Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 6: Babel Verdadeira

Akito despertou ao raiar do dia.

A pálida luz do sol se espichava por entre as frestas da persiana, criando no quarto um efeito de penumbra. Fazia tempo que ele não se sentia tão revigorado após uma boa noite de sono.

Ao saltar da cama, dirigiu-se ao banheiro da suíte para lavar o rosto, um luxo que em muito contrastava a dureza de seu treinamento. Na noite anterior, ele inclusive se banhara com água morna, que caíra suavemente por seu corpo de músculos tonificados, marcado por uma miríade de cicatrizes esbranquiçadas. Antes de se deitar na cama, espalhando suas escassas posses pelo chão do quarto.

Observando os pertences de sua antiga vida, Akito mal acreditava nos anos que se passaram desde que se mudara da casa dos avós para ingressar no dojo de artes marciais de seu velho mestre. Ele tomou um velho par de calças e as vestiu junto de uma camisa bege e desbotada para descer ao encontro dos outros, mas achou o castelo em silêncio. 

Ao caminhar um pouco, analisando uma série de cômodos desocupados, deparou-se finalmente com uma sala de jantar ampla e bem iluminada, com janelas altas que permitiam a entrada de bastante luz natural. No centro do aposento, havia uma grande mesa de madeira maciça, com cadeiras robustas, de couro macio nos assentos e encostos, ao seu redor.

Foi numa delas, um pouco mais afastada do clarão que irrompia das janelas, que ele encontrou Corrin, servindo-se de uma farta tigela de cereal para o desjejum.

— Os outros continuam dormindo — comentou o mestre da guilda, estranhando a sua presença. — Você também se beneficiaria de mais algumas horas de sono.

Observando os arredores, Akito reparou nas tapeçarias coloridas e armários com portas de vidro, exibindo armas brancas e armaduras, que decoravam as paredes da sala.

Sem dar muita atenção a Corrin, ele murmurou que não havia necessidade daquilo, mas seus olhos se voltaram para um grande relógio. Posto acima de uma lareira ornamentada, que decerto servia para aquecer a sala de jantar em dias mais frios, acusava serem apenas seis horas da manhã, corroborando o espanto do mestre.

— Fui ensinado a tirar o máximo de proveito do mínimo de horas de sono, para ter a melhor recuperação e nunca me descuidar dos horários de treino — explicou, também se sentando. — Com o tempo meu corpo se acostumou. Mas, e você? Não devia estar dormindo?

— Não preciso disso.

O riso enigmático que se seguiu, aumentou as suspeitas de Akito acerca dele. Os dois tomaram juntos um breve desjejum, após Corrin indicar o caminho da despensa. O mestre da guilda aproveitou para perguntar o que ele faria enquanto esperava pelos demais.

— Treinar, é claro! — exclamou o filho do deus da guerra, com a boca cheia de um delicioso pão açucarado. — Um guerreiro que abandona sua técnica erra fatalmente.

— Está mesmo um belo dia para se exercitar ao ar livre, mas eu mesmo não gosto de me expor ao sol forte. Faça-me um favor, Akito, e veja se está tudo bem com o jardineiro.

***

Ele bateu duas vezes com o punho antes que a porta do casebre se abrisse.

A estrutura da choupana era bem simples, paredes de pedra cinzenta desgastada, pequenas janelas retangulares e um telhado circular de madeira com telhas de barro, de onde emergia uma chaminé tomada de vinhas.

— Não está cedo demais para isso, Corrin? — uma voz baixa e rouca ecoou por detrás da porta. — Ontem não foi uma das noites difíceis…

Ele se interrompeu ao espiar pela fresta com um olho profundamente escuro.

— Você não é o Corrin — observou.

— Não — Akito devolveu secamente.

— E quem é você?

O espadachim se apresentou a ele, esclarecendo tratar-se do mais novo recruta da Brigada de Estrelas e arrancou do sujeito um grunhido em concordância.

— Nesse caso, seja bem-vindo — ele o cumprimentou em sua voz soturna, abrindo mais a porta para estender a mão num aperto e ver melhor o visitante. — Meu nome é Barmon e sou o responsável pelo jardim.

Entredentes, Akito murmurou que era um prazer conhecê-lo, torcendo o nariz pelo forte cheiro de álcool barato impregnado no jardineiro. Dando uma boa olhada em Barmon, reparou em seu rosto encovado, com rugas que atestavam para a idade mais avançada, corroborada pelos cabelos brancos e cavanhaque com um bigode farto e desgrenhado.

À primeira vista, o filho do deus da guerra imaginou que a camisa amassada e o fedor denunciavam uma boa dose de bebedeira como sendo a “noite difícil”, mas Akito só chegara tão longe por conta de seu poder de observação e não tardou a reparar que o jardineiro era mais do que um bêbado a quem o mestre da guilda permitia que cuidasse do jardim por caridade. Estava velho, com certeza, mal-cuidado e curtido pela vida, mas Barmon não perdera o jeito de guerreiro, perceptível, no nariz quebrado e em sua postura arrojada, a qualquer observador atento.

Havia também seus olhos desiguais. Um deles, ágil e perscrutador, o outro, cego, marcado por uma cicatriz de garra.

— Corrin pediu-me para verificar como você estava.

— Bem… Ontem não foi uma noite das piores. Posso te oferecer uma bebida? — ele perguntou, indicando o interior escuro de sua cabana.

— Não, obrigado. Estou só de passagem e já que cumpri o que me foi pedido, voltarei ao treino.

— Treino, é? Pois você escolheu um bom lugar. Só tente não pisar nas flores.

De fato, eles estavam numa área mais afastada da entrada principal, cercada de flores coloridas cujo aroma contrastava o fedor de Barmon, além de arbustos bem cuidados, sebes e trepadeiras.

Assentindo com a cabeça, ele invocou Aglavros e tomou postura para os exercícios com a espada. O jardineiro se recostou preguiçosamente à porta e assistiu aos cem primeiros movimentos de sobe e desce da lâmina.

— Você tem boa postura — observou —, mas precisa relaxar um pouco mais o corpo. Ombros duros apenas encurtam o movimento.

Akito olhou para ele de soslaio e seguiu o conselho por mera curiosidade. Não se espantou, porém, quando o corte saiu com maior fluidez. Como ele suspeitava, Barmon era mais do que deixava transparecer.

— Essa sua espada não é nada impressionante — comentou o jardineiro, não com o desdém que se esperaria de alguém que avaliasse um gear de Classe F, mas com genuína preocupação na voz. — Ainda mais se comparada a algumas coisas terríveis que já vi nessa cidade. Você faz bem em treinar combate, os Caçadores confiam demais no poder da alma. Saber como lutar pode ser a diferença entre vida e morte em Fantasia.

Com alguma tristeza, ele fitou o horizonte, deixando que seu olho bom repousasse sobre a Babel Verdadeira, antes de murmurar algo sobre terem um bom calouro naquele ano.

— Estarei aqui se precisar de mim — disse, pouco antes de se virar para o interior de sua casa, e deu uma última olhadela por cima do ombro, assentindo para si mesmo ao deixar Akito na companhia das flores.

***

Encharcado de suor, ele voltou para a sala de jantar.

Exceto por Corrin, os outros tomavam seu desjejum. Mila se afastou o máximo que pôde ao vê-lo entrar e o mestre interrompeu a conversa que tinha com Jenna.

— Você não acha que passou do ponto? — indagou ao reparar no estado de Akito.

— É só a minha rotina — ele deu de ombros. — Com toda a situação de me mudar para Fantasia estive muito relaxado nos últimos dias. Ficar mais forte não é fácil e exige muito treino!

Petr o aplaudiu e disse que era uma bela filosofia, ao passo que Jenna simplesmente apertou os lábios e mandou que ele fosse se lavar, já que estava fedendo. A tensão aumentou entre os dois, mas Akito decidiu ignorá-la quando Corrin perguntou.

— E que tal Barmon?

— Não era de todo mal… — respondeu o filho do deus da guerra, deixando implícita uma entonação que Corrin logo captou. — Ele disse que a noite de ontem não foi das piores.

— Eu sei que não — o mestre da guilda sorriu. — A próxima lua cheia ainda demorará bem umas duas semanas. Que tal você se preparar? Temos um longo dia pela frente.

Seu comentário acerca da lua cheia deixou Akito com uma pulga atrás da orelha, mas o tom empregado deu a entender que não era a hora de falarem nisso. Desse modo, ele voltou para seu quarto, onde tomou um rápido banho gelado e se vestiu com calças de tecido leve, mas resistente, seu velho par de tênis, uma camisa escura e uma jaqueta.

Quando voltou para a sala de jantar, todos já estavam equipados: Corrin se vestira como no dia anterior, tênis preto, calça jeans e moletom cinza. Jenna usava uma combinação de calças justas e uma camisa que realçavam suas curvas e distinguiam-lhe a força. Ela completava o traje com um cinto de muitos bolsos para armazenar ferramentas e itens essenciais, além de suas botas robustas, que forneceriam estabilidade e proteção durante a jornada.

Mila usava um vestido branco esvoaçante, de tecido leve e fluído, decorado com bordados sutis, que se movia com graça ao caminhar dela, além de uma ou duas pulseiras simples e um colar delicado ao redor do pescoço. Já Petr, trajava um pesado casaco branco, que lhe cobria parcialmente o rosto e caía até os tornozelos, adornado com pele de lobo nas mangas e gola, envolvendo seu corpo como uma verdadeira armadura. Complementando o visual, havia calças e luvas negras, que em geral combinavam com a sobriedade de sua aparência.

Uma vez reunidos, os membros da guilda deixaram o castelo em direção ao centro da cidade, a pé num primeiro momento, e depois num dos bondes verde-oliva do transporte público de Fantasia. Desembarcaram próximos da Arena Central, que se apequenava diante da imensidão da masmorra.

— Muito bem, repassemos algumas informações antes de entrar — ordenou o mestre de guilda, reunindo-os num círculo, em meio ao vai-e-vem de Caçadores que entravam e saíam da torre. — Em primeiro lugar: o básico, já que é a primeira vez de Akito e Mila numa incursão. A Babel Verdadeira possui cento e cinquenta andares conhecidos, mas não se enganem pela aparência externa, a masmorra é muito maior por dentro. Cada andar pode ter centenas de quilômetros de raio, com alguns dos maiores se comparando a verdadeiros continentes do nosso mundo, tendo oceanos, florestas, desertos, tundras gélidas e até mesmo ruínas de antigas civilizações.

“— Os habitantes da Babel Verdadeira são os monstros, seres agressivos, que atacam os humanos sem piedade, são criaturas mitológicas das lendas do passado. Em geral, eles não têm uma elevada capacidade de raciocínio, mas não facilitem. Os monstros se dividem por tipo de criatura e nível de ameaça:”

 

Classificação de Monstros por Tipo

 

Bestas. Ex: Lobo Gigante

 

Constructos. Ex: Golem

 

Dragões. Ex: Wyvern

 

Elementais. Ex: Salamandra

 

Gigantes. Ex: Ogro

 

Humanoides. Ex: Goblin

 

Monstruosidades. Ex: Tirano Ocular

 

Mortos-Vivos. Ex: Esqueleto

 

Plantas. Ex: Arbustos Errantes

 

Slimes. Ex: Cubo Gelatinoso 

 

Classificação de Monstros por Nível de Ameaça

 

Divina. Ex: Zirnitra, o Dragão Bruxo

 

Especial. Ex: Píton

 

Intermediária. Ex: Elemental da Tempestade

 

Regular. Ex: Górgona

 

Introdutória. Ex: Carniçal

 

A cada categoria que Corrin listava, Mila contava nos dedos para não se perder, o que fez Akito revirar os olhos.

— Além disso, todos os andares possuem monstros especiais, únicos, eu diria, chamados de chefes. Não se sabe muito bem como os monstros se reproduzem, mas acredita-se que eles nascem da Babel Verdadeira, e por isso sempre há um bom número deles, mesmo quando Caçadores promovem um verdadeiro extermínio. Com os chefes não é assim, eles não se renovam e, quando uma incursão derrota um chefe de andar, aquele piso é considerado limpo. Muita informação?

Akito piscou com força, absorvendo tudo o que acabara de ouvir, enquanto Mila tinha os olhos girando de tontura por conta da palestra. Corrin sorriu para eles e disse que era uma questão de experiência. Em breve tudo seria familiar a eles.

— Última coisa — pontuou o mestre da guilda antes de prosseguirem. — Tomem cuidado ao usar o gear dentro da masmorra. Concentrar uma boa quantidade de Prana torna os monstros mais agressivos, de alguma forma eles sabem que o poder da alma serve para matá-los.

Seguindo em frente, eles atravessaram as enormes portas duplas de entrada da torre, em direção a um lugar que os Caçadores chamavam de Átrio. Tratava-se de um pátio coberto, sustentado por colunas de pedra, com entalhes na forma de flores e frutas entrelaçadas. Fileiras de estátuas, cuidadosamente trabalhadas, estendiam-se em círculos por toda a extensão do Átrio, representando seres mitológicos e bestas fantásticas, no meio das quais se organizava uma feira livre, vigiada tanto pelos lobos como por capacetes azuis das Nações Unidas. 

Barraquinhas coloridas que vendiam comida e bebida, poções, armas e itens maravilhosos dividiam espaço com bancas de apostas, onde grandes televisões exibiam imagens em tempo real de Caçadores que filmavam suas incursões com câmeras antigravitacionais. Além de um posto de troca da Administração Geral de Caçadores, onde belíssimas mulheres de saia e colete verde-oliva compravam os itens obtidos de monstros e tesouros dos aventureiros que todos os dias desbravavam a masmorra.

— Hoje não viemos em busca de nenhum item em particular — Corrin ergueu a voz, para ser ouvido em meio ao falatório do Átrio —, mas apenas para um treinamento de campo, como eu disse ontem. Contudo, qualquer tesouro recolhido será bem-vindo.

Bem no centro do recinto havia um elevador de latão polido, com portas de madeira escura, no qual eles entraram. Uma série de engrenagens giratórias e válvulas a vapor emitindo sons estrondosos e chiados de pressão punham a geringonça em movimento. O elevador era controlado por uma intrincada série de alavancas e botões de cristal, operados por uma figura silenciosa, e era alimentado por uma série de cristais mágicos que brilhavam em tons de azul e roxo, emitindo uma luz tênue, entrecortada pelo bruxuleio das tochas que iluminavam seu interior escuro, lançando sombras dançantes nas paredes de metal.

— Para onde? — indagou o ascensorista numa voz mórbida.

Sua aparência exalava uma beleza sinistra. Ele tinha maçãs do rosto altas, que criavam uma expressão firme, enquanto as sobrancelhas arqueadas davam-lhe um toque de mistério aos penetrantes olhos amarelos de gato. Os cabelos violeta chegavam até os ombros, refletindo a luz em tons profundos de ametista. A pele pálida e acinzentada, conferia-lhe um ar etéreo, quase como se pertencesse a um mundo diferente.

Vestido com um manto negro, ele parecia emergir das sombras, com um capuz a ocultar parcialmente sua figura. O colar de caveiras adornando seu pescoço era uma lembrança sempre presente e sombria de sua conexão com o desconhecido.

— Andar três: Florestas do Inferno.



Comentários