Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 1

Prólogo

— Você não deveria estar aqui, Pai de Todos!

Ao ouvi-lo, o ancião estacou no limiar das sombras.

— Desde quando passei a ser censurado por mortais? — indagou-se o velho, girando nos calcanhares.

Fagulhas iluminaram o elegante rosto de Jinnei, que mantinha um olhar sereno  por detrás dos óculos de armação fina. Ele desviou atenção ao ouvir um crocitar de corvo. Uma ave branca e outra negra voaram em espiral pela noite, antes de se esconderem nas sombras da capa do Pai de Todos.

— Caminhe comigo — pediu o homem idoso, fitando-o com seu único olho, de um azul intenso, como o céu no auge do inverno.

Havia algo no rosto meio oculto pela penumbra do velho encapuzado, talvez as rugas profundas, mostrando a passagem do tempo e a sabedoria acumulada ao longo dos séculos, que transmitia uma autoridade inquestionável. Ele se erguia perfeitamente ereto, numa postura imponente de dignidade imutável, mas Jinnei não era do tipo que se impressionava com facilidade.

— Que está fazendo aqui? — ele tornou a insistir, passando uma mão pelos cabelos negros meticulosamente penteados. — Não deveria estar junto ao Conselho da Eternidade?

Odin cofiou a barba, que mais parecia um veio d’água, congelado.

— O tempo passa diferente aos deuses imortais. O que para você ainda será, para nós, já foi. Mesmo a cidade da masmorra, enquanto conversamos, não passa de um sonho distante. Eu, que bebi do Poço de Mímir, enxergo com clareza mesmo na bruma do tempo. É por isso que estou aqui… que nós dois estamos.

Jinnei soltou uma longa baforada e caminhou para junto dele. Debaixo do círculo formado pela luz artificial de um poste. Ao longe, a Babel Verdadeira dominava o ambiente urbano, rasgando os céus noturnos, feito uma colossal mão estendida que tentasse apanhar as estrelas em seu topo ameado.

Os dois puseram-se a caminhar em silêncio, Jinnei vestia uma camisa branca de algodão de corte impecável, e uma calça cinza escura bem passada, mas Odin, a despeito do caminhar confiante, ajeitou a pesada capa de gola alta que usava por cima do manto negro, decorado com runas prateadas, que se desfraldava em pregas fluidas até o chão. Não era como se o vento cortante daquela noite de meio do inverno o incomodasse. Era o que havia de ser dito, porém, que deixava o Pai de Todos desconfortável, ainda que ele tentasse disfarçá-lo.

— O que precisa ser feito? — Jinnei indagou.

Os lábios do Pai de Todos mal se contraíram no esboço de um sorriso.

— Primeiro, eles ficaram discutindo qual seria o melhor curso de ação a ser tomado. Acho que jamais pensaram que a situação chegaria a este ponto. Sede fecundos, disse Ele a vocês, multiplicais e enchei a Terra. Não era isso? Mas imagino que ninguém seria capaz de prever que a população mundial chegaria a dez bilhões de humanos e muito menos as consequências nefastas disso. Não, não. Decididamente não.

Odin fitou Jinnei de esguelha com seu único olho, como quem esperasse por alguma anuência, mas o outro apenas deu de ombros. O Pai de Todos pigarreou e, por um momento considerou a tolice disso tudo, mas precisava ir até o fim se quisesse convencê-lo.

— Zeus propôs um novo cataclismo, aos moldes do dilúvio. Diminua a população e não teremos mais esse probleminha com o Véu Entre Mundos. Já eu… pensei numa solução refinada: um Segundo Despertar.

Foi a vez de Jinnei encará-lo de soslaio.

— O que nos trouxe até aqui.

— Sim — concordou o Pai de Todos, meneando a cabeça. — Alguns se opuseram, outros entenderam que não havia outra maneira. A contenda final virá, mais cedo ou mais tarde, e seria prudente ter um exército para quando a hora da grande batalha chegasse. Você, como um deus da guerra, mais do que ninguém deve me entender.

— Quantos votos afinal você angariou? — Jinnei perguntou ao velho.

— O bastante. Rá, Beleno, Tupã e ainda muitos outros. O próprio Zeus mudou de convicção após Atlas interceder fervorosamente pela causa…

Ele já não sabia mais o que dizer. Precisava daquele homem ou tudo estaria perdido, mas por algum motivo Jinnei não parecia convencido.

— Não me leve a mal, Grimnir, o Encapuzado — disse Jinnei, o humano que ganhara a fama de deus da guerra, numa voz que, mesmo chiada por conta da rouquidão advinda do tabagismo, se fazia implacável em sua autoridade —, se não confio em seus engôdos tão cheios de astúcia tendo perdido tudo de valor que possuía! E em troca de quê? De que me adianta ser o homem mais poderoso do mundo, o deus da guerra entre os mortais, e ter você rastejando sobre mim feito um verme que deseja comer a carniça do que restou, se eu não pude salvar a mulher que amo? De que adianta você me revelar o titereiro se já de nada adianta puxar as cordas?! 

O Pai de Todos recuou um passo, com Jinnei assomando sobre ele, alto e magro, mas resistente feito uma coluna de pedra. Seu rosto de linhas angulosas desfigurado numa mistura de melancolia e fúria.

— Portões de Asura! — vociferou o deus da guerra, batendo palmas.

Odin engoliu em seco, arregalando seu único olho ao saltar para trás na esperança de colocar alguma distância entre os dois. Canalizando a essência de sua alma, Jinnei invocou a forma bestial do demônio carmesim de seis braços asura, que voltou sua carranca ao Pai de Todos.

— Espere! — Odin suplicou atônito, sabendo que seria incapaz de enfrentá-lo. — Não tenho parte na morte de sua esposa…

A cidade ao redor deles não tardou a se desvanecer numa infinitude áurea, com quatro gigantescas portas emergindo do solo ao redor deles, provocando ondas como se ao perturbar uma lagoa de águas plácidas. O deus da guerra não mais ouviria o que ele tinha a dizer, Odin precisaria ganhar tempo na esperança de acalmá-lo com o argumento certo.

Thurisaz (ᚦ)

Ele traçou no ar a runa do poder e da força de vontade, para invocar a energia primordial do trovão. Odin acumulou eletricidade na ponta dos dedos médio e indicador da mão esquerda, confiando nos segredos da magia rúnica que aprendera no decorrer de milênios.

Aquela era uma das grandes runas, os símbolos mais poderosos que a disciplina arcana já produzira, e ele fez a corrente elétrica chicotear num sibilo em direção ao oponente.

Gate Gate Paragate Parasamgate Bodhi Svaha — Jinnei recitou num mantra e a figura do Asura atrás de si estendeu um dos braços com a mão espalmada, para conter o relâmpago que Odin enviara contra ele.

— Que tal descobrir o que há atrás da Porta da Morte? Ou quem sabe a porta da vida, de eterno sofrimento, seja mais adequada aos imortais? — cuspiu o deus da guerra.

De sua capa, Odin puxou uma lança cujo corpo e a própria lâmina pareciam feitos de marfim. O Pai de Todos girou a arma em suas mãos, com maior destreza do que se poderia esperar em razão de sua aparência, e a arremessou contra o avatar do Asura que servia Jinnei.

Om Tare Tuttare Ture Soha — recitou o homem como fama de deus, que em sua fúria se opunha aos verdadeiros deuses, comandando o demônio de seis braços.

Gungnir, a lança do Pai de Todos, contudo, não seria detida por um simples avatar e ao ferir a mão aberta do Asura, fez despedaçar tanto ele como o ambiente ao seu redor, devolvendo os dois combatentes ao cenário urbano.

Raido (ᚱ)

Antes que Jinnei pudesse contra-atacar, Odin traçou a runa do destino, multiplicando-se para cercar o deus da guerra junto a mais quatro cópias suas. Depois, num movimento rápido, materializou a Gungnir outra vez em suas mãos.

— Não me subestime, garoto — disseram os cinco Odin em uníssono. — Eu sou o terceiro da descendência de Borr, o andarilho e o mascarado. Sou o caolho, mas também o verdadeiro adivinho, que mais longe enxerga no futuro. Sou portador da batida, senhor de lobos e em meus corvos tenho pensamento e memória. Meu cavalo é o cadafalso e meus nomes e títulos são tantos quanto os ventos que sopram!

Jinnei simplesmente o encarou com desdém e começou a irradiar uma aura brilhante por todo o seu corpo. Inicialmente dourada, conforme o poder se intensificava, a cada dez segundos, ela se expandia, adquirindo tons de azul e púrpura, com faíscas e chamas brancas dançando em torno dele.

 Gear: Divine Ascendancy!

O Pai de Todos golpeou com sua lança, todos os cinco desta vez, mas o deus da guerra não havia recebido sua alcunha sem motivo e num tornado de socos e pontapés, desviou a ponta de Gungnir dos pontos vitais. Era sua vez de atacar e Jinnei logo puxou um dos cinco velhos pela barba e atravessou seu peito com o punho, fazendo-o desaparecer.

Os outros quatro se dispersaram, se teletransportando num clarão de arco-íris, mas um deles foi surpreendido quando o inimigo surgiu atrás de si, arrancando a cabeça da cópia com um golpe de mão aberta. Dois o atacaram de uma vez pelos flancos, mas Jinnei rodopiou no próprio eixo, desviando o golpe de lança com um chute e agarrando outro para estocar um dos falsos Odin com a arma de seu aliado e fazê-lo desaparecer.

Dos que restaram, esse na distância do corpo-a-corpo com o deus da guerra, tentou se teletransportar para ganhar fôlego, mas a agilidade do mortal superava a magia do Pai de Todos. Com o punho fechado, ele golpeou de baixo para cima num soco que estalou contra o queixo do velho, erguendo-o no ar antes de fazê-lo desaparecer.

Furtivamente, o verdadeiro Odin se esgueirou das sombras e tentou uma estocada em Jinnei pelas costas, mas o humano nem mesmo precisou se virar para deter-lhe o golpe, segurando a ponta da lança Gungnir a poucos centímetros do próprio corpo. Em seguida, ele puxou o velho para junto de si e num giro, torceu o corpo para bater com o calcanhar em seu rosto, desequilibrando o Pai de Todos.

Odin, meio atordoado, acabou encurralado por uma investida de punhos em fúria, com cada soco tendo a força necessária para derrubar um edifício. Não fosse por seu anel mágico Draupnir, ele provavelmente sairia bem pior daquele embate.

Quando a rápida sequência de golpes finalmente se deteve, Jinnei o ergueu pelo colarinho e arremessou o Pai de Todos ao encontro de um prédio em ruínas, que desabou pela força do impacto. Não contente, o deus da guerra caiu mais uma vez sobre ele, pisando no velho caído, quase sem forças para continuar.

— Misericórdia… — gemeu Odin. — Não somos nós quem puxamos as cordas, Jinnei. Somos apenas as marionetes que as enxergam.

Àquela altura, ele já não mais acreditava que convenceria o deus da guerra de coisa alguma, mas precisaria de diplomacia se quisesse sair vivo dali. Frente ao mais temível monstro que nascera do Segundo Despertar, Odin acreditava que implorar pela vida não era nenhuma vergonha.

Para sua surpresa, Jinnei cessou o castigo.

— O que isso significa? — o deus da guerra exigiu saber.

— Eu não tenho todas as respostas — o Pai de Todos balbuciou —, mas posso descobri-las para você. Descobrir para onde sua esposa foi e o porquê de ela tê-lo deixado tão precocemente.

Ao ver o homem estendendo os braços em sua direção, Odin se encolheu. Foi um alívio perceber que Jinnei apenas tencionava colocá-lo de pé.

— O que eu tenho de fazer? — quis saber o deus da guerra, finalmente se acalmando.

Para a felicidade de Odin, falar da esposa morta sempre funcionava. Antes Jinnei o deixasse argumentar sem interrupções e o teria poupado da surra, mas ele também tinha sua parcela de culpa. Afinal, para tratar com um homem de coração ferido, era preciso objetividade e brandura.

— Eu preciso que mate a Serpente do Mundo! Só assim o destino cíclico a que estou preso será rompido e poderei seguir livremente com a minha pesquisa.

Jinnei acenou positivamente com a cabeça. Deu um último tragar e uma lenta baforada. Antes que jogasse na sarjeta a bituca do cigarro que fumara desde o início daquele encontro até ali, para apagá-la com um pisão.

— Qual foi a decisão do Conselho? — perguntou a Odin, antes de partir, mas já lhe dando as costas.

A gargalhada do Pai de Todos soou rouca. Depois de tudo ele ainda se interessava pela política. Odin abriu os braços e teatralmente exclamou:

— Ragnarök!



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