Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Cavaleira das Duas Rosas

O ambiente recordava do dia em que a perdera.

Há muito que ele não lidava bem com o escuro. Akito se esforçava para manter-se indiferente em meio às pessoas que eram sombras no auditório.

Ele tomou seu lugar numa das últimas fileiras, virando a cabeça de um lado para outro, em busca de algo que o pudesse acalmar. Reparou num sujeito estranho, de capuz. Parecia cochilar, mas não lhe deu mais do que uma olhadela de uns poucos segundos.

O palco era menos enervante. Mais abaixo das poltronas, alocadas em níveis, como num anfiteatro. Toda a iluminação recaía sobre ele, e pelo menos ali as pessoas não eram silhuetas escuras, como na lembrança do dia em que levaram sua irmã.

Para se distrair, estudou seus rostos. Terumi e o Dark Guardian tiveram lugar na mesa dos administradores. A presidente da Comissão de Recrutamento para Caçadores Novatos dizia algo ao ouvido de um homem alto e de cabelos nevados. Seu rosto era uma harmoniosa combinação de traços suaves e angulosos, de maxilar forte e bem definido, e as maçãs do rosto levemente proeminentes, dando-lhe uma aparência sutilmente esculpida. A pele, clara e imaculada, conferia uma aura de aristocracia e distinção. 

Ele assentiu com uma expressão grave e lançou um rápido olhar para onde Akito estava. Seus olhos eram de um profundo cinza-prateada e o olhar intenso parecia afogado em melancolia.

Impossível. Tem centenas de pessoas aqui, ele não pode estar olhando especificamente para mim!

O auditório estava lotado, não só pelos novatos, mas de outros Caçadores experientes e executivos de terno e gravata. Estes os mais exasperantes.

Teruya e o estranho entraram num consenso sobre o que fora dito e o homem, vestido num terno cinza impecável, decerto confeccionado sob medida, e uma capa branca que lhe deslizava sobre os ombros, acenou positivamente com a cabeça. Desviando o olhar das últimas fileiras do auditório, para o alívio de Akito, que se ajeitou na poltrona, ele chamou por outra mulher. Também sentada à mesa dos administradores, esta tinha cabelos negros, que fluíam em ondas suaves até a altura dos ombros, destacando-se pela presença de uma mecha rósea, e olhos azuis penetrantes irradiando uma determinação feroz.

Ela se ergueu e num movimento amplo, como se regesse uma orquestra, acionou o microfone antigravitacional.

— Senhoras e senhores, sua atenção, por favor. Para os que ainda não me conhecem, meu nome é Nicol Chevallier, Caçadora da Classe B e Vice-Presidente da Comissão de Recrutamento para Caçadores Novatos.

Ela fez uma breve pausa. Destinada aos calouros absorverem aquela informação. Akito reparou que a vice-presidente trajava uma armadura que era a perfeita combinação de proteção e funcionalidade: uma placa de peito branca que reluzia com o brilho do aço polido e ombreiras douradas, completada por uma saia preta e meia-calça que se estendia até os tornozelos, adicionando um toque de elegância à sua aparência.

— Como muitos de vocês já devem saber, todos os caçadores novatos devem participar de batalhas simuladas para serem inseridos na classificação oficial da cidade. Trata-se de uma tradição dotada de finalidade prática: avaliar, para além da pureza e quantidade de Prana em seu gear, a habilidade geral de combate.

Um burburinho eclodiu entre a multidão. Akito trincou os dentes. Suas vozes fantasmagóricas no ambiente sem luz não ecoavam boas lembranças.

— O resultado dos combates será repassado da Comissão de Recrutamento para as Guildas Nacionais e mais tarde, quando a seleção inicial for encerrada, também para as Internacionais. Nunca é demais repetir: Caçadores são armas! E por isso nenhuma nação está disposta a perder um Caçador habilidoso. Para os que desejam riquezas, fama e glória, estejam cientes de que as Guildas de seus respectivos países anseiam por recrutá-los e tratá-los como reis. A única lei para nós é o poder!

Suas últimas palavras fizeram Akito se esquecer do medo e recobrar a euforia de um bom desafio.

— Antes de começarmos a seleção, entretanto — continuou a Vice-Presidente em meio a uma onda de aplausos, que lentamente fora morrendo —, agora com a presença da Presidente desta comissão e do delegado-geral do comitê de segurança, o Governador de Fantasia deseja-lhes dar seu discurso de boas-vindas.

Outra salva de palmas e o homem que antes conversava com Terumi se levantou. Ele foi até o limite do palco, deixando a luz incidir em seus cabelos de um branco puro, como flocos de neve em cascata para emoldurar seu rosto numa aura quase etérea, e o microfone flutuou para segui-lo.

— Saudações — disse, numa voz grave, que estranhamente não combinava com o rosto de beleza andrógina. — Sou Minos Architsis, Juiz Supremo e Governador de Fantasia.

Mais uma vez, Akito teve a sensação de que os melancólicos olhos cinza-prateados do governador o procuravam em meio à multidão.

— Há trinta anos, como muitos devem se lembrar e todos muito bem sabem, nosso mundo sofreu com o evento Colapso, um despertar em massa do poder da alma sob a forma do Gear. Foi o nascimento de uma nova humanidade, cujos indivíduos conheceram um significativo aumento de força, superando os limites até então estabelecidos. O surgimento da Babel Verdadeira, emergindo junto das ruínas que mais tarde seriam a cidade de Fantasia, do mais profundo e obscuro recôndito oceânico, foi um sinal da mudança dos tempos. A nova raça humana nascera com o propósito de combater as terríveis ameaças encerradas na grande masmorra. Uma elite cujo poder os escolheu para guiar os menos afortunados nas novas e infinitas possibilidades de ganho para nosso mundo. A princípio muitos temeram que os horrores mitológicos adormecidos na torre pudessem despertar para um fim apocalíptico desta era, mas o contra-ataque da humanidade mostrou aos nossos inimigos que não somos gado, esperando pelo abate. Somos Caçadores.

Um inebriante brilho de loucura faiscou em seu olhar, perturbando a calmaria de prata líquida no semblante do governador, e ele abriu os braços, capturando a todos em sua dramaticidade. Como se naquele gesto tentasse abarcar ao próprio mundo.

— A paz existe, neste momento, graças a harmonia do sistema que desenvolvemos na cidade da masmorra. Logo quando a Babel Verdadeira irrompeu dos mares, ficou claro que a força é o pilar que mantém Fantasia e sustenta a ordem. Os fortes são recompensados neste solo sagrado e os fracos sofrem se não há ninguém para protegê-los.

Tão rápido como viera, a insensatez se foi e um indício de fadiga se insinuou em sua voz, mas a paixão com que falava ele falava permaneceu.

— Este é o seu dever como Caçadores.

Desta vez os aplausos começaram tímidos, porém, assim que o Governador Architsis se virou para voltar à mesa, todos explodiram numa acalorada salva de palmas. O microfone então seguiu até a Presidente Sonoda, que não se levantou.

— Sigamos então com o procedimento para o recrutamento das Guildas Nacionais. Organizaremos um sorteio de pares que se enfrentarão em duelos simulados. Caso nenhuma Guilda Nacional se interesse por vocês ou o contrário, estarão livres para se juntar às Guildas Internacionais. Infelizmente, estas guildas menores são formadas por indivíduos considerados dispensáveis às forças armadas de seus países. Elas não podem oferecer a mesma estrutura e suas atividades de exploração da Babel Verdadeira são por vezes limitadas aos andares iniciais, mas não se enganem. Vocês são Caçadores e se recrutados a uma incursão num dos andares mais altos, devem se apresentar a esta comissão novamente.

Ela tomou fôlego, suavizando a expressão.

— Como último ato antes de realizarmos os sorteios e nos dirigirmos para a Arena Central, eu convido o representante dos calouros deste ano a dizer algumas palavras. Sr. Akito Urushibara? Por favor.

Todos os olhares recaíram sobre ele quando se levantou. Havia uma atmosfera de grande expectativa sobre o que diria o Filho do Deus da Guerra, mas o sobrenome logo já não lhe seria mais um fardo ou serviria de escudo.

Quando subiu ao palco, sua foto e classificação de Caçador da Classe F surgiram num telão. Akito encarou a si mesmo, um jovem de cabelos negros na altura dos ombros e rosto magro por detrás dos óculos retangulares de armação fina. De pele pálida e olhos rasgados e bem expressivos, intensificados pela cor âmbar profunda.

Risadinhas eclodiram pelo auditório e olhares perplexos o fulminaram.

Como o Filho do Deus da Guerra podia ser tão fraco? O mais fraco.

Era justamente isso o que ele queria. De onde estava, as pessoas não pareciam mais sombras. Pareciam insignificantes.

— Bem… — ele respirou fundo — não quero me estender demais. Como vocês já ouviram, meu nome é Akito Urushibara e sou um Caçador de Classe F. Eu imagino que saibam o que isso signifique? Absolutamente nada! Para ser sincero, suas classificações e o resto são apenas um degrau para mim. Não planejo perder para ninguém que nunca esteve num combate real. Basicamente, agora que estou aqui, serei o mais forte de todos! Vocês e a cidade da masmorra são pequenos demais em comparação ao meu objetivo. Mandem vir logo os Quinze Reis Celestiais!

Ao terminar, Akito se curvou numa breve reverência. Houve um instante de silêncio e então o público, especialmente os novatos, se ergueu em revolta contra sua arrogância.

— Sr. Urushibara — chamou a Vice-Presidente Nicol Chevallier, atraindo o microfone ao se levantar —, não me faça rir. A maioria dos Caçadores talentosos chega a Fantasia ao fim do ensino médio com dezessete ou dezoito anos. Você, no entanto, já tem vinte. O que significa que, sendo da Classe F, não tinha sequer poder suficiente para estar aqui antes disso. Alguém tão fraco deveria se envergonhar de levantar a voz para dizer essas besteiras.

— Dezessete ou dezoito anos? — ele se perguntou, novamente atraindo os olhares furiosos para si.

Nicol, que fez menção de se sentar, ergueu-se para respondê-lo.

— Exatamente! Agora, se quiser retirar o que disse…

— E a quantos combates reais foram?

— O quê?!

— Um bando de crianças brincando de caçar monstros no jardim de uma torre não me intimida.

Os olhos de Chevallier se arregalaram. O canto de sua boca tremia de raiva pela insolência.

— Seu… — ela mal tinha palavras — desgraçado!

Akito notou que provocara alguém de paciência curta, estando nítido que Nicol já não mais se aguentava. O rosto dela estava torcido numa careta vil e o olhar transbordando em fúria, mas aquilo serviu aos propósitos do filho do deus da guerra, ao entender que poderia se aproveitar do fato.

— Não haverá sorteio para você.

A multidão exclamou.

— Nicol, espere… — pediu Terumi.

— Se deseja tanto assim que alguém exponha você ao ridículo e o coloque em seu devido lugar, classe F, deixe que eu o enfrente. Nicol Chevallier, Caçadora da Classe B, a Cavaleira das Duas Rosas.

Ela apontou em sua direção com o indicador em riste.

— Por tudo o que mais sagrado, Nicol — a Presidente Sonoda interviu, parecendo incomodada com aquele súbito desenvolvimento. — O rapaz tem sim a boca grande, mas ele sofre da inocência de quem nada sabe acerca dos costumes de Fantasia. Deixe que passe a noite numa masmorra do Quartel General dos Lobos e tudo estará resolvido.

O Dark Guardian concordou de imediato com a proposta, ao passo que Minos Architsis estudou Akito com curiosidade. Nicol, por sua vez, estava irredutível e meneou a cabeça em negativa diante da proposta.

— Não se trata de um crime ou infração das normas de conduta, mas de uma questão ainda mais prejudicial à harmonia de todo o sistema. Um golpe no orgulho de todos os Caçadores que residem em Fantasia e diariamente arriscam suas vidas na Babel Verdadeira.

— A Vice-Presidente está certa, Terumi — apoiou o governador, sem tirar os olhos de Akito. — O Sr. Urushibara tem o direito de desafiar quem ele quiser, mas deve ser responsabilizado por seus atos e também pela consequência de suas afirmações. Só há uma forma de resolvermos esta situação: A lei de Fantasia é o poder!

O salão pareceu girar ao redor dele, tamanha era sua expectativa. Todo resto era desprezível. Existiam apenas ele e Nicol Chevallier.

Akito simplesmente não conseguia parar de sorrir.



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