Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 11: Novo Começo

O mestre de guilda veio apenas no dia seguinte.

Para Akito foi um alívio, pois mesmo com a recomendação do curandeiro de que descansasse, ele teve de cumprir a missão diária do sistema. Os abdominais, agachamentos e flexões de braço não eram problemas, mas como explicar um sujeito à beira da morte no dia anterior correndo pelo vilarejo?

Foi melhor assim, na calada da noite o rapaz se esgueirou para longe da enfermaria e cumpriu o objetivo pouco antes do tempo limite, evitando por um triz a punição, a que ele não tinha nenhum desejo de saber qual era. Voltou para seu leito de enfermo bem a tempo de se esconder do curandeiro, que viera para uma visita surpresa de madrugada, preocupado que Akito não lhe chamara nem mesmo para a refeição da noite, e o encontrou já parcialmente despido para um banho.

O velho suspeitou do suor, das bandagens frouxas e do rubor na face, mas deixou que ele se lavasse enquanto servia mais uma tigela de seu mingau insosso. Antes do jantar, examinou-lhe uma última vez, surpreso pelos ferimentos cicatrizados. Enquanto o jovem espadachim empurrava a gororoba para dentro num gole d’água, o homem informou satisfeito que estava livre para partir no dia seguinte, outra vez parabenizando-o pela recuperação célere.

Foi nessas condições que ele se encontrou com Corrin e Petr no centro da vila e os três sentaram-se para conversar num banco à sombra da grande árvore cantarolante. O mestre estava vestido de maneira exata ao dia em que se conheceram, o que levou Akito a imaginar se o guarda-roupa dele era igual ao de um personagem de gibi, com o mesmo vestuário para todos os dias. Já Petr tinha uma aparência mais despojada, com tênis All Star, calças largas, e uma regata preta que expunha seus braços esguios e pálidos.

— Se não tivesse ouvido da boca de Jenna, eu teria muita dificuldade em acreditar nessa sua incrível recuperação — disse-lhe Corrin com um sorriso, estendendo a mão para Akito cumprimentá-lo e, como o filho do deus da guerra suspeitou, seu aperto era gélido. — Mas aqui está você, de pé e tão saudável quanto alguém que quase morreu há alguns dias poderia estar. Até mais, se quer saber a minha opinião.

— Talvez mais vivo do que você — o rapaz provocou, esperando arrancar dele algum indício de sua natureza vampírica.

O mestre de guilda apenas sorriu enigmático e Petr cruzou os braços em silêncio, fingindo não prestar atenção.

— Pode ser. De qualquer modo, meus parabéns. Não é todo dia que alguém passa por uma experiência tão cruel na Babel Verdadeira e sai vivo para contar a história. Ainda mais tão bem quanto você. Apenas posso dizer que foi um milagre, Akito.

— Principalmente, dada a minha particular situação… — com uma erguida de sobrancelha, o jovem espadachim deixou o restante implícito.

Corrin se empertigou, ajeitando-se à menção velada do contrato de assassínio e endureceu a expressão.

— Fomos tolos ao abandoná-lo à própria sorte — uma preocupação genuína soou na voz dele, o que fez Akito abrir um leve sorriso. — Será que pode me perdoar?

— Não seja tolo — o rapaz pousou delicadamente a mão sobre o ombro do mestre de guilda. — Ninguém me obrigou a concordar, fui eu quem aceitei os termos da exploração.

Corrin e Petr trocaram olhares de cumplicidade antes do primeiro voltar sua atenção de novo para Akito.

— É estranho ver você tão condescendente. Pelo visto Jenna não mentiu sobre a sua atitude ter mudado.

O filho do deus da guerra deu de ombros.

— Quer ouvir o que aconteceu na floresta?

— Essa seria a minha próxima pergunta.

Juntando as lembranças como num quebra-cabeça, Akito narrou com o máximo de detalhes sua primeira experiência na Babel Verdadeira, partindo do momento em que eles se separaram até a chegada do monstro que estraçalhou Arcandros, o Basilisco, mais recente algoz enviado pelo Submundo. Alguns dos momentos descritos foram espetacularmente vívidos, tal como a batalha contra os goblins e a emboscada do assassino, mas, ao descrever a tortura e o plano de fuga, as nítidas imagens de antes começaram a se transformar em vultos. Por fim, ele não soube dizer como se dera o final da contenda, omitindo de Corrin talvez o único elemento que pudesse dar liga à história: o Sistema.

— E foi isso — ele concluiu, repuxando os lábios, sem ousar pôr fogo nas cinzas da memória para não falar demais. — Não fui eu quem derrotou aquele gorila, mas tampouco me lembro de Arcandros fazê-lo. Meu palpite é de que o monstro deve tê-lo devorado e pereceu pelo veneno.

— Uma boa hipótese, mas que não explica a fera cortada ao meio — Corrin pontuou, coçando o queixo, e Akito quase pode ver as engrenagens do cérebro se movendo na cabeça dele. — Confesso que estou um pouco decepcionado. Há lacunas evidentes na sua história, mas acho que não posso esperar muito de alguém que foi envenenado e passou por uma experiência tão atroz.

Os dois se fitaram, com o mestre da guilda atento em busca de algum sinal de falsidade.

— É tudo em que eu posso ajudar — Akito escolheu bem as palavras, temendo que seu interlocutor tivesse algum poder para detectar mentiras.

— Não estou duvidando de você, é só que… — Ele fez uma breve pausa, perscrutando o jovem espadachim com seus olhos escarlate e então suspirou, desviando o olhar. — Todos temos nossos segredos, mas se quisermos sair vitoriosos contra Atlas e os quinze reis, temos de confiar uns nos outros, dentro do possível.

Ao mexer num dos bolsos do agasalho, ele retirou um cartão magnético e o entregou a Akito.

— E aqui vai a minha prova de boa-fé, este é o seu ID. Ele serve como identificação e forma de pagamento na cidade da masmorra. Está vinculado a sua conta no registro de Caçadores. Com ele você pode acessar o sistema de qualquer terminal ou pelo celular.

O filho do deus da guerra estudou o pedaço retangular de plástico branco, com sua foto, classificação e ocupação sobre um código de barras e o brasão da cidade no verso. Ele girou-o entre os dedos e olhou azedo para Corrin.

— Eu não tenho celular e nenhum dinheiro, aliás. E pelo visto perdi uma camisa e uma boa jaqueta na floresta.

— Aí é que você se engana. Nós recuperamos as suas posses e vendemos os espólios de caça no Átrio. Você tem dinheiro para gastar em itens pessoais e eu recomendo que compre um celular e também algumas roupas. O mais básico a guilda pode fornecer.

— Você depositou o valor dos espólios na minha conta? — Akito ergueu uma sobrancelha.

— Não era esse o combinado? — Corrin indagou, rindo. — Tudo o que você caçasse nessa exploração solitária era seu e não da guilda. Mas não vá se acostumando.

— E quantos ienes? Dólares? Eu tenho?

— Créditos — o mestre elucidou com um olhar para Petr, como se não acreditasse que ele não sabia nem isso. — Algumas centenas. A moeda de Fantasia é virtual, mas se não me engano o lastro é feito em dólares. Enfim, acho que não há urgência em debatermos a complexidade do sistema financeiro, ainda mais considerando que os itens adquiridos na Babel Verdadeira são únicos em todo o mundo e a indústria de Caçadores move bilhões por ano, o que transformou toda a dinâmica da economia mundial em trinta anos.

Akito pousou de novo a mão sobre o ombro dele e assumiu uma expressão complacente.

— Eu só quero saber o quanto ganhei. Não precisa ser tão complicado.

— De fato — Corrin revirou os olhos para a face desdenhosa do rapaz e retirou-lhe a mão de seu ombro. — Algumas centenas, como eu disse anteriormente, pelos goblins e o javali. Alguns milhares, depois que incluí aquele gorila nos espólios. A versão oficial é de que você matou ele.

— Por mim tudo bem. Mais alguma coisa?

O mestre se recostou no banco, perguntando-se o mesmo, porém, os assuntos mais importantes pareciam liquidados. Petr o interrompeu com um pigarro.

— Acho que seria bom avisá-lo da folga — ele disse, sem nenhuma emoção na voz.

— Muito bem lembrado! Akito, amanhã é sábado e, portanto, as atividades da guilda estão suspensas.

— Tudo bem… — o rapaz coçou a cabeça, incerto da razão do mestre de se atentar a algo tão trivial. — Por acaso as atividades dos Caçadores são paralisadas aos fins de semana?

— O quê? Não! Os mestres de guilda tem autonomia para definir a escala semanal e os eventos organizados pela administração são realizados todos os dias. Sem contar os duelos. Eu estou dispensando a todos, mas especialmente você. Sua postura inflexível me revela tudo o que eu preciso saber, e ela me diz que você tem sido bem duro consigo mesmo nos últimos tempos.

Akito fez menção de respondê-lo, mas Corrin prontamente o interrompeu.

— Eu sei! Eu sei! Caçador de Classe F, irmã sequestrada, pouco Prana e muito treino. Não precisa repetir sua história triste, mas vê se descansa um pouco. Provavelmente, não vou te dissuadir do seu treino matinal, contudo, essa é uma boa chance de passear pela cidade e conhecer um pouco mais de Fantasia. Encare como outro exercício de campo, se quiser. Jenna vai acompanhá-lo.

O rapaz estremeceu.

— E a Srta. Spencer concordou com isso de boa vontade?

Corrin trocou olhares mais uma vez com Petr, que esboçou em sua face apática o mais próximo de um sorriso que pôde.

— Vamos dizer que é a punição dela por deixá-lo sozinho na masmorra.



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