilisco gargalhar.

— O que está acontecendo? — inquiriu o filho do deus da guerra com a vista turva.

— Não vá me dizer que não está sentindo esse cheiro, Sr. Urushibara? — Arcandros provocou.

De fato, havia um forte aroma de decomposição no ar, que a princípio Akito ignorara, pensando tratar-se de algo que morrera na floresta.

— Eu não seria imprudente ao ponto de enfrentar de igual para igual um homem que derrotou a Cavaleira das Duas Rosas e saiu vivo contra Layla Pearson. Enquanto você lutava com os goblins, eu liberei no ar esta intoxicante fragrância de podridão, uma mistura de diversos venenos que adormece o corpo da vítima e a faz lentamente perder a consciência. Este meu Perfume Mortal age diretamente no sistema nervoso, anula os cinco sentidos e mergulha os oponentes na escuridão de uma morte pacífica. Não adianta prender a respiração, pois ele entra tanto pelas vias respiratórias quanto a pele.

— E isso não te afeta? — perguntou o filho do deus da guerra, amaldiçoando a si mesmo pelo descuido.

Arcandros caminhou na direção dele, ligeiramente curvado, como se carregasse um fardo. Seus passos trôpegos foram lentos e silenciosos a princípio, mas à medida que ele percebeu não correr mais perigo, ganharam um estranho ar de ameaça.

— Faz anos que eu venho desenvolvendo essa habilidade junto da minha resistência a venenos — ele respondeu, tomando Akito por um dos braços, antes de sentá-lo encostado numa árvore. — Mas você é forte, qualquer outro teria caído muito antes de sequer me ameaçar.

Ele amarrou o jovem espadachim ao tronco e calçou um par de luvas brancas, que combinavam com sua aparência discreta e elegante. Uma camisa branca, com as mangas cuidadosamente dobradas, calça de sarja, sapatos lustrosos e uma gravata púrpura, contrastando o tom monocromático da vestimenta. Não seria a primeira escolha de Akito para entrar na masmorra, porém havia algo naquela aparência corporativa que o aterrorizava mais do que a Babel Verdadeira.

— Isso não vai ser rápido — Arcandros revelou —, com a quantidade certa de dor eu posso evitar a morte por envenenamento. Nós ainda vamos nos divertir muito!



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