Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 15.2: Rebelião nas Sombras - Parte 02

Ele não perdia o sorriso.

Com certeza Dante Fulmine vacilava, num passo lento e ofegante. Porém, mesmo tendo combatido Akito antes dela e sofrido com uma sequência implacável, a expressão de completo deleite ainda se desenhava em sua face.

— Algo de errado? — Jenna indagou-o, enojada.

— Eu só estava pensando em qual seria o motivo daqueles dois lá em cima ficarem se encarando tanto. Afinal, o combate se resolve com mais ação do que estratégia.

— Se você está com tempo para apreciar a vista, então deveria refletir melhor sobre a própria situação. Desista de fazer mal a Akito e vá embora! Poupe-se do destino sangrento que o aguarda.

Faíscas dançaram pela lâmina de Raio Negro e o assassino riu.

— Sangue é o tributo que pago para simplesmente continuar existindo. Se eu poupá-lo, terei de compensar o inadimplemento com minha vida.

Jenna cerrou os punhos, deixando que a aura pulsante do Impetuous World Destruction tomasse conta do campo de batalha, e com determinação no olhar, ao fitar os olhos que não piscavam de Dante Fulmine, tomou o primeiro movimento do novo assalto. Sua velocidade, a princípio surpreendendo-o, fazendo com que o enviado do Submundo tivesse de sacrificar um contra-golpe para focar os esforços em esquivas ágeis, os punhos transformados em borrões naquela sequência que, num primeiro momento, castigava apenas o ar.

O vilão deslizava entre os ataques, mas estava claro que sua agilidade não era a mesma do início do embate. Ou Akito o cansara, ou a investida de Jenna surtira ainda mais efeito do que ele deixava transparecer, ou os dois. Impulsionada pelo poder de seu gear, a vice-mestra da Brigada de Estrelas tentou um golpe giratório, mas os instintos de guerreiro dele eram impressionantes, e Fulmine ainda dispunha de seu trunfo.

— Thunderbolt Strike! — concentrando o poder em sua arma, ele riscou o ar entre os dois, deixando um rastro de faíscas que estalaram ao repelir um chute de Jenna, envolto emseu poder.

Antes, porém, que qualquer um deles tornasse a agir, o som de um disparo mais uma vez tomou o ambiente e, sem que Jenna pudesse reagir, imaginando que o alvo seria Akito, ela foi atingida nas costas. Seu poder não permitiria que o ferimento fosse grave, mas, ao contrário do que esperava, o disparo não a perfurou, ainda que o impacto a fizesse cair sobre um joelho, num grito meio estrangulado.

— O Ethereal Burst deve ter minado as reservas de Prana da menina, Dante — Jenna ouviu uma voz feminina por detrás de si dizer. — Aproveite essa abertura para acabar com ela.

Então o atirador era uma mulher?

— Eu agradeço pela consideração — Fulmine respondeu, com um sorriso de vitória estampado no rosto.

Passaram alguns segundos e a energia violeta do Impetuous World Destruction já começava a oscilar. O assassino aproveitou a brecha para investir com uma série de cortes, brandindo sua adaga com a perícia de um verdadeiro artista da morte, tensionando pintá-la de rubro. Jenna Spencer, no entanto, não era nenhuma tola e, a despeito do que dissera antes a Akito, sua posição como uma página oito não viera por simplesmente confiar em seu gear.

Demonstrado a sagacidade de uma guerreira experiente, ela adaptou seu estilo de luta para, ao invés de enfrentar diretamente a agressão, usar o que restara de seu Anima no corpo, desviando a carga dos ataques numa mistura de bloqueios e evasão.

— Você é bem habilidosa, admito! — Dante pontuou a última palavra com um movimento brusco, que passou a centímetros de uma das bochechas dela. — Uma pena que sua luz esteja perdendo o brilho. Já não resta muito para esse gear enfraquecido.

— Não preciso de sua condescendência — ela cuspiu, afastando um arremate da faca com o punho cerrado. — Subestimar uma Caçadora apenas porque seu Anima está desaparecendo pode se mostrar o seu maior erro.

Os dois se afastaram, medindo as bravatas. Apesar do evidente cansaço, Dante circulava ao redor, enquanto Jenna se esforçava para manter a postura defensiva.

— Hora de acabar com isso!

Ao invés de atacá-la, ele mirou nos civis, desferindo uma rajada elétrica num corte. As pessoas restantes na praça de alimentação gritaram apavoradas, e num ato de desespero viraram as costas para fugir, correndo desorganizadamente para todos os lados, sem se importar com quem ficasse pelo caminho.

— Lento demais! — usando quase toda a energia que lhe restara, Jenna saltou para receber o golpe, defendendo os inocentes com os braços cruzados num “x” a frente do rosto. — Até parece que é você quem está lutando de calcinha.

Dante caiu no riso, apreciando genuinamente a piada, um instante que Jenna aproveitou para conferir o estado do povo comum.

Vivos? Todos. Apavorados? Todos, menos uma.

Num relance, ela divisou uma estranha mulher de longos cabelos loiros, camiseta branca, calças jeans, boné azul e tênis de caminhada. Enquanto os demais haviam se jogado no chão, cobrindo as cabeças, ou tremiam nos cantos, virando mesas na tentativa de se resguardarem com barricadas de improviso, ela permanecia de pé, os braços cruzados, e uma expressão plácida, quase entediada, no rosto.

Não tenho tempo para isso agora! Esteja ela congelada de medo ou caso seja aliada desses dois, não há muito o que eu possa fazer. Pelo menos não está atrapalhando.

A aura de poder do Impetuous World Destruction já quase se extinguia e logo Jenna ver-se-ia no mais completo desespero pela falta de opções, não fosse um chiado elétrico que pairava no ar. O Prana residual de Dante Fulmine deu a ela a pista de que precisava. Seria arriscado, mais ao estilo de Akito do que ao seu próprio.

Ela sorriu.

Aquele desgraçado. Mal nos conhecemos e eu nem gostava dele até hoje. Mas preciso confiar nele, Corrin não aceitaria outro membro, ainda mais um Classe F arrogante, se não achasse que ele tem potencial. Sim! Eu preciso confiar e ter o mesmo brilho do Akito ao me lançar para esse último ato!

A força bruta já não era mais sua aliada e por isso Jenna usou as últimas energias para posicionar-se e atrair Dante Fulmine. Canalizando suas últimas reservas de energia, a vice-mestra fez sinal para que o assassino fosse até ela.

— Vamos acabar com isso, seu desgraçado!

— Vai se arrepender de me enfrentar tão abertamente, menina!

Quando o enviado do Submundo avançou, alheio ao perigo, ela reuniu os últimos resquícios de seu Prana nos punhos. A lâmina de Raio Negro transformou-se quase que literalmente num relâmpago e veio cortar-lhe a garganta.

Num último esforço, Jenna desferiu um soco, não para ferir o adversário, mas conter sua adaga. Confiante de que ela não teria forças para bloqueá-lo, Dante não mudou o curso do golpe.

— Thunderbolt Strike: Full Charge!

O impacto, potencializado pela eletricidade, ressoou com o que restara do Impetuous World Destruction, criando uma reação em cadeia com o Prana residual. A última coisa que o assassino viu antes da explosão os engolfar foi o sorriso de Jenna que, além de ferir-se menos gravemente do que ele em todo o combate, tinha a resistência natural da ocupação guerreiro para ajudá-la a resistir.

Quando a poeira baixou, Jenna emergiu vitoriosa, o corpo enegrecido por queimaduras, os joelhos mal suportando o próprio peso, e um seio desnudo, escondido por seus braços cruzados. Ainda assim, vitoriosa, contra todas as probabilidades.

Mais acima, ela viu Akito, de olhos arregalados, e a atiradora caída não muito longe dele.

— Esplêndido! — Dante Fulmine ainda teve forças para dizer. — Contudo, eu não posso aceitar.

Mesmo com metade do rosto desfigurada e os ferimentos abertos da luta contra Akito, ele virou-se de lado no chão e, estendendo o braço, apontou Raio Negro na direção da estranha mulher, que se mantivera estática assistindo à luta.

— Não, mesmo! Alguém virá comigo. Não morrerei numa caçada sem presa alguma. Thunderbolt…

— Fuja! — Jenna gritou para ela

O enviado do Submundo conduziu um raio pela lâmina da adaga. Fraco como estava não conseguiria matar um Caçador, mas seria mais do que o suficiente para dar fim a um ser humano comum.

— Gear! — a mulher exclamou, tirando seu boné. — Slime Hell!

Um tentáculo gelatinoso escapou por sua manga, enrijecendo-se bem a tempo de empalar Dante Fulmine e erguê-lo no ar.

— Você… — ele cuspiu sangue. — Como?

— Vim para me vingar de Akito, mas vocês chegaram primeiro. Ossos do ofício. Infelizmente, por hoje não há mais o que fazer. Quero que ele lute comigo com força total. Esse farrapo que mal escapou de Catena não me satisfaz.

O membro gelatinoso recuou, derrubando Dante Fulmine. Seus olhos que nunca piscavam, fechados pela primeira e última vez.

Com um chute, ela arrebentou a grade de segurança e permitiu que os reféns finalmente escapassem.

— Não me entenda mal — disse a Jenna. — Ele cometeu o erro de me atacar. Não estou fazendo isso por você ou por estas pessoas. Apenas me interessei pelo Akito.

E então, ela pôs de volta o boné, baixou o rosto, e saiu dali, permitindo que a vice-mestra da Brigada de Estrelas enfim desabasse exausta.

***

Uma gota de suor frio escorreu-lhe pela nuca.

De olhos arregalados, Akito assistiu Layla Pearson contra-atacar a última investida de Dante Fulmine e dar cabo do assassino. Para a surpresa dele, ela libertou os reféns, disse qualquer coisa para Jenna e partiu.

O jovem espadachim se lembrava bem da humilhação a que a submetera, mas, pelo visto, o dia da vingança ainda não chegara. E quando Jenna tombou exausta, com um seio à mostra, ele tratou de se virar de volta para Catena, dando à companheira de guilda alguma privacidade para recuperar as forças.

— E então? — ele perguntou à adversária caída. — Como devemos terminar isso?

— Você é o vencedor inconteste, Akito. Já não tenho mais forças ou vontade de lutar. Decida o que quer fazer comigo. Morte? Humilhação? Pode descontar a raiva que sente dessa cidade que te odeia apenas por ser quem é.

Ele bufou.

— O que foi que aconteceu com você? Seu espírito de luta é fraco. Havia muita hesitação nos seus movimentos e se tivesse aproveitado a vantagem natural do combate à distância, teria vencido.

— Eu precisava ver — a atiradora confessou. — Quem é esse que dá esperança aos fracos? Que se ergue em revolta contra o Titã. Eu, que tive minha guilda aniquilada por um rei celestial e passei a matar em nome daquilo que odeio, por medo. Medo da esperança de que Atlas possa cair. Medo da fraqueza de ter sobrevivido.

— Os que sobrevivem não são fracos! Eles vivem para lutar outro dia. E o medo? O medo é justamente o que nos faz viver e dá a chance de lutarmos de novo e de novo. Se eu cheguei até aqui e desenvolvi meus instintos a ponto de enfrentar inimigos mais poderosos, foi porque tive medo. Se me lanço na batalha em completo despudor, é porque tenho medo de não alcançar o meu objetivo. Não seja tão rápida em julgar o medo, o que importa é o que fazemos com ele.

— Eu fugi…

— Sim! E daí? Não é o que você fez, mas o que fará agora. Esqueça essa vergonha e viva o presente! Você fugiu? Tudo bem. Não precisa mais fugir.

Akito estendeu a mão para ela e, por uma fração de segundo, aos olhos de Catena, era outro quem estava ali.

— Você brilha quase como ele — a atiradora disse, levantando-se com a ajuda do rapaz.

— Como quem?

— Vai saber. Talvez um dia eu te conte. Posso ir mesmo?

— Sim, você está livre.

— Livre, é? — Catena se perguntou. — E se eu quiser seguir pelo mesmo caminho que você?

— Será perigoso — ele disse, dando as costas a ela. — O Rei Demônio se ergue em revolta, não na luz, pois nela estão os reis celestiais, como você antes disse.

— Akito? — ela o chamou, antes que partisse para socorrer Jenna, o tom choroso de sua voz era quase o de uma súplica. — Dê-me esperança! Derrote um Rei Celestial e serei sua.

Sem dizer mais nada, ele partiu. Para sua rebelião nas sombras.



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