Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: O Rei Demônio

Era questão de tempo.

No momento em que decidiu ir para a cidade da masmorra, Akito soube que, mais cedo ou mais tarde, aquilo aconteceria. Dois lobos o guiaram a um vestiário, logo que desceram do bonde verde-oliva que os conduzira até a Arena Central. Os demais foram para as arquibancadas por outro caminho, mas Akito não lhes deu mais atenção. 

Um público razoável se juntara para examinar de perto o Classe F desafiado pela Vice-Presidente Nicol Chevallier, uma Caçadora da Classe B. Ou ao menos fora o que ele ouviu. Todos os anos, e aquele não diferia: a recepção dos calouros, o sorteio e as batalhas simuladas eram transmitidos ao vivo para qualquer um de Fantasia que quisesse assistir. Sua batalha seria a primeira e ele esperaria até o chamarem.

Sozinho. Como sempre.

— Infelizmente, você vai ter que esperar para resolvermos isso — falou Akito, virando a cabeça devagar. 

Encostada numa fileira de armários, esperando por ele de braços cruzados e um pé apoiado na superfície de metal, estava uma figura esguia de tênis preto, calças jeans de corte reto e um moletom cinza, simples e prático, levemente folgado, conferindo-lhe uma aparência descontraída, mas ainda assim com um toque de estilo. O rosto sob o capuz estava mergulhando em sombras.

— E então, novato? — chamou ele, rindo numa voz que penetrava gélida aos ouvidos.

Akito franziu as sobrancelhas. Aquele era o que estava dormindo no auditório.

— Foi uma apresentação e tanto, mas não do tipo que chama a atenção das Guildas — admirou-se o estranho, deixando escapar um risinho.

— Se está descontente com alguma coisa que eu disse entre na fila.

O encapuzado endireitou a postura e ergueu as mãos em rendição.

— Tem atitude. Eu gosto disso, mas você ainda precisa discernir quem é o verdadeiro inimigo. Ninguém desafia os Reis Celestiais assim, tão abertamente, e sai impune.

— E quem é o verdadeiro inimigo? — Akito indagou, o canto de sua boca tremendo com o esforço de conter um sorriso.

O gosto pelo desafio só aumentava nele.

— Venha para a minha guilda. As nacionais nunca vão aceitar um Classe F, ainda que você por algum milagre vença hoje. Seria um tapa na cara desta cidade, que vive da classificação dos Caçadores.

Com uma das mãos, Akito escondeu o deleite em seu rosto. Num piscar de olhos, o encapuzado desapareceu.

— Então é isso? — ele perguntou a si mesmo. — E o que eu espero encontrar lá?

***

Todo aquele desprezo apenas o incitava.

— Talvez eu tenha sido severa demais com você — disse Nicol, ao encará-lo no centro da arena. Pelo jeito que ela cuspia as palavras e enrugava a testa, estava obviamente frustrada. Quem sabe não tivera uma conversa desagradável com os outros administradores no curto trajeto até a arena? — Se quiser desistir, posso cuidar para ser escolhido um oponente mais ao seu nível. Basta se retratar nas besteiras que disse antes.

Akito olhou ao seu redor, para as fileiras de assentos escalonados em pedra. Como tudo naquela cidade, a Arena Central de Fantasia conjugava elementos das arquiteturas clássica e moderna.

Telões holográficos estavam posicionados logo abaixo de estátuas que emergiam das bordas de pedra na última camada, representando cada uma das quatro ocupações dos Caçadores: o Assassino com suas lâminas gêmeas, o Curandeiro envergando um símbolo sagrado, o Feiticeiro obscurecido em poder arcano e o Guerreiro de joelhos, com sua testa repousando sobre o pomo da espada longa. Havia camarotes nos andares inferiores, providos de todo o luxo, e uma tribuna aberta de honra, destinada ao Governador, mas ao invés de Minos Architsis, eram Terumi e o Dark Guardian que a ocupavam naquele dia, a Presidente da Comissão de Recrutamento observando atentamente e com alguma apreensão os dois oponentes no centro da arena.

— Talvez não — Akito respondeu, finalmente repousando o olhar sobre a oponente. — Talvez eu queira estar aqui, independentemente do que aqueles dois na tribuna estejam planejando.

Nicol deu de ombros e assentiu.

— Você parece ser do tipo que acredita que o trabalho duro pode superar o talento natural, mas está prestes a descobrir que algumas coisas nesse mundo são imutáveis. Não importa a quantidade de esforço.

Dois telões se iluminaram com os nomes e classificações de ambos:

 

Akito Urushibara, Classe F.

Ocupação: Guerreiro

 

versus

 

Nicol Chevallier, a Cavaleira das Duas Rosas, Classe B.

Ocupação: Guerreira.

 

— Sejam todos muito bem-vindos à primeira batalha simulada para a Avaliação de Caçadores Novatos do ano de 2080 — uma voz feminina e enérgica jorrou dos alto-falantes por toda a arena. — Meu nome é Lilly e serei a árbitra da partida. Se os combatentes estiverem preparados, materializem seus gears!

Mal a garota terminara de fala, um brilho de aço emanou das mãos de Akito. Como um samurai a desembainhar sua lâmina, ele materializou a espada numa batida de coração. Não uma catana, mas um sabre de esgrima de lâmina pontiaguda, guarda circular e punho esguio.

Simples e sem adornos.

— Levante-se e me obedeça, Aglavros!

A cavaleira das rosas não estava impressionada.

— Roses Armor.

Um doce aroma de rosas a envolveu e Nicol desapareceu em meio a pétalas num vendaval. Cobrindo todo o seu corpo, revelou-se num luzir uma armadura de placas branca e vermelha, com um elmo cuja forma lembrava um botão de flor.

Ela estendeu o braço e pétalas dançaram ao redor dele, dando lugar a uma lança de justa. Branca com rosas-vermelhas.

— Que a batalha comece! — autorizou a árbitra.

Como se a arma não lhe pesasse nada, Nicol investiu num movimento gracioso. Completando o avanço numa estocada, ela forçou Akito a se esquivar da lança com um passo para trás.  Quando o golpe passou por ele, um brilho vermelho explodiu na ponta da arma, deixando um rastro de luz e pétalas de rosas.

— Fez um bom julgamento. Mesmo tendo a constituição aprimorada de um Caçador, um golpe direto da minha Lancaster teria acabado com você.

Nicol tentou de novo, com uma pancada que passou rente à cabeça de Akito e em seguida mais uma estocada. Desta vez, Aglavros desviou a carga e o brilho vermelho deslizou pela lâmina do sabre.

A Cavaleira das Rosas o pressionava numa série de golpes velozes. Para o público o vencedor já era certo, mas por alguma razão a lâmina esguia e seu rápido jogo de pés continuavam a garantir com que Akito se mantivesse fora do alcance total da lança.

— Você é bom em fugir, novato. Considere esta primeira sequência minhas boas-vindas a Fantasia.

— Obrigado — ele respondeu jocoso, tirando os óculos e jogando o cabelo para trás. — Deixe-me retribuí-la!

Akito respirou fundo e avançou com uma estocada. Nicol mal o acompanhou e teve de usar o corpo da lança para se defender.

— Esse movimento… É a minha técnica! Mas… como?

Ainda mais rápido, ele desferiu um corte na horizontal, que riscou o elmo da Vice-Presidente.

Nicol tomou distância com um sobrepasso para trás. A plateia se calou.

— É isso o que significa ser um classe F. Ninguém perde tempo em ensinar o mais fraco. Você precisa aprender tudo sozinho!

— Não posso acreditar que alguém como você conseguiu arranhar minha Roses Armor!

Seguiu-se uma série de cortes e estocadas, semelhante ao que ela antes fizera.

— Com a minha Visão Perfeita sou capaz de ver através do estilo de luta de qualquer oponente e prever seus movimentos com antecedência. Uma vez que entendo as habilidades a serem replicadas, posso reproduzir técnicas avançadas e desvendar os mais profundos segredos da arte marcial com a minha habilidade Changeling. Uma técnica medíocre como a sua se revela completamente para mim — zombou o Classe F.

Ela fez uma careta. Não se deixaria humilhar por um inseto como aquele.

No último segundo antes de suas armas novamente colidirem, a cavaleira notou que a lâmina de Akito se movia de baixo para cima.

— E que tal uma finta! — exclamou a Vice-Presidente, baixando o corpo para evitar o sabre.

Sua lança foi ao encontro do cabo da espada. Nicol arregalou os olhos. Akito se recuperara antes de ela perceber e mudara para uma forma defensiva de empunhadura.

Seu raciocínio de guerreiro era extraordinário.

— Um movimento arrojado não combina com seu estilo de força bruta. A falta de costume apenas facilita prever os seus movimentos.

Com um empurrão ele a fez recuar. Boquiaberta, Nicol viu seu espanto refletido no público. E sentiu quando veio um corte impossível de conter.

Foi a vez de Akito se espantar. Com um salto para trás, ele colocou alguma distância entre os dois. Sua espada ricocheteou inofensiva na armadura da adversária.

— Parece que chegamos a um impasse, Sr. Urushibara — comentou a Vice-Presidente, mal ocultando a repulsa na voz. — Que espera ganhar me expondo ao ridículo? A pureza do seu prana é insuficiente para fazer com que essa espada sem graça atravesse minha armadura. Que bem faz encher o coração dos fracos de esperança?

— Sabia desde o início que Aglavros não poderia feri-la?

Nicol abriu um triste sorriso.

— Mesmo para Caçadores da classe A, seria quase impossível trespassar a defesa do meu gear. É irritante saber que preciso dar tudo de mim contra um homem medíocre, mas a razão pela qual eu vencerei esta batalha é a quantidade e a pureza do prana em minha alma. Caçadores diferem de meros espadachins. Como eu antes disse: algumas coisas são imutáveis.

Akito baixou os olhos. Escutava as risadas e sem olhar ao seu redor, imaginava os rostos dos espectadores relaxando em alívio. Os fracos perdiam dos fortes. Tudo estava normal, mas o extinto fez sua oponente avançar com cautela.

Uma gota de suor escorreu pela testa de Nicol. Poder era a lei na cidade da masmorra!

O Filho do Deus da Guerra sorria.

Temendo perder o controle da situação, ela desferiu uma estocada para liquidá-lo de uma vez,  mas a lança explodiu na parede de contenção da arena. Pétalas inundaram o campo de batalha. Akito surgiu milagrosamente atrás dela.

Surpresa, a Vice-Presidente girou o corpo. Golpeando para todos os lados. Nenhum ataque o acertou. Ele estava sempre um passo a frente.

— Como você está fazendo isso?!

Tão rápido, quase como se estivesse se teletransportando, ele saltou sobre a cavaleira.

— Para derrotar um Caçador, o homem comum deve se transformar num demônio!

Nicol mal pareceu sentir o golpe quando a espada veio sobre ela de cima para baixo. Sua expressão congelada em absoluto terror. Os braços tombaram ao lado do corpo. 

E a armadura se partiu.

Cortada ao meio, foi desintegrada em pétalas de rosas. No silêncio da arena, o som de algo se rasgando ecoou e por fim as roupas da orgulhosa Vice-Presidente da Comissão para Avaliação de Caçadores Novatos também se foram.

A luz incidia sobre a pele asseada, ao passo que a brisa gélida soprou para lhe enrijecer um mamilo. Tudo à mostra.

Seu queixo caiu e os olhos se esbugalharam, mas os nós dos dedos apertaram firmes no cabo da lança. A Cavaleira das Rosas caiu de joelhos, escondendo o que Akito revelara.

Ele fitou o público ao seu redor.

— É incrível como a simples nudez nos transforma naquilo que realmente somos: humanos. Com todas as nossas fraquezas. Que isso sirva de lição a vocês!

— O vencedor — balbuciou Lilly, a narradora — é Akito Urushibara!

Sua fotografia, nome, classificação e ocupação se apoderaram de todos os quatro telões holográficos. Não tardou para que vaias do público feminino tomassem conta da plateia.

— Um demônio?! — gritou alguém. — Você é o pior de todos! O Rei Demônio.

Em oposição, parte do público masculino assobiava, dando vivas pela vista inesperada, mas bem-vinda da vice-presidente.

— O Rei Demônio! O Rei Demônio! O Rei Demônio! — eles o saudavam.

***

Seu telefone tocou uma única vez.

— Ei, Jenna — foi o encapuzado quem atendeu. — E então? O que achou do novato?

— Desprezível — ouviu-se uma voz feminina do outro lado da linha. — Precisava mesmo deixar ela pelada na frente de todo mundo?

— Ele tem atitude.

— O que significa que vai trazê-lo para cá não importa o que eu diga — suspirou a mulher.

— Nos vemos mais tarde — ele desligou.

Das arquibancadas, fitou Akito. O Rei Demônio dera as costas para sua adversária caída e já retornava ao vestiário.

— Em breve, Urushibara. Muito em breve.



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