Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 14.2: O Caminho das Flores - Parte 02

Emergindo como um relicário cultural no coração de Silva Urbis, a antiga biblioteca mantinha seu esplendor mesmo em ruínas.

Os vestígios do estilo românico eram evidentes na grandiosidade de seus arcos semicirculares e nas grossas colunas que resistiam ao tempo. Anteriormente, estas mesmas pilastras sustentavam um teto em abóboda, parcialmente desmoronado, por onde a luz do sol atravessava para o interior do edifício.

As paredes, cobertas por trepadeiras e musgo, proporcionavam um contraste encantador com a pedra desgastada, enquanto as janelas de vidro quebrado ofereciam vislumbres das estantes derrubadas em meio a ladrilhos soltos. Uma lembrança do glorioso passado literário.

Nos arredores da imponente biblioteca, assombravam entidades grotescas, a que os Caçadores observavam de longe. Humanoides entrelaçados com flores exóticas, resultando em formas retorcidas de uma beleza estranhamente mórbida.

Cada um deles era único. Alguns tinham pétalas de tons vibrantes ao invés de cabelos, enquanto outros exibiam espinhos sob a pele. Suas mãos transformadas em caules, exalando um perfume que contrastava sua aparência sinistra.

— Vormes Florais — Badour explicou. — Os corpos são apenas receptáculos, as flores devoram o tecido orgânico e dão vida a eles enraizando-se no cérebro, como parasitas. Eles não são muito fortes, mas se quisermos passar com a garantia de que não nos perseguirão, temos de destruir as cabeças por completo.

Os outros três assentiram e a guilda Punho do Titã assumiu formação de combate. Víctor na frente, Catena o cobrindo, Fahmi atacando furtivamente em meio à distração da investida e Vaugeois mais atrás, para curá-los caso necessário.

— Gear: Los Flamencos! — Víctor avançou em passos ritmados, chamando a atenção das criaturas, ao mesmo tempo em que Pepe iniciava uma melodia mais cadenciada desta vez. — Fortificácion!

Starry nights, sunny days

I always thought that love should be that way

Then comes a time when you're ridden with doubt

You've loved all you can and now you're all loved out

Ooh, ooh, baby, we've been a long, long way

And who's to say where we'll be tomorrow?

Well, my heart says no, but my mind says it's so

That we got a love, is it a love to stay?

Suas duas outras marionetes flutuam ao redor dele. Isabella usava um vestido rubro com a base da saia negra e um leque, enquanto Carlos vestia uma capa vermelha e um chapéu de touradas, pronto a enfrentar os inimigos com sua pequena espada de brinquedo.

Víctor se aproximou dos monstros com os braços em movimentos amplos, tirando as criaturas para dançar. Seu corpo fora reforçado em Prana, a mesma que ele usava mover os bonecos.

Os vormes fizeram o primeiro movimento, golpeando desajeitados com suas garras, mas encontraram apenas o ar, conforme o mestre de guilda sapateava a sua frente, e bem quando a música parecia chegar ao refrão, Víctor bateu palmas, enredando as criaturas em sua atuação.

We got a wham bam shang-a-lang

And a sha-la-la-la-la-la thing

Wham bam shang-a-lang

And a sha-la-la-la-la-la thing

Remexendo o corpo, ele se esquivava das garras dos monstros ao mesmo tempo em que explodia cabeças com seus poderosos socos e invertia posição com os títeres. Los Flamencos lançavam disparos de Prana pelos olhos nas criaturas.

Não muito longe, Fahmi usava seu gear Shadow Acrobatics para golpear com sua cimitarra, numa velocidade sobrenatural, evitando as criaturas com acrobacias e contorcionismos impressionantes. Movimentos elásticos eram parte de seu estilo de combate e ao torcer o corpo de maneiras únicas, ele conseguia se esconder às costas de um inimigo, sob uma árvore fendida ou mesmo deitando-se na grama, ficando invisível aos olhos desatentos.

Catena apreciava a maneira de lutar daqueles dois, em perfeita sintonia, enquanto explodia algumas cabeças ao longe com seu rifle, e reparou especialmente na habilidade de Badour. Sombras sutis envolviam seu corpo, fazendo com que a silhueta do assassino ficasse fluída, como se feita de uma escuridão que dançava ao ritmo de Los Flamencos.

Quando um vorme alojado num cadáver especialmente grandalhão avançou em frenesi, empurrando os bonecos, e fez um corte com suas garras no peito de Víctor, foi a vez de Carla Vaugeois entrar em ação. A Santa de Plumas Negras canalizou o Prana da natureza ao seu redor, fazendo murchar as flores e enegrecer a relva, numa área de desolação, ao mesmo tempo em que corvos fantasmagóricos voavam em círculos ao seu redor.

— Gear — ela sussurrou numa voz etérea. — Salut par la mort!

O ferimento do mestre de guilda cicatrizou de imediato, ante a ação das energias necromânticas, e Catena abateu o inimigo que o ferira. Era o fim do combate, mas antes que eles pudessem se aproximar das portas duplas da biblioteca, ouviram passos de alguém chegando por trás do quarteto.

— Não parecem ser mais monstros — Víctor comentou estreitando os olhos para o vulto que se aproximava.

— É definitivamente um ser humano vivo, Martínez — Fahmi respondeu ajeitando seu monóculo.

— A questão é: quem, além de nós, viria a uma área proibida? — Catena indagou. — Será que é um dos informantes?

— Não… — balbuciou Carla, e os outros três se voltaram para ela, notando que estava lívida.

O homem que se aproximava tinha uma estatura média, mas sua postura ereta e expressão serena faziam-no parecer mais alto e imponente. Seu rosto era de uma beleza andrógina e pálida, marcado pelos olhos azuis-celestes, nariz afilado e os lábios naturalmente corados. Cabelos escuros e curtos completavam sua aparência e ele possuía uma pinta sob o olho esquerdo.

— Eu ouvi histórias sobre um Caçador da Classe S que se dizia ser o mais formoso dentre todos os combatentes de Fantasia — Vaugeois continuou, as pernas tremendo violentamente. — Um guerreiro brilhante e orgulhoso que se sobressai entre o céu e a terra.

A cada passo dele, flores brotavam sob seus pés calçados em sandálias e uma aura de Prana emanava de seu corpo para envolver toda aquela localidade até a biblioteca. O recém-chegado vestia um tradicional hanbok coreano, que incluía uma blusa de tecido leve e branco, combinando com um par de calças folgado, azul-marinho, além de um casaco longo durumagi negro que ele trazia sobre as costas, sem encaixar os braços nas mangas. Ainda, na cabeça, ele vestia um chapéu gat feito em crina de cavalo e armações de bambu, em formato cilíndrico, semitransparente, e de aba larga.

— Qualquer um esperaria que ele não fosse tão forte devido a sua beleza, mas pelo contrário, ele é o mais temível…

A figura colheu uma rosa, que brotara por sua caminhada em meio ao relvado, e a pôs na boca antes de dizer:

— Sabem que é um crime gravíssimo desobedecer às ordens de Sua Excelência.

Não era uma pergunta.

— Primeiros encontros, requerem apresentações — Víctor tomou a frente do grupo, com Los Flamencos flutuando ao seu redor.

— Eu… sou Hyong Nam-Il — ele fez uma pausa, fitando os rostos de cada um deles, como se pelos olhos quisesse penetrar suas almas. — Um dos Quinze Reis Celestiais.

Catena quis cair de joelhos ao ouvir a última parte, entendendo finalmente o temor da Santa de Plumas Negras. É claro que Atlas não deixaria aquela terra proibida sem nenhuma guarda.

— A sua transgressão foi imperdoável — ele os censurou, sua voz soando feito o correr límpido de um riacho. — Como ousam vir até aqui desafiando a vontade de Atlas?

Não fora um questionamento ríspido, mas havia algo de intimidador na serenidade em sua voz, que fez com que el-Badour recuasse um passo. Apenas o mestre de guilda permanecia firme diante do rei.

— E quem é Atlas para decidir onde podemos ou devemos ir? Ele pode brincar de soberano o quanto quiser, mas tanto a Babel Verdadeira como a Cidade da Masmorra pertencem aos Caçadores. E se os Caçadores não evoluírem, não estaremos cumprindo o nosso propósito!

— Enquanto Atlas tiver poder para se manter como o governante de Fantasia, todo o ato dele é bom. — Nam-Il replicou com naturalidade. — A força é a única e verdadeira justiça.

— Víctor, já chega — Catena implorou. — Vamos sair daqui.

— Isso, infelizmente, eu não posso permitir — o rei celestial caminhou na direção deles.

— Gear! — Badour exclamou, de repente esgueirando-se por detrás de Nam-Il. — Shadow Acrobatics!

Sua cimitarra zuniu num corte em alta velocidade, que mirava o pescoço do inimigo. Afinal, mesmo um Rei Celestial morreria se lhe cortassem a cabeça, certo?

Errado. A figura dele tremulou num movimento impossível e Hyong Nam-Il agarrou a espada em pleno movimento.

— Jeong-un Geom: Espada da Serenidade.

Num movimento ágil e gracioso, ele executou uma centena de golpes num milésimo de segundo e o corpo do assassino explodiu em pleno ar, num amontoado de carne disforme e muito sangue.

Em seguida, num piscar de olhos, ele passou por Catena e Víctor, assomando por sobre Carla, que estava logo atrás deles, como um gigante.

— Astral Trance: Estrada de Tranquilidade.

O Rei Celestial varou o peito dela com dois dedos e o tronco da curandeira explodiu num gêiser rubro, deixando par atrás apenas suas pernas, que tombaram na grama.

— Los Flamencos: Fortificácion! — Víctor chamou de volta para seu corpo todo o Prana que usava para animar os bonecos e os três caíram sem vida, assim que ele investiu contra Hyong. — Catena, fuja!

O punho do mestre de guilda errou o Rei Celestial, que parecia prever seus movimentos, e então uma aura pacífica, de um dourado luzidio, envolveu Víctor Martínez. Toda a urgência abandonou seu corpo, conforme os braços caíram frouxos, dissipando o conflito imediato.

Hyong Nam-Il então o agarrou pelo pescoço e ergueu do chão. Catena tinha-o na mira de seu Rainfall Vengeance.

— Eu a desafio a atirar — o Rei Celestial voltou seus olhos pacíficos para ela. — Sei que não fará e por isso mesmo também direi a você que fuja.

Seu dedo estava sobre o gatilho, os músculos todos tensionados. Com a boca seca e os nós dos dedos brancos, ela tremia da cabeça aos pés.

— Catena… — Víctor tartamudeou, chamando por ela, seus pés se movendo num estranho sapateado longe do chão. O que ele estava fazendo? Debatia-se? Não, dançava! — Você precisa se soltar mais.

— Víctor… — as lágrimas finalmente escorreram de seus olhos, ela baixou o rifle e correu.

Porque mi vida yo la prefiero vivir así — ele cantarolou e o som de seu pescoço se quebrando ecoou no silêncio de Silva Urbis.

Como o Rei Celestial previra, Catena fugiu. Num último ato, Hyong Nam-Il cuspiu a rosa que estava em sua boca e ela foi certeira na direção da atiradora, fazendo-lhe um pequeno corte na bochecha com seus espinhos.

— Vá, e conte a todos o que acontece àqueles que se atrevem a desafiar Atlas e os Quinze Reis Celestiais.

E assim ela o fez, seu coração quebrado. Primeiro com palavras e continuou fazendo com atos até o presente. Matando em nome dos Reis Celestiais como uma assassina do Submundo, assombrada pela memória de Víctor. Para que ninguém mais sofresse com a esperança vazia de desafiar os verdadeiros governantes daquela cidade.

Uma lembrança que se materializava bem na frente dela. Ela poderia ter resolvido o problema a uma distância segura, mas algo a compelia a estar próxima dele.

Akito Urushibara precisava morrer.



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