Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 14.1: O Caminho das Flores - Parte 01

As portas do elevador se abriram num estrondo.

Silenciaram-se as engrenagens giratórias e válvulas a vapor que, emitindo estrondos e chiados de pressão, punham a geringonça em movimento, para que os quatro Caçadores da guilda Punho do Titã desembarcassem no andar quatorze. Uma cidade, outrora movimentada, envolta numa beleza decadente e natural.

Os arranha-céus que uma vez tocaram o firmamento, eram molduras esqueléticas, cobertas por trepadeiras e flora urbana. Ruas que já foram preenchidas pelo rugido dos motores eram trilhas suaves, onde a grama e flores de todas as cores brotavam por entre as fendas do concreto rachado.

Catena sentiu a areia sob os pés e fitou um ônibus caído de lado, à beira de um lago que nascera das cachoeiras de velhas tubulações, sob o que antes fora uma passarela coberta, debaixo da sombra de um prédio tomado pelas folhagens. Líquens e musgo já cobriam o veículo pela metade, enquanto a espuma branca das águas tomara assento em seu interior vazio.

— Então quer dizer que esta é Silva Urbis, a grande metrópole arruinada do andar quatorze? — perguntou-se Víctor, pondo a mão sobre a testa para fazer sombra aos olhos, enquanto examinava os arredores. — Pensei que nunca chegaríamos.

Apertando os lábios, Catena o fitou.

— Teríamos chegado antes se você não tivesse parado para conversar com todas aquelas pessoas no Átrio.

— Pode até ser — ele assentiu, afastando uma mecha dos cabelos escuros, casualmente despenteados —, mas você sabe como todos se atraem por um bonitão como eu.

Ela revirou os olhos, ajeitando nas costas seu rifle Rainfall Vengeance. Víctor era um Caçador da ocupação feiticeiro, em oposição a Catena Primo, uma guerreira, mas o poder de seu Prana se manifestara de forma que ela se tornou uma atiradora de elite. Uma ironia, considerando que se posicionava mais estrategicamente no campo de batalha, enquanto Víctor fazia a vanguarda.

— Sem querer atrapalhar seus devaneios, mestre de guilda — Badour chamou-lhes a atenção —, mas não seria prudente fazer o reconhecimento primeiro?

Olhando para a elegância daquele homem que já fora chamado em Fantasia de “Rei dos Ladinos”, vestido numa camisa social de giz, colete negro combinando com a gravata, calça social, sapatos lustrosos e um monóculo, Catena não conseguia imaginar como ele fizera amizade com Víctor. Onde Fahmi el-Badour era de uma refinada sofisticação, o mestre da guilda era de uma rebeldia charmosa: uma camisa de botões levemente aberta sob a jaqueta de couro, calças jeans, um par de sapatilhas para seu bailado, e um brinco na orelha esquerda.

— Precisamente — Víctor passou um braço ao redor dos ombros dele. — Eu pedirei a Los Flamencos para fazer isso.

A sugestão pareceu não agradar a Badour que, sem retirar o braço do amigo, puxou dos bolsos um maço de cigarro e seu isqueiro. De testa franzida, ele acendeu o fumo e soltou uma baforada lenta.

— Eles são realmente muito úteis — comentou, olhando de esguelha para as três marionetes que flutuavam ao redor de Víctor Martínez —, e ainda assim, nenhum assassino que se preze deixaria um feiticeiro fazer o papel de batedor.

— Tudo bem! — O mestre da guilda se afastou com as mãos espalmadas em rendição. — Se é assim que você prefere… E quanto a vocês duas, alguma coisa a acrescentar?

Catena fez sinal negativo com a cabeça e se virou para a última integrante daquele quarteto. Vaugeois era de uma beleza enigmática, seu rosto pálido como porcelana destacado em traços suaves e olhos que refletiam a delicada tonalidade das flores de cerejeira. Olhando para ela, estática à beira do lago, com uma expressão vaga a desenhar-se no rosto, a atiradora imaginou como aquela figura de vestido negro e um teatral manto de plumas negras também se unira à Punho do Titã.

— O vento sopra seu réquiem de luto — ela declamou, segurando o peculiar chapéu, semelhante a uma cartola de aba larga, adornado com um laço vinho que contrastava diretamente com a escuridão de seu manto, para criar um efeito dramático. — Que sua verdade suscite em nós um rumo de mansidão.

Franzindo o cenho, Catena encarou aqueles longos cílios e sobrancelhas oblíquas, que emolduravam o olhar de Carla Vaugeois, já começando a murmurar um: “mas que porra é essa?”, quando Víctor fez sinal para se calar.

— Os espíritos regozijam em ode a teus votos de fortuna — ele a devolveu na mesma linguagem ininteligível, cobrindo com a mão um de seus olhos azul-acinzentados. — Oremos para que a sofreguidão voraz não nos consuma em tua sina, Saint des Corbeaux.

Toda aquela baboseira arrancou dela um sorriso tímido. Ele conseguira de novo, sempre conseguia.

Não era só que Víctor fora o único da guilda, até então, a se comunicar de forma eficiente com Vaugeois, seu jeito descontraído fazia com que ele capturasse a atenção de todos. Isso era o que Catena Primo mais admirava, a despeito de seu lado narcisista.

— Vá em frente, Fahmi. Vamos nos encontrar no ponto combinado.

O assassino concordou, e então Martínez apertou-lhe a mão protegida por uma luva sem dedos, em seu particular cumprimento de melhores amigos, e o Rei dos Ladinos partiu em disparada, sumindo à plena vista. 

— Vamos em frente, vocês duas — a seriedade em sua voz de comando era impressionante quando ele assumiu o papel do mestre de guilda. — Nós três não devemos nos separar.

 

***

 

Ao aventurar-se mais profundamente pela cidade, evidenciava-se que a vegetação reivindicara os antigos caminhos de pedra e asfalto, transformando as vias de outrora em túneis verdes. Arbustos se entrelaçavam nas estruturas abandonadas, liberando seu caminho pelas fachadas dos edifícios que um dia foram testemunhas do auge urbano.

Numa praça, agora coberta por um tapete de relva, a luz do sol incidia sobre uma fonte rachada, cuja água límpida atraía os pássaros. Caminhar por Silva Urbis era uma jornada pela harmonia que se estabelecera entre a natureza e a arquitetura humana em deterioração, sob as sombras das árvores, que dançavam pelas paredes desmoronadas, enquanto o aroma das flores se misturava à poeira de concreto, contando uma história silenciosa daquilo que já fora.

À beira-mar, eles descobriram um antigo estádio que, ao invés de sucumbir, como sua fachada de vidro esfacelada dava a entender, tornara-se um refúgio da vida animal. As arquibancadas serviam como tocas a simpáticos roedores, enquanto o campo de jogo se transformara num lago tranquilo, para patos, cisnes e garças, numa beleza melancólica que era vaticínio do renascimento da natureza ao colapso da civilização.

— Agora nós esperamos. — Víctor avisou às duas, assim que o trio adentrou o estádio. — Los Flamencos avisarão caso algum monstro se aproxime.

— Os ecos decadentes do passado badalam em meus ouvidos num rumorejo pretérito — Vaugeois recitou em meio a um rodopio, de braços abertos, que fez tilintar uma gargantilha que enfeitava seu pescoço. — Devo garantir que a solidão do vazio se preencha antes que chegue a morte. Para ser devolvido o que reivindiquei.

A um aceno positivo de Víctor, ela se afastou, saltitando na ponta dos pés e cantarolando. Definitivamente era estranha, mas uma boa companheira de guilda, e uma curandeira eficiente.

— Por que está tão sisuda? — o mestre indagou a Catena, cofiando o fino bigode que aflorava sobre o lábio superior.

— Você sabe muito bem o porquê. Nós não deveríamos estar aqui!

— É mesmo? — Ele desdenhou. — Desenvolva.

Outra vez ele a convidava a mesma discussão que tiveram antes de subir a Babel Verdadeira, sabendo que a atiradora não o convenceria. De todo modo, ela  precisava tentar, quem sabe desta vez não o fizesse mudar de ideia e abandonar aquele desvario.

— Pela milésima vez, Atlas proibiu que Caçadores explorassem Silva Urbis. Se o boato que você ouviu no Submundo for mesmo verdadeiro, ele quer a arma lendária escondida nesse andar para os Reis Celestiais.

— E qual é a autoridade de Atlas para proibir uma área de exploração?

Catena já esperava por essa pergunta e tinha a resposta na ponta da língua.

— A lei de Fantasia é o poder. Ele se ergue acima dos Quinze Reis Celestiais, os governantes indubitáveis da Cidade da Masmorra. Sua palavra é lei!

— Não, não é! — ele sorriu e estendeu o braço, indicando a ela toda aquela paisagem de tirar o fôlego. — Olhe ao seu redor, Catena. Acredita que estamos numa torre? Está mais do que claro que a Babel Verdadeira tem um significado maior do que nós, porém, jamais descobriremos qual é se não fizermos exatamente o que estamos fazendo aqui: explorar! Se permanecermos intimidados por Atlas ou por quem quer que seja, nós nunca vamos evoluir para o verdadeiro propósito desta torre.

Ao mesmo tempo em que aquele discurso de liberdade a admirava, Catena sentia um medo indescritível apenas de se imaginar inimiga dos Reis Celestiais. Com certeza eles eram fortes, mas uma guerreira da classe B e um mago da classe A não eram páreo para os inabaláveis governantes de Fantasia. Que mal poderia fazer o Punho do Titã contra o próprio Titã Que Carrega o Mundo?

— Você precisa se soltar mais. — Víctor mudou de assunto, ao ver que ela apertava os punhos. — Pepe, venha aqui!

Um dos três bonequinhos que compunham o trio Los Flamencos se aproximou flutuando. Este tinha um sorriso radiante e uma pequena guitarra nas costas.

— Toque para nós!

— O quê?! Víctor, não! Não é hora para isso!

Mas tanto o feiticeiro como o boneco não a ouviram e, tirando o instrumento das costas, Pepe começou a dedilhar um ritmo que pouco a pouco se intensificava.

Ese amor llega así, esta manera

No tiene la culpa

Caballo de danza vana

Porque es muy despreciado por eso

No te perdondo llorar

Martínez cantarolava a primeira estrofe de uma canção animada. Dançando sem sair do lugar, ele movia os braços em movimentos fluídos e graciosos, abrindo as mãos em garras, enquanto unia um sapateado rítmico ao requebrar.

Ese amor llega así, esta manera

No tiene la culpa

Amor de compra y venta

Amor de en el pasado

Ben-de-lein, ben-de-lein, ben-de-lein

Bein, ben-de-lein, ben-de-lein

Antes do refrão, Pepe alongou os acordes, enquanto, simultaneamente, Víctor estendeu a mão à Catena, convidando-a para que o acompanhasse. Gerou-se uma expectativa entre o mestre de guilda e o boneco, conforme, hesitantemente, ela estendia a mão e, no último segundo, quando pensou em recuar e repreendê-lo, Víctor a tomou pelo braço.

Bamboleio, bamboleia

Porque mi vida yo la prefiero vivir así

Bamboleio, bamboleia

Porque mi vida yo la prefiero vivir así

Eles rodopiavam juntos, e ainda que Catena tivesse a cintura presa e trocasse os pés, o mestre de guilda tinha habilidade o suficiente para conduzi-la. Num movimento ágil, que ele discretamente incorporou ao vaivém da coreografia, Víctor chutou uma pedra para perturbar as águas calmas do lago, fazendo com que uma revoada de pássaros amedrontados alçasse voo bem no momento que ele a girava em seus braços.

A música terminou num rugir de trovões e, ao fim, os dois estavam corados e com suor escorrendo pelo corpo. Seus rostos iluminados em fartos sorrisos, a centímetros um do outro… e então um aplauso lento e cadenciado os separou.

— Bravo! Bravo! — Fahmi batia palmas, recostado a uma parede às sombras do túnel que conduzia até aquele setor da arquibancada. — Estou interrompendo alguma coisa?

— Não! — Catena se apressou em dizer, retomando a compostura.

— Eu estava apenas ajudando a nossa atiradora a relaxar um pouco. — Víctor completou, jogando uma mecha de cabelos negros para longe dos olhos. — Se ela ficou caidinha por mim, não há nada a se fazer.

Ela revirou os olhos.

— Nojento. E então, Badour? O que descobriu?

— Os boatos eram verdadeiros — respondeu o assassino, saindo do túnel para a luz do sol com as mãos nos bolsos e uma baforada de cigarro. — Encontrei uma estrutura semelhante a uma antiga biblioteca não muito longe daqui. Alguns monstros estão de guarda do lado de fora, mas o item e o chefe secreto provavelmente devem estar no interior.

— Perfeito. — O mestre da guilda bateu palmas, reassumindo sua postura firme ao retesar o queixo quadrado. — Vamos buscar a Carla e partir.

Encontraram-na brincando com um filhote de castor, não muito longe de um dique construído pelos animais no fosso inundado, que levava das arquibancadas ao campo de jogo.

— Quem é a coisinha mais linda da mamãe? — Ela perguntava à criaturinha numa voz infantil, enquanto o pequeno castor repousava placidamente em seu colo. — É você!

Vaugeois apertou as bochechas dele e acariciou seu pelo, recebendo um afago do focinho dele em sua barriga como resposta.

Fahmi pigarreou, fazendo com que ela quase arremessasse seu novo amigo para longe ao erguer-se de um salto.

— Vocês! — exclamou com o rosto enrubescido. — Não é isso… é que…

Ela respirou fundo para recuperar a expressão fleumática que sempre mantinha no rosto.

— Mestre, peço permissão para fazer desta criatura meu familiar.

Mal contendo uma gargalhada, Catena fitou Víctor, que também se esforçava para não rir. Quer dizer então que a Santa de Plumas Negras, a filha das trevas, garota síndrome da oitava série, que dizia repousar sobre catacumbas em cemitérios, tinha uma queda por animais fofinhos?

— Você tem meu consentimento, servidora da noite eterna — respondeu o mestre, naquela língua indecifrável na qual apenas os dois conversavam. — Mas, para onde vamos espreita o manto negro da pena capital.

Carla assentiu e, desamarrando o laço vinho que trazia no chapéu, prendeu-o com delicadeza em seu novo companheiro.

— Ecos de infortúnio ressoam pela estrada que devemos compartilhar, mas eu volto para buscá-lo.



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