Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 12: Dia de Folga

Ele a esperou na entrada do forte.

Com a preocupação de cumprir o treino diário do sistema, Akito mal teve tempo livre durante a manhã, aproveitando o descanso para trocar uma rápida palavra com Barmon, visto que o jardineiro estava preocupado com seu sumiço repentino. Corrin, no entanto, garantiu que Jenna o encontraria do lado de fora da sede da guilda, por volta das onze horas da manhã, para almoçarem juntos na cidade.

Sem saber muito bem como se vestir para a ocasião, o jovem espadachim optou por um yukata, uma tradicional veste japonesa que consistia em um quimono leve e informal de seda negra, com nuvens delicadamente bordadas em fios de prata. A gola e as mangas eram adornadas com um tom mais claro de cinza, criando um contraste suave, que adicionava dimensão ao conjunto, e o obi, a faixa que lhe envolvia a cintura, era de um cinza prateado, para harmonizar com o padrão de nuvens.

Completando o visual com um par de sandálias tradicionais, chamadas geta, ele sentiu como se fosse a um dos festivais de verão a que seu pai o levou junto da irmã na infância. Como não tinha carteira ou celular, ele cuidou de levar consigo uma bolsinha de pano costurada na forma de um sapo, com a boca tapada por um fecho de metal para o ID, um presente de seu pai, que ele guardava junto ao peito.

Faltavam dez minutos para as onze horas quando ele ouviu finalmente os portões se abrindo atrás de si.

— Demorei muito? — a voz de Jenna lhe chegou aos ouvidos.

— Não, eu também acabei de chegar — como que por algum instinto, ele soube que tinha de dizer aquilo.

Ao se virar para encará-la, Akito espantou-se com o quanto estava deslumbrante. Para aquele dia ela optara por um vestido leve e floral, não muito curto, mas não tão longo que escondesse suas pernas torneadas. Era de um azul suave e corte elegante que acentuava suas curvas sem apelar à vulgaridade. Para os pés, ela escolhera sapatilhas que combinavam com o vestido e ainda lhe permitiam andar confortavelmente pela cidade, e como acessórios um par de brincos delicados.

Seu cabelo castanho estava solto em ondas até as costas e a maquiagem que ela escolhera era leve, com destaque para os olhos e um batom suave. Por um instante, Akito se viu silenciado de uma forma que nenhum oponente jamais o fizera.

Que estranho desejo é esse de aproveitar o dia com ela?

— Essa roupa fica muito bem em você…

— Não sei se posso dizer o mesmo — Jenna pontuou com um sorriso arrogante, medindo-o de cima a baixo. — Essa com certeza é uma vestimenta elegante, mas um tanto peculiar para uma caminhada pelo distrito comercial, jovem samurai. Estava planejando ir aonde, Urushibara? Derrubar o xogunato?

Ela riu da própria piada. À vista das críticas, ele simplesmente abriu os braços e encarou a si mesmo.

— Eu não sabia muito bem qual era o propósito disso, então escolhi uma roupa festiva, mas que respeitasse a minha acompanhante.

Jenna revirou os olhos.

— Precisamos comprar roupas para você e um celular, pelo que Corrin me falou. Vamos?

Meio desajeitado, Akito ofereceu o braço a ela, pensando ser o protocolo adequado, mas tudo o que conseguiu foi fazer com que a vice-mestra corasse.

— Não entenda errado! — ela o repreendeu, olhando fixamente para o braço dele e quase estendendo o seu num ato reflexo, mas recuou um passo no último segundo. — Eu só estou fazendo isso porque o Corrin me obrigou. Nós nos odiávamos até alguns dias atrás e só porque eu te tolero agora não significa que quero ficar grudada em você.

— Tudo bem — ele assentiu num aceno de cabeça e recolheu o braço, porém, Jenna pareceu se incomodar ainda mais com a aquiescência dele e saiu desembestada, bufando, pelo caminho que cruzava o bosque ao pé da colina.

Os dois andaram cerca de um quarto de hora em silêncio, antes de tomarem um dos bondes verde-oliva do transporte público de Fantasia. O humor da garota melhorou um pouco. Foi somente quando chegaram ao seu destino que ela tornou a falar com Akito, desempenhando seu papel de guia ao lhe apresentar o Distrito Comercial de Arcádia.

Fantasia dividia-se em quatorze regiões administrativas, que por sua vez se subdividiam em centenas, talvez milhares, de distritos, dentre os quais se destacavam quatro bairros comerciais: o Bazar de Hotpe, o Grão-Mercado do Luar, a Exposição Laminada e, por fim, o lugar onde eles estavam: a Arcádia Mercantil.

Pilastras de mármore e calcário sustentavam tetos abobadados para criar um ambiente que evocava a grandiosidade dos templos antigos a sombrear as ruas de lajotas uniformes e polidas, como num verdadeiro mosaico de pedra. Fóruns arruinados transformaram-se em mercados cheios de itens exóticos e artesanatos de todo o mundo, enquanto pequenos anfiteatros eram agora palco para artistas de rua que proporcionavam entretenimento aos visitantes com chamas e malabarismo.

Fortes militares, em meio aos escombros de uma muralha, não eram mais do que uma ode ao poderio ancestral, quando não invadidos por restaurantes modernos que ofereciam uma culinária diversificada, desde pratos tradicionais até a exótica fusão da mais diversa gastronomia. Barracas coloridas exibiam roupas, joias e lembrancinhas da cidade da masmorra em meio a um ambiente impregnado com uma mistura de especiarias e uma deliciosa comida de rua.

À medida que eles percorriam o distrito, Akito observava o tumulto de negociações, enquanto oferta e procura se desenrolaram num cenário que transcendia as eras. Cores, sabores e odores se entrelaçando ao redor dele numa atmosfera que cativava os sentidos para uma experiência verdadeiramente única.

Eles passaram por todo o tipo de gente, enquanto Jenna apresentava a ele os principais mercados, cafés e restaurantes, lojas de armas e armaduras, antiquários e comerciantes de itens mágicos, além das oficinas dos artesãos, pontos de feira de rua e lojas de souvenires que vendiam imitações dos artefatos que os Caçadores usavam e os turistas gostavam de levar para se sentirem mais próximos do pináculo da humanidade. No caminho para um shopping center, onde ela pretendia mostrar-lhe livrarias, lojas de música e de roupas, e uma galeria de arte, eles quase se perderam um do outro ao esbarrar numa multidão com mochilas e câmeras fotográficas que conversavam animadamente, acompanhando um guia, e foram surpreendidos por saltimbancos em trajes coloridos fazendo mímica, contando piadas e se equilibrando em pernas de pau, conduzindo-os até uma viela onde casais passeavam de mãos dadas, o que fez a garota sair dali a passos largos.

Sua última parada antes do almoço foi no shopping de que Jenna antes falara, localizado no interior de um antigo palácio. Eles caminharam pelas lojas, deparando-se com coisas interessantes como um boticário que oferecia uma infinidade de ervas para chá, de toda a Terra e da Babel Verdadeira, e um pet shop com monstros domesticados da masmorra. Numa butique de moda casual, a vice-mestra sentou de frente a um provador e fez Akito experimentar algumas roupas, seu polegar subindo e descendo conforme aprovasse ou reprovasse.

Uma camisa havaiana florida? Sem chance. E que tal um estilo mauricinho? Também não. Talvez um traje a rigor para um baile de gala? Tentador, mas nada prático para o dia-a-dia. No fim das contas eles concordaram por algumas camisetas neutras, calças jeans e um novo par de tênis. Jenna se sentira especialmente atraída por uma camiseta de caveira e uma calça jeans com uma corrente no bolso. O visual bad boy combinava com ele.

Na loja de telefonia móvel, Akito adquiriu um smartphone dos mais baratos e numa livraria eles compartilharam seus gostos pessoais, trocando recomendações de quadrinhos e literatura. O rapaz presenteou-a com um livro de sua escritora favorita antes de almoçarem: a história sobre uma maga agente secreta investigando um misterioso incêndio na Amazônia peruana. Por fim, eles finalmente se sentaram para descansar, escolhendo um restaurante de uma rede qualquer de fast food na praça de alimentação.

— Nunca imaginei que um dia de ócio pudesse ser tão divertido — ele observou, bebendo seu refrigerante num canudinho de papel biodegradável.

— Sua vida não deve ter sido fácil mesmo — Jenna respondeu de boca cheia.

Ela pedira o maior combo da lanchonete e, na visão do rapaz, comia com a delicadeza de um javali em fúria na masmorra.

— Também não precisa me olhar com essa cara — a vice-mestre franziu o cenho, enfiando um hambúrguer quase inteiro na boca. — Sei que não sou o tipo de garota que você tava esperando.

— Está lendo a minha mente agora? — ele a indagou, rasgando o sachê de ketchup para derramar sobre as batatas fritas. — Seu corpo é forte. Precisa se alimentar bem.

— Boa resposta.

— Mas só por curiosidade, o que você faria se eu pegasse alguma coisa da sua bandeja?

— Eu te mataria — Jenna devolveu sem titubear, mas, passados alguns segundos, pareceu se arrepender da resposta abrupta. — Hum… quer dizer, não é educado pegar sem pedir? Merda!

— Não sei que tipo de garota você acha que eu estava esperando — Akito deu-lhe um meio-sorriso —, mas eu te garanto que não me decepcionei.

— Tá lendo a minha mente também?

Os dois riram.

— É só que… — ela apontou para si. — Isso aqui não sou eu. Quer dizer, normalmente eu não uso esse tipo de roupa, todos esses meus músculos não combinam com esse visual delicado. Mas hoje? Por que não? Eu ia sair com um cara que eu nem conheço direito e até dois dias atrás não gostava. Por ordem do mestre de guilda, ainda por cima. Não era pra ser divertido!

Akito ergueu as mãos, rendido.

— Desculpe se eu te frustrei.

— Não, de jeito nenhum. Como eu digo isso? Quando você me elogiou lá na base, foi legal da sua parte, mesmo que por pena. De repente esse passeio ganhou outra importância pra mim.

— Então qual é o problema, Srta. Spencer? Você se cobra demais.

— Olha só quem fala — ela retrucou franzindo o cenho e depois suspirou. — Pode me chamar só de Jenna. Acho que como companheiros de guilda nós precisamos manter pelo menos esse nível de intimidade.

— Está bem. Aproveitando o ensejo, Jenna, será que você poderia me tirar uma dúvida?

— Olha — ela largou o punhado de batatas fritas que estava prestes a enfiar na boca. — Eu não sou assim porque eu quero, o meu gear consome muita energia. Eu sei que homens não gostam de mulheres que comem de um jeito tão… voraz, mas é isso: eu preciso repor as calorias e fortalecer o corpo se não ele se quebra. E acima de tudo preciso desse poder. O meu objetivo não é tão nobre quanto o seu, tá legal? Então não me pergunte, ainda não estou pronta.

— Si… Sim, claro — Akito gaguejou frente ao desabafo e apontou para uma janela panorâmica atrás dela. — Eu só queria saber que prédio era aquele.

A vice-mestra girou no próprio eixo para estudar a janela e aproveitou para esconder o rosto, de súbito enrubescido pelo que acabara de falar.

— Ah, é verdade. Onde é que eu estava com a cabeça? Aquele prédio, sim. Sim! É a Arena de Hélios. 

— Arena de Hélios?

Era um anfiteatro, como a Arena Central de Fantasia, porém menor, a fachada exterior ornamentada com pilastras de mármore. Ao redor da construção, o jovem espadachim ainda discernia barracas vendendo comida e mercadorias relacionadas às lutas.

— Isso mesmo — ela aproveitou a deixa para mudar rapidamente de assunto. — Como você perdeu grande parte das informações no dia das batalhas simuladas, eu vou fazer o favor de te explicar.

“Fora a Arena Central existem mais seis arenas de combate em Fantasia: Hélios, Selene, Nix, Hemera, Véspera e Erítia. Cada uma delas sedia os eventos da cidade, duelos classificatórios e campeonatos. Os eventos são competições esportivas, duelos são para a ascensão nas páginas de classificação e os campeonatos servem como prévias do Grande Torneio do Palácio Celestial.

Ele massageou as têmporas, outra vez bombardeado de muitas novas informações.

— Vamos devagar, o que são essas “páginas”?

— É outra forma de classificação de Caçadores, mas diferente da medição de Prana, essa é por pontuação em batalhas.

Akito sorriu.

— Mais a sua cara, né? — Jenna achou graça. — Nós chamamos de páginas porque quando você acessa a classificação os Caçadores estão divididos a cada dez e para continuar no ranking você precisa ir para a próxima página no smartphone ou num terminal. Por que não aproveita e vê a sua classificação? É só usar o leitor do aplicativo da administração central no código de barras do ID.

Assim ele fez, e virando a tela do aparelho para Jenna, revelou estar na posição noventa e oito.

— Uau! Você é um página dez, Akito. Mesmo essa classificação sendo mais acessível, eu nunca vi nem mesmo um classe “D” tão alto, quem dirá um classe “F”. Só posso imaginar que depois do que você fez com a Chevallier eles foram obrigados a te dar essa pontuação.

— Eu fico nesse lugar para sempre?

— Não — ela balançou a cabeça. — Se os Caçadores em posições mais baixas disputarem um número significativo de duelos e vencerem, a pontuação acumulada deles pode ultrapassar a sua e por consequência você cai no ranking.

— Entendi… e você? Em que posição está?

Ela lhe despendeu um sorriso presunçoso.

— Sou uma página oito.

— Tão forte quanto eu esperava.

— Meu gear é adequado para embates desse tipo — a vice-mestre deu de ombros. — E antes que você me pergunte, os mais fortes são os páginas um.

— Reis Celestiais? — Akito arriscou.

— Não, os reis celestiais estão em outro nível. A maioria dos “página um” são classe “A”. Muito poderosos, mas não invencíveis.

— E quanto aos campeonatos?

— São os principais eventos de combate em Fantasia — Jenna explicou —, nós os chamamos de Surtidas. Eles acontecem todos os anos e um título de campeão ou mestre de arena pode alçar um desconhecido à página um, mas há cada dez anos as Surtidas ganham um significado especial. Na cidade há uma oitava arena, construída pela Guilda Nacional da China para ser um santuário das artes marciais: O Paço Celestial ou Tiāngōng.

Akito entrelaçou os dedos e inclinou a postura para ouvi-la mais de perto.

— Segundo os boatos que ouvi, há cada cem anos realizava-se na China um grande torneio entre os Kaious, os maiores mestres de artes marciais do mundo. Com a chegada da Era dos Caçadores e a Babel Verdadeira, a renovação de poder tornou-se mais rápida e o torneio passou a ser realizado a cada dez anos e nos anos em que ele acontece as Surtidas funcionam como preliminares. Os mestres de arena e os vice-campeões classificam-se automaticamente para o torneio e podem desafiar alguns lutadores convidados e o campeão anterior.

— Quem é o atual campeão?

— Campeã — ela o corrigiu. — Tsurugi Kambaro, a Rainha do Mundo Marcial, a mais jovem ao receber esse título, com apenas dezesseis anos. Uma Rainha Celestial de Fantasia.

O coração de Akito palpitou, aos poucos seus inimigos iam se revelando.

— Quer dizer que se eu chegar à  final de uma das surtidas terei uma chance de enfrentá-la?

Jenna fez menção de respondê-lo, mas eles foram interrompidos por uma risada grosseira.

— Você? — indagou um homem alto e musculoso, de cabelos escuros e olhos penetrantes, vestido num terno risca de giz de corte impecável. — Não, Urushibara. Sua vitória na batalha simulada foi sorte de principiante. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar e de raios eu entendo.

Os olhos dele se iluminaram com um traço de relâmpago.

— É mesmo? — o jovem espadachim indagou-lhe, com as batidas do coração aceleradas. — E quem é você?

O recém-chegado puxou uma cadeira e sentou-se, com um sorriso para ele e Jenna.

— Meu nome é Dante Fulmine e sou o homem que vai te matar.



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