Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 17.1: Lysentria, a Cidade Necrópole - Parte 01

A fronteira entre os reinos dos vivos e dos mortos era tênue.

O Mausoléu era uma terra cujo solo escuro e pedregoso via-se permeado por raízes de árvores sem folhas, como mãos esqueléticas em busca de algo que se perdeu. Ao longe, delineavam-se vilarejos que eram fantasmas de assentamentos humanos, suas estruturas decrépitas habitadas por figuras espectrais.

Os céus pareciam estar perpetuamente cobertos por nuvens escuras e a luz do sol era um reflexo pálido de si, projetando sombras longas e distorcidas na paisagem desolada e cheia de uma neblina espessa.

Como não havia qualquer indicação do Sistema de para onde ele deveria ir, Akito escolheu uma trilha que seguia pela direção de mais e mais aldeias decadentes, esperando encontrar alguma cidade maior, ou, pelo menos, um centro de operações de alguma guilda ou da Administração Central, para obter informações. 

Ao longe, ouvia-se o lamento distante de almas perdidas, carregado como que num sussurro pelo vento cortante, que percorria os vales estreitos levando a presença da morte.

Após andar por um quarto de hora, ele chegou finalmente a uma encruzilhada, onde uma velha placa de madeira indicava alguns destinos: ao norte lia-se Lysentria, a Cidade Necrópole, para o leste estava a Tumba de Sanguinem Umbra, enquanto, ao seguir pela direção oeste, um viajante poderia chegar até a Planície das Cinzas. Foi também nessa direção, que ele distinguiu um grupo de Caçadores enfrentando monstros em meio à estrada.

Antes de mais nada, Akito reparou nas criaturas, sombras felinas de olhos que brilhavam num intenso azul gélido. Uma janela do Sistema se abriu:

Nekomata

Classificação por Tipo: Morto-Vivo

Nível de Ameaça: Regular.

Felinos distorcidos, tomados por uma aura de escuridão. São conhecidos por guiar viajantes perdidos a destinos sombrios.

Logo em seguida, ele observou os humanos. A maioria usava pesadas armaduras de placas, com elmos fechados, de um vermelho-escuro, quase vinho. Dois deles estavam na retaguarda, o primeiro carregando um estandarte, enquanto seu companheiro usava um gear de cura. Mais a frente, um feiticeiro atirava lanças flamejantes nos monstros, protegido atrás de um indivíduo usando escudo de corpo e uma alabarda.

O estandarte deles exibia uma águia bicéfala branca, num fundo vermelho sangue, com uma espada numa das garras e uma lança na outra. Porém, quem mais chamava a atenção era o indivíduo que dividia a vanguarda do grupo com o sujeito do escudo. Um titã, de mais de dois metros de altura, com uma presença imponente e cabelos brancos que fluíam até a altura das costas.

Seu rosto, marcado por cicatrizes, ostentava sobrancelhas negras e espessas, por cima de um par de olhinhos azuis faiscantes, que pareciam conter uma tempestade. Ele vestia uma calça cumprida de tecido leve e uma camisa sem mangas, que revelava músculos poderosos, além de uma capa negra esvoaçante, presa por um broche na forma da águia de duas cabeças.

Com determinação imperturbável, ele avançava pelo campo de batalha, brandindo duas espadas curvas de uma mão, enquanto as nekomatas tentavam cercá-lo com movimentos ágeis. O gigante, no entanto, era surpreendentemente rápido para um homem de seu tamanho, e dançava habilmente por entre as garras afiadas, movendo-se como uma tormenta de aço.

Num giro gracioso, ele desferiu ataques de uma precisão que apenas um mestre espadachim conseguiria igualar. Os monstros tentavam responder, saltando contra ele numa investida feroz, mas as lâminas daquele homem colossal sempre encontravam seus alvos, com impacto devastador, e para completar seu baile mortal, a capa negra fluía dramaticamente em meio às sombras.

Em alguns minutos, o combate estava terminado e o grupo pronto para retomar sua viagem. Akito se apressou a chamar a atenção do quinteto, imaginando, ao vê-los tomar posição, após serem abordados por um estranho, quem venceria numa luta entre ele e o grandalhão.

Difícil, com certeza. Mas acho que no fim o último de pé seria eu.

— Alto! — ordenou o homenzarrão, sua voz como uma avalanche. — Identifique-se.

— Sou Akito Urushibara — ele respondeu, olhando para cima. Todos os soldados eram maiores do que ele, porém, o comandante era descomunal.

Um dos quatro de armadura se aproximou para falar com seu líder num idioma que o rapaz não conhecia, e Akito notou que, ao invés de uma lâmina, ele tinha um cajado.

— É o Classe F que derrotou uma executiva da cidade? — o comandante indagou, falando num pesado sotaque que parecia do leste europeu. — Aquele a quem estão chamando de Rei Demônio?

— O próprio.

Ele esquadrinhou o filho do deus da guerra de cima a baixo.

— Pensei que fosse mais alto.

— Sou grande naquilo que mais importa — ele fez uma pausa e deu um meio-sorriso ao homem. — Na coragem, obviamente.

A piada agradou ao gigante, que riu como num estrondo de trovão, acompanhado por seus homens.

— É um prazer conhecê-lo — disse, estendendo a mão para cumprimentar Akito. — Meu nome é Dragan Jovanović, Caçador da Classe A, de ocupação guerreiro, da Guilda Nacional da Sérvia. Atualmente, detenho o posto de capitão no exército da Aliança dos Bálcãs. Você chegou em boa hora, Urushibara. Poderíamos usar sua força nas escaramuças do fronte ocidental. A fortaleza de Nebo Mač caiu ontem a noite, e perdemos dois Caçadores de Classe B da Guilda Nacional da Croácia.

— Espere um pouco, do que você está falando?

— Da guerra, é claro.

— Como assim? Que guerra é esta?

Jovanović franziu o cenho.

— Da guerra contra Drakul, o Rei Vampiro, do andar dezessete. O chefe do andar, soberano do Mausoléu, e morto-vivo de nível de ameaça Divinal. Já perdemos uns trinta Caçadores da Classe A lutando contra ele e um Classe S não faria mal por aqui. Você não sabia dessa guerra?

— Não — Akito admitiu.

Kletva! — o capitão exclamou. — Maldito seja Minos Architsis e malditas as Guildas dos Monarcas!

Ao mesmo tempo em que ele praguejava, seus homens repetiam: Sranje! Prolleto bili! E o rapaz não precisava falar sérvio para saber que não eram elogios.

— Imagino que pelo menos disso você já saiba, mas os chefes dos andares de um a dez já foram derrotados — Dragan explicou. — Foi a partir do andar onze que as coisas mudaram. Os Caçadores descobriram que não era preciso derrotar os Chefes para avançar, e assim os Monarcas foram até o andar cento e cinquenta. Contudo, monstros poderosos ficaram pelo caminho e um deles é o Rei Vampiro. Foi o Caçador mais forte da Guilda Nacional da Macedônia do Norte, Kiel, o Apóstolo, que jurou dar fim ao rei dos mortos-vivos e conclamou uma Guerra Santa contra Drakul, unindo todas as guildas nacionais dos países balcânicos contra os seres da noite. Nós pensávamos que não seria difícil tomar a Grande Tumba de Sanguinem Umbra e o avanço inicial nos levou às portas da fortaleza do vampiro, mas, onde seus lacaios mortos-vivos falharam em resistir a nós, os Milites Argentei obtiveram sucesso, e desde então, já há mais de cinco anos, nós estamos perdendo terreno. O próprio Kiel tombou em batalha e os homens de sua escolta pessoal foram transformados em crias vampíricas. Nossa cruzada persiste, contudo, pior do que a morte, é quando perdemos nossos aliados para o outro lado, transformados em monstros.

Akito imaginou se Corrin não teria lutado nessa guerra, mas, o que perguntou ao capitão Jovanović foi:

— Quem são esses Milites Argentei?

— São soldados de prata, que deslizam feito uma noite gélida por todos os quatro cantos do Mausoléu. Seus corpos são armaduras que brilham numa sinistra luz azulada e suas espadas são forjadas do mais puro frio, capazes de congelar o sangue de um homem num único corte — ele apontou para seus comandados —, por isso, os Caçadores de Classe “C” ou inferior são obrigados a vestirem armaduras de platina, que nós mineramos na região próxima ao Vale dos Maus Espíritos e entregamos às forjas de Lysentria. Cada soldado de prata é um monstro do tipo constructo, de nível de ameaça Especial, tão forte como a maioria dos Classe B e alguns Classe A.

— Você comentou algo sobre o Vale dos Maus Espíritos? Eu preciso chegar lá em menos de quarenta e oito horas. Sabe me dizer onde fica?

Os ombros de Dragan caíram.

— Quer dizer que não veio para lutar na guerra? Não quero saber se você é um Classe F ou o que seja, se tudo o que dizem a seu respeito for verdade, que derrotou uma Caçadora da Classe B sem esforço, então você é um guerreiro experiente, cuja força pode elevar a moral das tropas. Eu posso conseguir uma patente de capitão para você.

Akito ergueu uma sobrancelha. Desde que chegara a Fantasia, aquela era a primeira vez em que fora respeitado. Mesmo os companheiros de guilda o rejeitaram inicialmente.

— É um convite tentador, capitão, mas devo recusar. Tenho minha própria guerra a travar, contra Atlas.

Jovanović suspirou rendido.

— Que seja. Não gostamos de Atlas por aqui também. Com tão poucos reforços chegando e as linhas de suprimento comprometidas, nós nos perguntamos por que ele não envia os Reis Celestiais. Até parece que os Caçadores não querem mais subir a torre.

Sinto que esse é exatamente o objetivo daqueles desgraçados, mas acho melhor não dizer.

— Enfim — Dragan coçou a cabeça —, você disse que precisa chegar ao Vale dos Maus Espíritos em menos de dois dias? Mas vai a pé?

— E tenho outra opção?

— Claro que tem. Siga para o norte, para a cidade de Lysentria, e procure a Vapor Viajante. Eles devem ter algum veículo que você possa alugar.

Os dois trocaram mais um aperto de mãos.

— Obrigado.

— Disponha e tome cuidado na estrada. Nós precisamos ir, estamos mapeando o caminho para a retirada de Nebo Mač, e precisamos avisar os búlgaros da queda do posto avançado.

***



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