Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: Filhos do Deus da Guerra

Ele ainda ouvia o choro engasgado de sua irmã mais nova.

Da escuridão, veio um par de braços fortes para segurá-la. Três brutamontes de paletó negro e óculos escuros a enfiaram no banco de trás de um carro.

— Irmão! Irmão!

O modelo SUV acelerou. Pelo vidro traseiro ele ainda a via. Lágrimas escorriam, os lábios se mexiam, mas já não escutava nenhum som.

— Mayumi!

O pranto queimava também em seu rosto. Ele tropeçou numa pedra e caiu no escuro.

— Senhor?! — chamou-o uma voz longínqua. — Está tudo bem?

Akito despertou com lágrimas nos olhos. A vista embaçada o fez tirar os óculos para limpá-los na gola da camisa. Logo discerniu a figura da comissária de bordo baixinha, de cabelos dourados e uniforme azul impecável.

— Sim — ele respondeu desconcertado —, foi apenas um sonho ruim.

A mulher lhe despendeu um sorriso cortês, artificialmente treinado.

— Por favor, endireite a poltrona. Já estamos para aterrissar em Fantasia.

Os outros novatos estavam animados, e espiavam os estranhos edifícios da cidade da masmorra pelas janelas do avião, mas assim que a aeromoça o deixou, Akito permaneceu simplesmente quieto. Diferente dos que vinham a Fantasia para se estabelecer como Caçadores, ele tinha um objetivo maior e não perderia a compostura antes de descobrir o quão árduo seria executá-lo.

***

Quatro torres de pedra desgastada cercavam o edifício central do aeroporto, perfazendo os pontos cardeais, e entre elas havia mais quatro torres menores para os pontos colaterais. Cada qual com a estátua de um homem togado soprando os ventos em direção à pista de decolagem que emoldurava a construção.

Apesar de seu estilo clássico, uma fortaleza de teto abobadado e paredes maciças de obsidiana, o aeroporto tinha o interior moderno, abundante em telas holográficas e climatizado pela ação de ares-condicionados. Um amálgama que, segundo Akito ouvira dizer, não era incomum na cidade da masmorra.

E por falar nela, ao serem conduzidos pelos capacetes azuis das Nações Unidas a um bonde verde-oliva, que trafegava pelas linhas do transporte público de Fantasia, eles não puderam deixar de vê-la no centro da cidade: A Babel Verdadeira. A torre possuía uma estrutura maciça, composta por blocos de pedra sólida e colunas que se elevavam em direção aos céus para sustentar grandes arcos, decorados com padrões intrincados de arabescos.

Suas paredes adornavam-se de estátuas esculpidas na mesma rocha alva da estrutura do prédio, imensas efígies de pedra representando deuses mitológicos, criaturas fantásticas e heróis do passado, tal como: Zeus, o todo-poderoso senhor do Olimpo, majestoso em meio aos trovões esculpidos ao seu redor, Hachiman, deus das oito bandeiras, com seu arco de guerra retesado, Hércules, coberto na pele que esfolara do Leão de Nemeia, Scheherazade, a contadora de história, lançando um olhar sagaz por cima de seu livro pétreo, Wukong, o Rei Macaco, de pé sobre uma nuvem voadora, apontando para a cidade seu cajado que era capaz de alcançar até mesmo a lua, e Atena, deusa da sabedoria e da guerra, vista com sua lança e escudo.

A cúpula que coroava a Babel Verdadeira, por sua vez, era uma obra-prima em si. De formato arredondado e elegante, destacava-se em meio às ameias no topo da construção, elementos arquitetônicos em forma de dentes de serra que forneciam uma defesa adicional às áreas mais elevadas da torre, ornamentada em relevos de prata e ouro que adicionavam um toque final de majestade à grandiosidade da construção.

Mas não era para lá que eles estavam indo e sim para um arranha-céu moderno, onde funcionava a sede da Comissão para Avaliação de Caçadores Novatos.

Num átrio de chão polido, com o brasão da cidade, todos os novatos foram postos em fila diante da recepção. Uma mulher de longos cabelos escuros, olhos negros e semblante pálido estava a sua espera.

Ela vestia um quimono branco, decorado com um padrão de ramos floridos e bem preso por uma faixa escura, sentada num tipo de mesa baixa com um cobertor grosso, que os japoneses chamavam de kotatsu, posta sobre uma liteira. Quatro homens de uniforme preto e vermelho, com máscaras de lobo, sustentavam o peso nos ombros enquanto ela bebia um gole de chá.

— Boas-vindas a todos — cumprimentou-os a mulher, deixando escapar uma risadinha ao notar os olhares de espanto para com toda aquela exibição. — Eu me chamo Terumi Sonoda e sou a Presidente da Comissão de Recrutamento para Caçadores Novatos.

Houve um resmungo geral de concordância.

— Este, ao meu lado, é o Dark Guardian, comandante dos Lobos.

Ao seu lado estava um indivíduo alto e imponente, trajando armadura de placas robusta e uma longa capa negra, que fluía suntuosamente a cada movimento dele. Assim como os quatro soldados que sustentavam a Presidente da Comissão de Recrutamento, também usava uma máscara feita de metal resistente, cobrindo a metade superior do rosto. A máscara lembrava um lobo feroz, os olhos dourados brilhando intensamente e as presas afiadas refletindo sua altivez.

Muitas cabeças se viraram para encarar o comandante, que não se esforçava para ser intimidador. Os Lobos eram os responsáveis por assegurar o cumprimento das leis e garantir a ordem na cidade, funcionando como o Comitê de Segurança Pública de Fantasia. Se aquele era o seu líder, eles com certeza não desejariam comprar briga com a polícia dos Caçadores.

— Em breve seguiremos para o auditório onde o Governador de Fantasia planeja recepcioná-los com um discurso — informou a Presidente Sonoda. — Depois, um representante desta turma de calouros também será convidado a dizer algumas breves palavras. Que tal? Alguém se voluntaria?

Desta vez houve um resmungo de insatisfação.

Ara ara… Nenhum voluntário? E que tal você, Akito Urushibara? Seu pai foi um Caçador lendário.

Ao ouvirem seu sobrenome, os demais se voltaram para ele de queixo caído e olhos arregalados. A revelação criou um burburinho entre os novatos, mas ninguém ousou se aproximar.

Mantendo o decoro, Akito assentiu devagar. Não era como se estivesse escondendo que seu pai era Jinnei Urushibara, um Caçador de Classe S, que ficou conhecido como Deus da Guerra durante o incidente com os Monarcas no andar cento e cinquenta da Babel Verdadeira, mas atenção demais poderia atrapalhar em seu objetivo. Principalmente, depois que descobrissem o que ele era.

— Excelente — Terumi bateu palmas. — Que tal vocês irem para o auditório?

Akito esperou que todos os calouros seguissem antes de finalmente se dirigir à presidente.

— Espero que não se incomode por eu revelar aos outros novatos sua real identidade — Sonoda pediu desculpas com um sorriso afetado demais para ser sincero.

Ele deu de ombros.

— Mais cedo ou mais eles acabariam sabendo. Na verdade, tem outra coisa me incomodando.

— Ficarei feliz se puder ajudá-lo… — ela sorveu outro gole de chá e o examinou com seus grandes olhos escuros.

— Minha irmã mais nova — revelou Akito —, ela foi trazida a Fantasia ainda criança. Recebeu treinamento para ser uma Caçadora da Classe S.

— E daí? — Terumi perguntou, ainda sorrindo.

— Ela devia ser reconhecida como uma filha do Deus da Guerra, e muito poderosa — Akito sentiu um nó na garganta ante a falta de reação. — Por que é que todos agiram como se eu fosse especial? Já tem alguém da minha família na cidade.

Desta vez, Sonoda riu de um jeito enigmático.

— Eu nunca ouvi falar da sua irmã.

— O quê?! — ele indagou, finalmente perdendo a compostura. — Mas como isso é possível? Deve haver algum engano! O nome dela é Mayumi. Mayumi Urushibara.

Terumi arregaçou uma das mangas, para mostrar a ele um relógio digital. Dali expandiu uma tela holográfica e pesquisou pelo nome que Akito lhe dissera, mostrando a ele uma ficha de registro.

— Alguém chamada Mayumi Urushibara foi mesmo registrada como Caçadora em Fantasia — explicou a presidente —, mas todas as suas informações estão faltantes. Não há dados de batalhas simuladas, campeonatos, duelos ou mesmo exploração na Babel Verdadeira.

Akito sentiu uma terrível angústia e recuou um passo para longe da tela, o suor frio a yescorrer pela nuca. Ele imaginava se teria valido à pena ir até aquela cidade. Estariam as Nações Unidas ocultando Mayumi em outro lugar?

— Não fique chateado — Terumi interrompeu seus pensamentos. — Ninguém poderia registrar um Caçador com tão pouca informação.

Ele ergueu os olhos para a presidente, que ajeitava nos cabelos um enfeite de meia-lua.

— O que isso significa?

— Que os dados originais ou foram apagados, ou estão restritos para mim.

— Mas como assim?! — Akito esbravejou. — Você é uma administradora, a Presidente da Comissão de Novatos ou algo assim…

— Presidente da Comissão de Recrutamento para Caçadores Novatos — corrigiu ela.

— Que seja! Quem poderia estar acima de você? Acima do próprio governo?

Terumi contraiu os lábios, desta vez num sorriso genuíno.

— Você nunca ouviu falar dos Quinze Reis Celestiais?

— Quem… quem são eles? — perguntou Akito, engolindo em seco ao ouvir uma alcunha tão imponente.

— São os Caçadores mais poderosos de Fantasia. Uma elite inabalável que reina acima dos administradores da cidade. 

Akito franziu o cenho.

— Como eu posso encontrá-los? Como posso convencê-los a revelar o paradeiro da minha irmã?

— A lei de Fantasia é uma só: Poder! — Terumi continuava sorrindo. — Se tiver poder suficiente para derrotá-los, você pode obter o que quiser.

— Derrotá-los?

Sua expressão tornou-se sombria e as mãos de Akito passaram a tremer.

— Mas já vou logo avisando: há muito que eles permanecem inabaláveis no topo da hierarquia. Seu mestre Atlas, o Titã Que Carrega o Mundo, impede que o sistema desabe mesmo que eventualmente um dos reis seja derrotado. Sua única opção é uma vitória total e arrasadora.

Pairando sobre ele, do alto de sua liteira, com um sorriso jocoso, Akito teve certeza de que a Presidente Sonoda pensava tê-lo derrotado apenas com o desafio. O filho do Deus da Guerra, porém, explodiu numa gargalhada.

Diante de sua inesperada reação, ela e o Dark Guardian trocaram um olhar de cumplicidade.

— Por que está rindo? — Terumi perguntou, em seu íntimo sabendo a resposta.

Havia nele um gosto pela batalha. Uma resolução ainda mais inabalável do que os Quinze Reis Celestiais.

— Você acaba de me livrar de uma terrível preocupação.

— É mesmo? — e ao indagá-lo, ela ergueu uma sobrancelha. — Acabo de revelar que terá de enfrentar os indivíduos mais poderosos de Fantasia se insistir no seu objetivo e ao desafiá-lo a galgar os degraus do mais alto círculo de poder da cidade da masmorra, você me diz que o aliviei de suas preocupações?

— Em quantos combates reais já esteve, senhorita presidente?

A pergunta fez o Dark Guardian enrijecer a postura, como se esperasse que Akito fosse tolo ao ponto de ameaçar a Presidente da Comissão de Recrutamento para Caçadores Novatos tão abertamente.

— O que você entende por combate real? — respondeu-o Terumi com uma pergunta, sinalizando com a mão para que seu guarda-costas relaxasse.

— Duelos até a morte — Akito descreveu lacônico. — Ou que pelo menos deixem o adversário gravemente ferido.

— Você se surpreenderia ao descobrir a quantidade de inimigos que já derrotei para chegar ao lugar que hoje ocupo. Ademais, obtive muitos troféus que atestam minha força como Caçadora.

O filho do deus da guerra meneou a cabeça decepcionado.

— É como eu imaginava. Para mim, os caçadores de fantasia não passam de crianças brincando de caçar monstros num jardim. Lutar contra bestas irracionais não é o mesmo que eu tenho feito para ter chegado até aqui e posso atestar que a despeito de minha condição, também obtive inúmeros troféus que atestam minha força.

— Sua ousadia é louvável, Urushibara — a presidente o elogiou —, mas precisará de mais do que bravata se quiser reencontrar quem está buscando. Desde agora devo alertá-lo, você não enfrentará apenas Caçadores, mas toda uma hierarquia de poder que não deseja mais do que esmagá-lo.

Frente a ameaça velada, Akito tornou a gargalhar.

— É disso que estou falando, antes de vir para cá eu temia que as coisas fossem por demais complicadas.

Terumi e o Dark Guardian trocaram um último olhar, assentindo um para o outro.

— Vamos! — Akito chamou, contendo um último espasmo de riso.

— E o que você planeja fazer quando chegarmos ao auditório? — inquiriu a Presidente.

— Pensei em meu discurso e quero que todos em Fantasia ouçam o que está por vir!



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