Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 17.2: Lysentria, a Cidade Necrópole - Parte 02

Foram ainda algumas boas horas de caminhada pela paisagem desolada até que Akito divisasse as altas muralhas de Lysentria, a Cidade Necrópole. Alinhadas, acima do portão principal, estavam dez flâmulas representando as guildas da Aliança dos Bálcãs, dentre as quais ele reconheceu o estandarte dos sérvios.

Ao se identificar, os guardas abriram-lhe passagem, parecendo reconhecê-lo pela mesma fama que chegara aos ouvidos de Dragan Jovanović. As construções da cidade eram altas, em tons de cinza e preto, as ruas estreitas, pavimentadas com mosaicos de pedra que representavam símbolos de passagem nas jornadas espirituais de muitas culturas.

Os arcos e cúpulas das edificações eram decorados com anjos pétreos de asas negras, figuras encapuzadas, armadas com foices, e esqueletos em súplica. Zigurates erguidos para criar uma sensação de reverência, espalhavam-se pelo ambiente urbano, observando Lysentria do alto de sua empáfia por janelas estreitas, que dividiam espaço com alcovas escavadas na pedra antiga, ocupadas por crânios e tocos de vela.

Não parecia haver monstros na cidade e os Caçadores, em sua maioria armados e trajando armaduras dos pés à cabeça, andavam apressados sob a luz de fogos-fátuos presos em lâmpadas de vidro translúcido. 

Pedindo informações a um e outro, Akito se guiou pelas vielas e becos da Cidade Necrópole, sob labaredas de um fogo azul, aparentemente natural, que irrompia do solo para dançar ao longo das bordas dos edifícios, até chegar à locadora de veículos Vapor Viajante.

O prédio era uma mistura de tijolos escuros e metal, com grandes tubulações, emitindo vapor, e engrenagens ornamentadas, escapando por suas paredes, como a relva de primavera brota sob a neve. Grandes janelas de vidro davam vista para o interior iluminado, onde se destacava um maquinário complexo, que Akito não imaginava para o que servia, afundado em peças sobressalentes, que dividiam espaço com alguns veículos cobertos por lonas.

Dentro do estabelecimento, o rapaz foi recebido pelo som das engrenagens em movimento, num recinto abafado pelo vapor quente. O balcão de atendimento era de madeira fosca, e projetos de algum engenho que eram um mistério para o jovem Caçador decoravam as paredes.

— Saudações, meu bom rapaz, e bem-vindo à Vapor Viajante — cumprimentou um homem idoso, vestindo uma cartola elegante, que baixou seu charuto numa baforada para falar a Akito. — Sou o engenheiro responsável por este lugar e você pode me chamar de Sr. Cogsworth.

— Akito Urushibara — ele respondeu, cumprimentando o velho com um aceno de cabeça.

Estudando-o, Akito reparou no porte cavalheiresco de seu terno impecável e também no rosto de traços fortes, com um bigode branco bastante distinto e o maxilar pesado.

— Que veio procurar aqui, meu rapaz? — Cogsworth indagou, pondo-se de pé ao avaliar o jovem dos pés à cabeça.

— Preciso de um veículo que me leve até o Vale dos Maus Espíritos.

O velho cofiou o bigode e despendeu-lhe um afável sorriso de avô.

— Em geral, eu diria que você está com azar. A Aliança dos Bálcãs tem necessitado de toda a minha perícia e meus veículos estão sob a sua autoridade, para missões oficiais que me rendem muitos milhares de créditos. Sim, em geral, eu diria isto, mas…

A pausa quase fez o Caçador subir no balcão.

— Mas?

— Se você não se incomodar com uma motocicleta ao invés de um automóvel… — outra pausa e desta vez Cogsworth deixou o balcão como num vendaval, performando movimentos efusivos com os braços, enquanto o charuto ainda permanecia na boca.

Nos fundos da loja, próximo a uma saída de veículos, ele puxou uma lona encardida, para revelar a motocicleta de que falara. Sua estrutura era esbelta e o acabamento, em preto, era de um metal resistente. Linhas aerodinâmicas devam-lhe uma aparência veloz e, quando o engenheiro acendeu os faróis, Akito notou que eles se incendiaram no mesmo fogo azul da cidade.

Maravilhado, o filho do deus da guerra passou a mão pelo assento de couro e avaliou as rodas, equipadas com lâminas nos raios, garantindo que a moto pudesse cortar pelo solo áspero e empoeirado do Mausoléu. Na traseira, havia ainda um pequeno bagageiro, onde ele poderia guardar sua bolsa.

— Apresento-lhe a Night Engine — falou o idoso em tom dramático, mal contendo o orgulho da própria criação ao estender os braços para ela, feito um mestre de cerimônias.

— É incrível! — Akito estava de fato impressionado. — Quanto pelo aluguel?

— Oh! Com certeza chegaremos a um preço que você possa pagar.

E de fato chegaram, com o rapaz saindo dali com metade de seus créditos. Não sem alguma discussão.

Enquanto o Sr. Cogsworth batia a papelada do contrato de locação numa velha máquina de escrever, outro homem entrou na Vapor Viajante. Ele era alto e esguio, de pele acinzentada, feito um cadáver, olhos inteiramente brancos, e cabelos de cor gris, que se tornavam negros nas pontas.

Vestia-se com um quimono cinzento, amarrado com uma faixa dourada na cintura, e um manto da mesma cor do quimono, com um dragão de ouro bordado nas costas. Seus pés, descalços, tocavam o chão com leveza, e ele trazia consigo uma enorme espada Uchigatana, ou Vara de Secar, mais longa que a catana comum, de lâmina simples e uma empunhadura negra sem guarda, decorada com um dragão igual ao que ele trazia atrás de si.

Flutuando ao redor dele, quase como se quisesse enroscar-se em seu corpo, havia uma macabra criatura ofídica. Uma cobra esquelética de olhos vazios e ossos insculpidos com os ideogramas da criação e da morte no alfabeto kanji.

— Comandante — cumprimentou-lhe o velho Cogsworth, erguendo brevemente os olhos. — Ainda não está cedo para este mês? Há muito trabalho a ser feito nos veículos avariados durante a queda do Torreão Áureo.

— Quanto a isso, não há com o que se preocupar, engenheiro-chefe — o homem respondeu numa voz baixa e sibilada. — Cuide de seu trabalho com diligência, pois tenho outros assuntos hoje.

O proprietário da Vapor Viajante soltou uma baforada do charuto e deu de ombros, conforme o comandante pousava seu olhar destituído de cor no jovem espadachim.

— Você deve ser Akito, o filho de Jinnei Urushibara. Aquele a quem chamam de Rei Demônio. Um título muito apropriado para este andar.

— E você — Akito respondeu —, pelo título que ostenta, deve ser o homem que tomou o lugar de Kiel, o Apóstolo. Ou estou enganado, comandante?

— Precisamente. Eu me chamo Ienaga Senri. Alguns me chamam de Retalhador, Ienaga Battousai. Grão-Marechal da Aliança dos Bálcãs, comandante do exército estacionado na Cidade Necrópole.

— E sua amiga, quem é? — indagou o rapaz, apontando para o esqueleto de serpente que flutuava ao redor dele.

— Amanda é uma naga de ossos e minha familiar. Deixando isso de lado, eu soube de sua presença em Lysentria por um de meus homens. Será que podemos conversar a sós, no fundo da loja?

— É claro — ele respondeu num suspiro, mas logo que os dois se afastaram de Cogsworth, emendou uma súplica. — Por favor, não me peça para lutar sua guerra.

Ienaga pareceu achar aquilo engraçado, pois esboçou um meio-sorriso.

— Parece que você ouviu falar em nossas dificuldades de recrutamento. Soube da queda de Lâmina Celeste?

— O quê?!

— Nebo Mač — o Grão-Marechal explicou, revirando os olhos.

— Ah!

— Uma a uma, nossas fortalezas vem caindo perante os soldados de prata. Há quinze dias foi o Torreão Áureo, que estava sob controle dos bósnios, e agora a Lâmina Celeste. Se a Guilda Nacional da Grécia não impedir o avanço das tropas de Drakul, em breve estaremos enfrentando um cerco à Lysentria e eu terei de lutar contra o Rei Vampiro.

— Você pode derrotá-lo? — o jovem Caçador quis saber.

— Não… acho que não — foi a resposta de Ienaga, após refletir um pouco. — Mas isso não faz diferença.

— Kiel também falhou. Se você cair, quem ficará no comando?

— O Apóstolo era um tolo — disse o Retalhador, descartando o comentário de Akito num gesto de mão. — Qual é o sentido de uma guerra santa para derrotar um mal que já está aprisionado? O Mausoléu não pertence a Drakul, mas aos deuses, que ergueram a Babel Verdadeira. É sobre isso que vim falar, sobre o Sistema.

Os olhos do filho do deus da guerra se arregalaram.

— Como você…?

— Não és o único abençoado com conhecimento, Akito. Eu também fui escolhido por uma vontade superior.

— Quer dizer que você também é…

— Um eleito do Sistema? Não. Para começo de conversa, eu nem sequer sou um Caçador.

Aquela informação fez o jovem espadachim recuar um passo.

— Então quem é você?

— Hoje? Um mensageiro. Minha senhora deseja que eu lhe dê duas informações, mas, em troca, ela pede por sua ajuda num momento vindouro. O que me diz?

Ele ponderou a oferta. Não havia muitos que conheciam os desígnios dos deuses. Qualquer informação útil a sua jornada merecia ser ouvida, mesmo que a um preço.

— Fale.

— Primeiro, um aviso: a entrada do Vale dos Maus Espíritos é guardada por uma Gritadeira, uma criatura morta-viva de nível de ameaça Especial, cujo grito pode matar instantaneamente. Ela costuma emboscar viajantes.

— Anotado. Mais alguma coisa?

— Sim. Caso você suceda em matar a criatura alvo, arranque os chifres para infundi-los na sua Aglavros. Isso não vai aumentar seu nível de Prana, mas a espada ficará mais forte e pode te ajudar a desenvolver novas habilidades, necessárias em sua jornada para derrubar Atlas.

— Obrigado pelas dicas.

— Não me agradeça, Akito. Agradeça a minha senhora, cumprindo a tarefa que ela há de te designar no momento certo.



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