Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 16: Sistema, conectar!

Ele partiu sem aviso.

Após derrotarem Dante Fulmine e Catena Primo, não demorou para que os Lobos chegassem em grande número para ocupar a praça de alimentação, e oferecer sua ajuda a Akito e Jenna. O jovem espadachim, no entanto, recusou de imediato o auxílio, preferindo sair dali com a vice-mestra nas costas, para a frustração de uma tenente qualquer do Comitê de Segurança, que apenas teve tempo de cobrir a seminua companheira de guilda do rapaz com seu sobretudo.

Não! De jeito nenhum vou confiar nossa segurança aos subordinados de um rei celestial. Ainda mais que todo esse conflito começou quando fui preso pelo Dark Guardian na Arena Central. Ele com certeza sabia que estavam vindo atrás de mim e me pôs num lugar onde seria facilmente emboscado.

Feridos, os dois levaram mais tempo do que o habitual para retornarem à sede da guilda e quando chegaram, os demais ficaram em polvorosa, sem entender como um passeio inocente acabara daquela forma. Enquanto Milla cuidava de Jenna, na enfermaria do forte, o mestre de guilda interrogou Akito, buscando detalhes do acontecido.

Corrin não se satisfez enquanto não ouviu tudo sobre o decorrer do embate e os dois enviados do Submundo, a todo momento interrompendo as quase duas horas de fala a que submeteu Akito, pedindo constantemente que se repetisse em meio às idas e vindas de sua já confusa oratória, para fazer pequenos comentários que soavam mais como notas mentais para si, ao invés de respostas conclusivas a seu interlocutor. 

Por fim, o mestre concordou que o rapaz e Jenna fizeram o melhor diante das circunstâncias, e dispensou o espadachim para ter um merecido descanso, após mais uma experiência em que correra risco de vida.

O filho do deus da guerra aliviou parcialmente a fadiga num banho quente, e já planejava se jogar na cama para desfrutar de longas horas de um sono pesado, quando recebeu uma mensagem do sistema:

Recompensa!

Você recebeu recompensas extras por exceder seus limites e adicionar pontos de habilidade a seus atributos.

Recuperação Completa 1x

Chave para o Jardim de Ossos 1x

Como a primeira recompensa parecia mais óbvia, Akito optou por obtê-la primeiro, e o efeito curativo foi imediato. Uma onda de energia cintilante envolveu-lhe o corpo, com uma suave luminosidade azul, que aplacou todas as suas dores, restaurou tecidos danificados e o lavou de todo o cansaço que o banho falhara em aliviar.

Incrível! Estou completamente revigorado. Sinto que poderia usar até mesmo a Broken Chain outra vez.

Maravilhado por aquela sensação, que ele normalmente levaria dias para alcançar, o rapaz ativou a segunda recompensa. De imediato, uma chave esculpida em osso e metal se materializou em suas mãos. Seu arco formado pelo entrelaçamento de ossos petrificados e metal escuro, que Akito reconheceu como Adamantino. A parte mais distintiva do artefato, contudo, era sua ponta, esculpida para assemelhar-se a uma rosa negra, cada pétala meticulosamente desenhada em pequenos ossos, numa geometria delicada e sinistra.

Uma segunda janela do Sistema então se abriu para exibir a descrição do item:

Chave do Jardim de Ossos

Reza a lenda que essa chave é a única capaz de abrir as portas que guardam os segredos do misterioso jardim, um lugar onde a vida e a morte dançam em lúgubre sinfonia.

Enquanto girava sua nova posse entre os dedos, ele notou que havia também uma nova mensagem na aba Missões:

MISSÕES

Missão Diária – Treino para a Ocupação Guerreiro!

Incursão ao Jardim de Ossos

O usuário @CaçadorMaisFraco obteve a chave para explorar um andar bônus no piso dezessete da Babel Verdadeira. Viaje imediatamente até o Mausoléu e encontre Anhangabahú, o Vale dos Maus Espíritos. Derrote o chefe do Andar Bônus.

Aviso: Se a missão não for cumprida em Quarenta e Oito horas, penalidades serão dadas de acordo.

Que ótimo! Uma nova missão logo quando mal-acabo de sair com vida da última batalha.

Akito não se sentia cansado, mas, ainda assim, não estava em seus planos se colocar numa nova situação de estresse tão rapidamente, ainda mais considerando que desta vez seu objetivo estava na Babel Verdadeira, e sua última experiência na masmorra não fora nada agradável. Ademais, ele agora precisava derrotar um chefe de andar sozinho. Será que era ao menos possível a um Caçador derrotar uma criatura de tal hierarquia sem um grupo? Se não fosse, o Sistema não pediria por isso, não é?

De qualquer forma, é melhor que eu vá agora. Pelo que sei, alguns dos andares são tão grandes como continentes, e tenho apenas Quarenta e Oito horas para a exploração e subjugação.

Sem mais enrolar, ele se levantou da cama, vestiu-se, apanhou uma mochila, e se esgueirou para fora do quarto. Ainda era fim de tarde, Jenna estava de repouso sob a supervisão de Milla. Corrin provavelmente se retirara para seu quarto ou permanecera na sala da administração, evitando o excesso de luz do dia, que já ia esmaecendo, enquanto o jardineiro Barmon devia estar bêbado feito um peru em sua cabana.

Apenas Petr encontrava-se vagando pelos corredores da base e, ao cruzar o caminho de Akito, ergueu uma sobrancelha, numa quase demonstração de espanto em sua face impassível.

— Aonde vai? — ele perguntou, sem esboçar emoção na voz.

— Até a cozinha.

— De mochila?

Akito hesitou.

— Tenho assuntos a resolver. Volto em dois dias.

— Não devia estar descansando?

— Isso é uma ordem, veterano?

Ele deu de ombros.

— Apenas senso comum.

O jovem espadachim abriu os braços e deu uma volta completa no próprio eixo, mostrando-lhe o corpo em perfeitas condições.

— Pareço mal a você?

Ele meneou levemente a cabeça em negativa.

— Então.

Quanto Akito já ia passando por ele, Corrin respondeu:

— Você é cheio de surpresas, Urushibara. Tem certeza de que não despertou como um curandeiro?

— Isso foi uma piada? — o filho do deus da guerra indagou, franzindo o cenho, mas seu companheiro de guilda apenas acenou de costas, despedindo-se.

Ele então partiu dali, enchendo a bolsa de mantimentos necessários a uma longa viagem, e deixou a base da Brigada de Estrelas, para cruzar o bosque até o terminal mais próximo, onde embarcou num dos bondes verde-oliva do transporte público de Fantasia, vazio, àquela hora. Conforme anoitecia, o fluxo de pessoas nas ruas do centro foi diminuindo, e quando Akito finalmente chegou à Babel Verdadeira, no início da noite, havia poucos curiosos no Átrio.

A maioria dos presentes era de Caçadores, trocando espólios por créditos nos postos da Administração Central, ou bebendo antes de partir, ou tendo retornado de uma incursão. Deu-lhes pouca confiança e, felizmente, eles o retribuíram o mesmo.

Seu objetivo era o elevador, bem no centro do recinto, mas, logo que suas portas de madeira se abriram, deixando escapar estrondos e chiados metálicos das engrenagens e válvulas que o punham em movimento, um pensamento atingiu Akito.

Como vou pagar pela passagem se Caronte exige Prana, e eu tenho tão pouco?

Ele entrou com um dar de ombros. Se o maldito Sistema exigira-lhe aquela missão, então que arcasse com os custos.

Pela segunda vez, ele se deparou com o intrincado painel de alavancas e botões de cristal que operavam o elevador, mas não identificou Caronte no ambiente de luz tênue, parcamente iluminado pelo bruxuleio de velas. Sem aviso, a geringonça pôs-se em movimento num solavanco e, cruzando os braços, o rapaz entendeu que o Sistema fizera sua parte.

— Sozinho hoje? — indagou-lhe uma voz feminina.

Num sobressalto, Akito descruzou os braços e, olhando ao seu redor, notou uma figura que certamente não estava ali antes. A presença que ela irradiava não poderia ser descrita de outra forma que não: majestosa. Seus longos cabelos prateados fluindo como numa cascata lunar e os olhos, dourados e perspicazes, refletiam uma sabedoria insondável.

Trajada num longo vestido da cor do céu noturno, sem mangas, ela era quase familiar ao rapaz, ainda que ele não soubesse dizer o porquê. Adornos de bronze entrelaçavam-se pela sua vestimenta, com uma gargantilha que lhe protegia o pescoço, e uma ombreira de asas metálicas, que se estendiam graciosamente.

Um cinturão de crânios envolvia sua cintura e, mais abaixo, o corte do vestido revelava uma de suas coxas, esculpida como numa verdadeira obra de arte, adicionando um toque de sensualidade ao expor ainda mais de sua pele morena. No cinto, descansava uma espada curta, enquanto, nas mãos, ela segurava uma foice longa como o cabo também de bronze. A lâmina, envolta em sombras, guardava um grande olho púrpura, que diligentemente observava Akito numa mescla de atenção e curiosidade.

— Por acaso já nos vimos antes?

— Garanto que não — ela o respondeu com um enigmático meio-sorriso.

— Certo. — A mulher parecia dizer a verdade, mas ele não conseguia livrar-se da estranha sensação de que já estivera em sua presença. Não! Não era a mesma presença, contudo, era muito parecida. — É como você diz, estou só, por hoje. Para onde foi Caronte? 

— Ora, mas que pergunta, Akito. Ele está operando o elevador. Não aqui, porém, acredito que aquele seu amigo morto-vivo tenha explicado o funcionamento deste nosso aparato.

— Morto-vivo? Corrin?!

— Precisamente — ela respondeu, repousando as costas numa das paredes de metal do elevador. — Eu farejo um vampiro aonde quer que ele esteja e garanto que para o andar que você vai tem um que fede bem mais.

Eu sabia!

— Não precisa se sentir tão detetivesco — disse a mulher, como se estivesse lendo seus pensamentos. — Estava na cara o tempo todo.

Akito empertigou-se e endireitou a postura, pronto a chamar por Aglavros.

— Quem é você?

— Como assim quem sou eu? — ela riu. — Você sabe. Quais os nomes dos dois que operam o elevador da masmorra?

O espadachim pensou um pouco.

— Tânatos?

— Bingo!

— Queira perdoar a indelicadeza, mas, pelo que Corrin me disse, presumi que fosse homem.

— Akito, Akito, Akito — Tânatos meneou teatralmente a cabeça em negativa e abriu os braços. — Você acha mesmo que uma restrição tão trivial como a do sexo se aplica a nós, os deuses imortais? Tolinho, eu escolhi essa forma hoje, pois imaginei que o agradaria.

Ao ouvi-la, ele não impediu seus olhos de fitarem aquela perna torneada, que escapava pelo rasgo do vestido.

— E parece que funcionou.

— Cale-se! — o filho do deus da guerra ordenou. — Se veio para zombar, já tem o que queria. Parta! Tenho mais sobre o que pensar.

— Depois de todo o trabalho que tive para agradá-lo, é assim que sou tratada — ela pousou a mão sobre o peito e assumiu uma canastrona expressão de pesar no rosto.

Pelo visto, os deuses imortais não eram bons atores.

— Se bem que… — Tânatos continuou, dando um rodopio, que fez o vestido quase subir mais do que devia, ao admirar-se. — Às vezes é até interessante mudar. Talvez não para Zeus, depois de todo o trabalho para encurralar Deméter num buraco de serpente, ele provou que gosta de ser masculino. E eles são irmãos…

— Chega! — Akito a interrompeu, massageando as têmporas. — O que você quer? O que significa isso? Deuses? Mitologia? Você é um deus? Uma deusa? Como… como Jesus ou Buda?

— Como uma deusa, você me mantém! — ela cantarolou. — A fim de dividir, no fundo do prazer, o amor e o poder.

O rapaz suspirou, entortando os cantos da boca em frustração.

— Não da para conversar com você.

— Leve na esportiva — Tânatos pediu, balançando as mãos espalmadas para aplacá-lo. — Mas de novo você perguntou dos mesmos. Jesus? Buda? Esqueceu de Amaterasu?

Aquilo fez acender uma chama tênue nas brasas de sua memória.

— Como assim “de novo”?

— Você já teve essa conversa antes — ela sorriu, seus olhos dourados parecendo que consumiriam Akito em luz, tão intensamente Tânatos o encarava. — Não comigo, mas com Atena.

Chama, oh doce chama. Eu consigo sentir… As cinzas da memória em brasa, tudo o que eu preciso é de uma chama.

— Vamos, Akito! — a deusa provocou. — Lembre-se agora. Você me acha familiar porque já conheceu os deuses num passado recente. Quase esteve comigo, pois sua caminhada no mundo mortal foi interrompida.

— Não! — ele caiu de joelhos, vendo a sua frente o enorme gorila albino de quatro braços. — Você é…

O ouro nos olhos dela finalmente o engoliu, abrindo-se como num rasgo na realidade, que abateu a fera e o guiou para outro plano. Sim, ele se lembrava, o mundo estéril, as linhas de Prana, Angra-Mainiu, Atena, a Hiperdimensão, o caminho dos deuses.

Você não poderá voltar enquanto for de carne outra vez…

Akito ergueu o rosto, Tânatos ainda estava ali, sorrindo, aguardando.

— Você é a morte!

— Isso mesmo, e não é metaforicamente, ou poeticamente, ou qualquer jogo de hipérboles e eufemismos a que vocês humanos estão habituados. Eu sou Tânatos, a personificação da morte.

— É por isso que eu te reconheço, você é um deus. Sua presença lembra a de Atena, mas, além disso, lembra o estado em que fiquei após a luta contra Arimã.

— Agora sim nós estamos conversando, Akito.

Os dois se fitaram e, a uma batida de coração, o rapaz ergueu-se, materializando Aglavros.

— Levante-se e me obedeça! — ele exclamou, apontando o sabre para a própria morte. — Quer dizer então que veio me buscar?

— E se for o caso? Você vai lutar contra mim, Akito?

— Lamento se te desrespeitei, mas tenho um objetivo a cumprir e nem mesmo um deus ficará no meu caminho!

Foram exatos três segundos de tensão, até que Tânatos caiu na gargalhada.

— Você tem coragem, encara a morte e diz: “Não hoje”. Tem mais do seu pai do que aqueles ignorantes em Fantasia poderiam dizer. Mas não há com o que se preocupar, jovem Urushibara. Tenho certeza de que quando a sua hora chegar, você me acolherá como a uma velha amiga.

A divindade relaxou a postura, e recostou-se outra vez na parede, desconcertando Akito, que se sentiu um tolo por continuar de espada em punho, e desintegrou Aglavros.

— Eu não estou entendendo mais nada. Você conheceu o meu pai? Então ele morreu mesmo?

— É mais complicado do que isso, mas essa história pertence a você e não a ele. Falemos então de ti, Akito. Os figurões não ficaram nada satisfeitos de Atena ter-lhe franqueado acesso ao Sistema.

O rapaz bufou.

— Quer dizer que, além dos reis celestiais, eu tenho o Conselho da Eternidade também como inimigos?

— Não exatamente. Primeiro, Hefesto ficou reclamando que a interface do Apothéōsis não estava preparada para testes, tendo em vista que a princípio a função dele era apenas traduzir em dados quantitativos a evolução dos Caçadores. Depois, Ogum completou, dizendo que a mecânica de videogame servia apenas para emprestar um elemento lúdico, caso fosse necessário explicar o funcionamento geral do Segundo Despertar aos mortais, como aconteceu com os Monarcas, a pedido de Hórus.

— Isso é muita informação.

— De fato — Tânatos acenou em concordância. — Pulemos para a parte que envolve você. Atena advogou em seu favor, os argumentos dela foram bem convincentes. É difícil vencer a deusa da sabedoria e estratégia usando lógica. Tote fez os cálculos e o Conselho entendeu que se algo não fosse feito de imediato, tanto o Segundo Despertar, como a Babel Verdadeira, e a sociedade de Caçadores, seriam um desperdício de recursos, pois o objetivo não seria alcançado. Zeus deu a palavra final, não que eu duvidasse de que ele fosse apoiar Atena, o Soberano do Olimpo faz de tudo pela filha preferida, mas, aqui estamos nós. Você está livre para usar o Sistema como uma ferramenta para encontrar sua irmã, desde que isso leve à queda dos Reis Celestiais de Fantasia e os Caçadores voltem a se empenhar na escalada da Babel Verdadeira.

O jovem espadachim não pode deixar de sorrir, com a expectativa de se tornar mais forte para os combates vindouros. Algumas dúvidas, porém, ainda ocupavam sua mente.

— Qual é o fim de tudo isso? O que os deuses querem? Quem é o grande inimigo de quem Atena falou?

— Demônios — a palavra ecoou pelo elevador, com um peso que tornou o ambiente mórbido. Não havia sequer a sombra de um sorriso quando Tânatos a proferiu.

— Então você está me dizendo que, além dos deuses, demônios também existem? E que chegará o dia em que nós Caçadores devemos enfrentá-los?

— O que estou dizendo é que se existem planos celestiais e criaturas divinas, o oposto também é real. Eles virão para devastar o seu mundo e a única chance de sobrevivência é que os campeões da humanidade estejam prontos. Por isso, vocês devem continuar subindo a torre.

— Mas o que é a Babel Verdadeira, afinal?

— Eu já falei demais, Akito. Nós chegamos ao seu destino. Andar dezessete: O Mausoléu. Particularmente não gosto desse antro de mortos-vivos, mas não fui eu o responsável por criar os andares. Dê fim a vários deles por mim.

Ela lhe soprou um beijinho e as portas enfim se abriram.



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