Volume 1

Capítulo 19: Gratidão

Meu pai nunca foi uma pessoa expressiva, mas eu adorava vê-lo sorrir. Parecia que ele recuperava algo sempre que se alegrava. Acho que herdei isso dele com o passar dos anos. A família Kurotska sempre foi uma contradição que todos amavam conhecer.

Os momentos mais comuns em que me lembro de vê-lo feliz eram durante os treinos de espada. Acredito que nunca o fiz lutar a sério, ou talvez ele apenas não quisesse me machucar. Mas, quando se tornava sério, era assustador.

“Isso não é justo, você é mais alto que eu!”, eu resmungava sempre que ele me bloqueava, ainda criança aos meus doze anos. Recordo o riso dele na primeira vez que ouviu isso. “Você nem sempre vai enfrentar adversários da sua altura, literal ou figurativamente. Como vai contornar isso, cabe a ti.” Acho que encontrei a resposta contra o Goblin-Campeão.

Sorri diante de um monstro, talvez porque fui preparado para isso. Não é meu auge, mas me pergunto: pai, você está orgulhoso de mim?

Muito bem, meu reika! Continue melhorando.”

Não sei, mas essa frase ecoou em mim e me despertou.

 

*********

Haru despertou em um sobressalto, os olhos marejados, segurando as lágrimas sem perceber. Ao apoiar-se nos cotovelos, sentiu o corpo reclamar de dores. Quando contraiu os dedos, percebeu as ataduras limitando o movimento fluido acima das segundas falanges.

— Calma, garoto. — Laki colocou a mão no peito do parceiro, impedindo-o de se levantar. Haru voltou a deitar.
— O que aconteceu?
A arqueira, apoiada no encosto invertido da cadeira, apontou com o polegar esquerdo. Vestia uma blusa branca e uma calça de moletom largas demais para seu tamanho. Na direção indicada, Haru viu a cabeça decapitada do Goblin-Campeão, com um olho arrancado.

— Vencemos. — A dragoa sorriu satisfeita, cruzando os braços. Ajeitou a espada de Oz ao lado da cabeceira do amigo. — Os moradores nos abrigaram até a chuva passar. Você dormiu algumas horas enquanto fazíamos os primeiros socorros.

Haru franziu o cenho e tocou as faixas enroladas em sua cabeça. Levantou as mãos, observou as ataduras até os cotovelos e respirou fundo antes de testar os movimentos do peito e abdômen. Só então ergueu-se parcialmente. Balançou a cabeça, lembrando flashes da luta.

Recordou sua visão clareando no trajeto até a arma do Goblin. Seu corpo parecia um só com a eletricidade, músculos prestes a se romper. Quando deu o primeiro passo, o seguinte já estava a milímetros do tacape. Só teve tempo de proteger o rosto e atravessar a arma. Ao abrir os olhos, viu o tacape partido ao meio e o restante passando no ar, evitando Grimm. A dor, porém, não o deixou continuar.

— Aconteceu algo? — Laki perguntou, buscando seus olhos.
— Eu senti como se meu corpo fosse um com a eletricidade, sabe? — Um calafrio percorreu sua espinha. — O que eu fiz lá?
— Você despertou uma técnica que chamamos de “véu guardião”. No seu caso, o “véu de Rudra”. — A arqueira se levantou, ajeitou a calça na cintura, cruzou os braços e admirou a vista pela janela à esquerda. — Sem treinamento, ela realmente causava a dor que sentiu.
— Por que eu desperto essas coisas do nada? — Haru encarou a palma direita sob as faixas, deixando a mão cair sobre a cama. — Isso vai acabar me matando.
— Não é para tanto. — Ela riu, divertida. — Se serve de consolo, você avançou em dias o que costumávamos levar anos.
— Ainda não é o suficiente, não é?
Laki inclinou a cabeça, analisando sua expressão pensativa. “Ele realmente quer nos acompanhar”, pensou, apoiando o queixo no dedo indicador. Suspirou e continuou:
— Não se sinta pressionado. — Estalou os dedos diante do rosto dele, fazendo-o se sobressaltar. — Você salvou vidas ontem, isso bastou!
— Você tem razão. — Haru olhou para ela, prestes a retrucar, mas desistiu ao ver o semblante confiante da companheira.

O momento foi interrompido por uma batida na porta. O dono da casa, um senhor de cerca de sessenta anos, anunciou:


— Tem uma menina aqui fora procurando por esse rapaz.

Quando abriu mais a porta, Haru reconheceu a gandola dos dragões cobrindo o corpo da visitante. Ela ainda não havia largado o casaco desde então. Seus olhos amendoados combinavam com a pele negra clara, lembrando chocolate recém-batido. Lábios cheios e nariz bem desenhado lhe conferiam uma aparência madura. Aproximou-se do salvador, segurando o casaco nos ombros.

— Me desculpe por não ter voltado ontem, eu…

Ela interrompeu as desculpas com um abraço, deixando o agasalho cair e revelando arranhões nas costas e nos braços. Haru, surpreso, correspondeu com cuidado. Entre breves fungadas, ela disse com a voz embargada:

— Obrigada! Muito obrigada!

— Por favor. — O Dragão Branco olhou para o dono da casa. — Cuide das feridas dela.
— Meu pai… — continuou, corando quando encontrou os profundos olhos azuis de Haru e desviando em seguida. — Ele conseguiu fugir até a guilda! Eu abri uma brecha para ele.

Haru e Laki se entreolharam, lembrando do senhor que pedira o salvamento da filha antes de partirem. Era a filha dele.

— Ele está bem. — O rapaz colocou a mão na cabeça dela, afagando-a com cuidado. — Se quiser, levamos você até lá. Só troque essas roupas.

A garota voltou sua atenção a Laki, que confirmou com a cabeça, cruzou os braços e sorriu. Isso a fez soltar Haru, mesmo relutante. Ela os reverenciou em agradecimento e partiu.

— Enfim. — Laki disse, impedindo o silêncio de se prolongar. — Quando você estiver melhor, podemos ir. Só nos avise, está bem?

— Claro.

— Vou ver o que aquele cabeça-dura está fazendo. — A arqueira coçou a cabeça. — Pedi para ele descansar, mas duvido que esteja obedecendo.

Laki saiu do quarto, ajeitando o rabo de cavalo preso no topo da cabeça. Seu semblante mudou para um ar mais inseguro; ver Haru coberto de faixas não mudava seus pensamentos. A arqueira havia demorado demais. Talvez devesse estar lá embaixo com os outros.

Ela calçou as sandálias emprestadas pelo senhorio e começou a caminhar pelas ruas da pequena vila. A pilha de cadáveres de goblins não parava de crescer sobre o corpo do Goblin Maior. Grimm pedira que evitassem mostrar aquela cena às crianças. Não precisavam de mais imagens grotescas. Algumas curiosas foram logo afastadas pelos pais.

Ao encontrar o Dragão Negro, ela o viu erguendo alicerces de madeira com restos de colunas quebradas, moldando-os com a mana e pedindo que os trabalhadores levassem. Pelo suor no rosto, estava ali fazia horas.

— Não falei para você descansar? — A voz autoritária da líder fez o machadeiro se retrair, como se aguardasse uma bronca.

— Ainda bem que não te ouço, né? — Ele sentiu a pressão da mana dela aumentar e ergueu as mãos em rendição. — Brincadeira.

— Você está fazendo um bom trabalho. — Ela suspirou, sentando ao lado dele. — Quer ajuda?

— Já acabei. — Ele apontou para o monte de madeira refinada ao nordeste da vila. — Se o Ragna estivesse aqui, as casas já estariam reconstruídas.

— Estamos anos-luz atrás dos nossos mestres, você sabe disso. — A arqueira apoiou o queixo sobre as mãos, com os cotovelos nas coxas.

— Com um parceiro que se desenvolve feito um anormal? — Grimm sentou-se ao lado dela, suspirando frustrado.

Laki tentou ignorar, mas cruzou os braços, envolvendo as pernas contra o peito, refletindo sobre o que vira durante a missão. Era claro que Haru tinha talento refinado em combate, mas alguém fora de forma poderia realmente se mover daquele jeito? Ele fizera o monstro andar em círculos por alguns minutos até entrar em “modo berserk”.

— Falei com ele sobre esse avanço, sabe? — A dragoa vermelha resmungou. — Chega a ser injusto.

— “Mana sem controle é só uma anomalia.” — Grimm puxou o cantil da cintura. Ainda vestia apenas a calça da farda, o torso nu reluzindo de suor. Bebeu um gole e ofereceu a Laki

— É o que o Ragna sempre diz.

— Fico me perguntando como vai ser quando ele tiver controle. — A arqueira sorriu discretamente com a possibilidade. — Ele vai ser uma adição incrível para a gente.

— Ainda tenho minhas dúvidas. — O Dragão Negro voltou a beber do cantil.

Laki deu de ombros diante da frase dele, mas lutava contra o sentimento de estar ficando para trás. Como líder, precisava acompanhar o ritmo do grupo — e, no fundo, gostava da competitividade. “Vou desafiar ele no próximo treino”, pensou ansiosa.

Os pensamentos de Grimm contrastavam com os dela. Por um momento, o que Haru dissera no treino ecoou em sua mente:

“Se continuar não me levando a sério, eu vou te engolir.”

Ele precisava encarar os treinos com mais seriedade, e embora fosse um fardo difícil de aceitar, sabia que era inevitável. O primeiro passo seria quando voltassem ao castelo. Ainda assim, não entendia como Haru o acompanhava tão bem.

Enquanto isso, Haru se levantou da cama, notando a calça emprestada que vestia. A dona da casa entrou no quarto com uma tigela de mingau, que ele aceitou prontamente. Comeu em silêncio, refletindo sobre a missão.

No geral, tomara decisões corretas, mas os gatilhos o incomodaram constantemente. Ver o capitão Kyle no casarão foi determinante para que o cansaço mental tomasse conta de si. Ainda bem que conseguira usar isso para guiar seus movimentos.

A gandola no chão chamou sua atenção. Ele a pegou, terminou de comer e contemplou o brasão dos Kaiser Drache bordado nela. As manchas de sangue nas mangas pareciam invisíveis. Decidiu vestir novamente o uniforme.

Ao sair do quarto, agradeceu à família que o acolhera, reverenciando-os. Caminhou com o corpo dolorido e cansado, mas firme o bastante para prosseguir. Para sua surpresa, Laki e Grimm puxavam seus cavalos até o centro da Vila Melnyk com cuidado.

— Eu disse que ele não ia aguentar muito tempo parado. — Laki cutucou Grimm com o cotovelo discretamente.

— Desculpe se os preocupei.

— Francamente. — O machadeiro segurou as rédeas de Tempesta, dirigindo-se ao portão norte da vila. — Aceite que você foi incrível ontem e pronto.

Haru ouviu o elogio sem entender. Olhou para Laki, que lhe entregou as rédeas de Gládio. Contorceu o rosto em conformidade.

— Às vezes até eu esqueço que ele sabe elogiar.

— Vamos, ou não? — O Dragão Negro gritou impaciente, preparando-se para montar Tempesta.

— Calma! — A arqueira respondeu. — Não vamos tirar ninguém da forca hoje!

Haru deixou os dois irem à frente, até que Gládio o cutucou com o focinho carinhosamente.

“Você está bem, amigão?”

— Sim, amigo! — Haru sorriu para o cavalo, afagando sua cabeça. Ao longe, percebeu a jovem resgatada se aproximar.

— Estou pronta para ir também. — A garota usava um vestido emprestado pelos moradores, os arranhões já tratados.

— Aliás, não perguntei seu nome. — O recrutado a ajudou a subir na montaria.

— Vanessa. — Ela disse, completando após o impulso. — Vanessa Melnyk.

— Me chamo Haru.

Ele se ajeitou sobre a sela, sentindo Vanessa segurar sua cintura com cuidado. O toque fez Haru se retrair um pouco, ainda dolorido da batalha. Observou os moradores reunidos em um corredor, reverenciando os três dragões em uníssono. Grimm e Haru acharam exagerado, mas a arqueira e o espadachim retribuíram a reverência, forçando o restante a fazer o mesmo.

Assim, os Dragões Guardiões partiram em direção à guilda.

 

**************

A cabeça do goblin-campeão presa na sela de Marine chamava demais a atenção dos transeuntes nas ruas; no entanto, o brasão dos Kaiser Drache em suas costas justificava. Laki guiava os parceiros em fileira, de cabeça erguida, ao ritmo dos trotes elegantes. O estado de Grimm era o único invisível a olho nu, já que as faixas estavam apenas sobre o peito.

Haru sentia a cabeça latejar. A faixa que a envolvia o deixava nervoso; sua vontade era arrancá-la, mas preferiu optar pela prudência. Vanessa encostara a testa nas costas dele havia alguns minutos, e o ressonar tão sereno dela o levou a manter um trote mais leve, ficando um pouco atrás do grupo.

Ao chegarem à guilda, o Espada dos Dragões endireitou devagar as costas, gesto que despertou a jovem Melnyk.

— Chegamos. — Haru suspirou, sentindo-a recolher os braços com cuidado. Riu discretamente ao notar a cautela dela. — Posso te ajudar a descer?

— Por favor. — Ela respondeu em meio a um bocejo tranquilo.

O ex-militar desceu, estendendo as mãos até as axilas dela, ajudando-a a descer com cuidado. Percebeu o rosto vermelho e a respiração estranha da jovem, observando-a.

— Você está bem? — o recrutado perguntou, sem notar o quanto estava próximo. Vanessa desviou o olhar.

— N-não é nada. — gaguejou, fazendo Haru tombar a cabeça, curioso, enquanto ela se afastava. Pensou ser ansiedade.

— Vamos? — Laki chamou, atraindo a atenção dos parceiros.

Haru se prontificou, seguindo na frente de Vanessa. Ela puxou levemente a farda ainda suja do rapaz, o que o fez caminhar mais próximo dela. “Essa menina é mais forte do que pensa”, refletiu, observando-a por cima do ombro. Buscando um momento em que os amigos não o percebessem, estendeu a mão esquerda atrás das costas.

— Segure minha mão até se sentir confortável para soltá-la, está bem?

Vanessa obedeceu. Estava trêmula, nervosa, e Haru entrelaçou seus dedos com os dela de forma firme. Desejava apenas que os curativos não a incomodassem tanto.

Eles seguiram Laki e Grimm, entrando pelo portão da guilda. A líder aproximou-se do balcão rapidamente, pedindo que mantivessem distância do primeiro encontro. Poucos minutos depois, uma voz rouca ecoou:

— Vanessa? — O senhor de antes a analisava incrédulo. Seu semblante abatido denunciava noites sem dormir, talvez sem comer.

— Papai? — ela disse com a voz embargada. Logo soltou a mão de Haru e correu até ele. Pai e filha se abraçaram, derramando lágrimas copiosamente.

O recrutado não conseguiu deixar de observar a cena, levando as mãos aos bolsos após ajustar a espada no ombro.

— Quem diria que você é tão cuidadoso, hein? — Grimm sussurrou, cruzando os braços e contraindo os músculos.

— “O resgate só termina quando a família puder se reunir novamente.” — Haru respondeu, citando uma frase antiga do capitão Kyle. Por um segundo, sentiu como se pudesse ouvi-lo ao lado.
— Entendo.

— Eu realmente passo a impressão de ser tão frio? — O Dragão Branco baixou os olhos, pensativo.
— Não diria frio. — O Machado se surpreendeu com a pergunta, mas não olhou diretamente para o parceiro. — Apático, talvez.

— Vai levar um tempo. — O recrutado suspirou, fechando os olhos. — Mas tentarei mudar isso.

Haru tomou a frente, observando as sacas de moedas de ouro — a recompensa da missão — sendo entregues, enquanto a líder revisava a papelada. Não pôde evitar lembrar do estado em que a vila ficara, o que fez um senso de responsabilidade crescer em seu peito. Grimm apenas o observava, curioso.

— Posso pegar a minha parte, Laki? — A voz dele a fez sair do torpor da leitura. Ela voltou-se para ele.

— Claro, fique à vontade. — Respondeu, ainda intrigada, estendendo-lhe um dos sacos.

O recrutado pegou a sacola com cuidado. O peso fez seu braço pender levemente. Logo se dirigiu a Vanessa e ao pai dela. Nunca imaginara receber mil e quatrocentas asas douradas daquela forma.

— Com licença. — Haru inclinou o corpo, chamando a atenção dos dois. — Posso saber o nome do senhor?

— Gustav. Gustav Melnyk, senhor. — O homem grisalho o observou, olhos negros e um sorriso satisfeito. A expressão fez o coração de Haru estremecer.

— Quero que aceite isto. — O recrutado colocou o saco de moedas no colo de Gustav. O fecho se afrouxou, revelando a quantidade de ouro.

— Eu não posso aceitar, senhor! — Melnyk olhou assustado para a fortuna e depois para Haru. — Ofereci esse dinheiro pelo resgate da minha família e dos meus. Você fez por merecer.

— Então use para cuidar da vila, senhor Gustav. — O espadachim inclinou-se em sinal de apreço. — Não precisa me chamar de senhor, apenas Haru basta. Espero que os Doze encham seus caminhos de bênçãos e graças.

A atitude fez Grimm e Laki se entreolharem, ainda segurando suas recompensas. Haru percebeu a aproximação deles, mas não entendeu a curiosidade em seus olhares. Apenas respondeu:

— Está ficando tarde. — O Espada deu de ombros e seguiu para o portão. — Talvez cheguemos a tempo do almoço no castelo.

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