Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 2

Capítulo 39: O Demônio em Chamas

GRIS

 

Achei que conseguiríamos curar meu braço assim que chegássemos em Ticandar. Porém, para o meu azar, o Dr. Clépio não está aqui e ainda corre perigo de morte.

Já o Sr. Khan cobrou um preço que não pude pagar. Droga, será que era melhor abandonar a Srta. Kali e permitir que o líder lumen me curasse?

O que estou pensando? é claro que eu não deveria abandoná-la. Porém também não é como se eu pudesse fazer algo para ajudá-la. No máximo, apenas atraso o inevitável.

No fim, pode ser que ela seja presa aqui. Ao mesmo tempo, talvez eu fique com meu braço assim para sempre.

O professor havia me dito que eu não podia entrar em Ticandar antes, pois ela é fechada para estranhos fora da época do festival.

O Dr., por outro lado, não saia daqui, pois está exilado. Ou deveria estar, mas ele acabou saindo, que azar.

Mas isso não é o importante agora, pois consegui algo com tudo isso. Tenho novas pistas a respeito das minhas memórias. Tive um breve vislumbre de algo que aconteceu.

Quem era aquele garoto de roupas estranhas, afinal? Não consigo me lembrar, é como se faltasse uma peça.

Às vezes, eu acordo de um pesadelo que não consigo lembrar. Outras, surge uma aflição quando estou em lugares escuros e fechados, igual que dessa última vez quando conversei com a Sra. Acácia. Há também outra situação, que é quando estou sozinho.

São todos eventos diferentes e corriqueiros, mas possuem algo em comum entre eles: Eu sempre me sinto como se tivesse perdido algo.

Sinto que, se eu recuperar as minhas lembranças, eu entenderei. Todavia, só de pensar nisso, o meu corpo é tomado por um pavor.

Valefar disse que me contará o que ocorreu quando ele me encontrou, porém ele precisou sair às pressas para socorrer seu amigo.

Bom, não preciso decidir agora se tentarei recuperar minhas memórias. O que posso fazer neste momento é treinar, melhorar, continuar a me preparar para qualquer coisa que vier. Assim como o professor me ensinou.

Creio que se fosse hoje, é bem provável que aquela luta perto do Rio Reluzente não teria sido tão difícil. Aprendi muitas coisas com o professor nesses tempos. Não quero ficar em uma situação igual àquela novamente.

Eventualmente, eu me pergunto, por que eu corri até Alienor naquele dia? Lá estava eu sem meu arco, sem veneno nas armas, e não tive tempo de planejar nada.

Na primeira explosão, eu tive um vislumbre da batalha e vi os soldados. Eles eram tantos.Conheço minha força. Eu sabia que não conseguiria salvá-la. Desrespeitei os ensinamentos do professor. Porém, eu consegui ajudá-la no final, e ela está viva agora.

Eu não queria admitir, mas creio que até o professor erra às vezes. Na verdade, ele mesmo admite que errar é normal.

Já eu admito outra coisa agora, algo que não conto nem contarei a ninguém: Eu me senti bem com a escolha que fiz e com os resultados. Ainda que meu braço esteja assim até agora, ainda que fique assim para sempre.

Eu me senti bem quando acordei e vi a Srta. Raposa a salvo, mas escondi isso do professor, por vergonha. Eu queria que o professor me desse uma bronca ou me batesse, porém ele não o fez. Pelo contrário, me deixou este amuleto, o que só aumenta minha culpa.

Revivi aquele momento várias vezes na minha mente; mas, em todos eles, eu fiz a mesma escolha.

 Então por que eu corri até ela naquele dia? Até aquele momento, eu não sabia quem Alienor era. Para mim, era somente uma besta falante que a Srta. Cintia conhecia.

Será que eu fiz aquilo só por que a Srta. Cintia me pediu para ajudá-la? Mas Cintia também me disse para não sair do quarto naquele dia.

No fim, a decisão não foi do professor nem da Srta. Cintia, porque nenhum dos dois estava lá para decidir por mim. Certa ou errada, eu fiz a minha escolha. Talvez por puro egoísmo, ou talvez eu não mereça ser ensinado pelo professor e pela Srta. Cintia.

Ainda tenho muitas dúvidas, mas há algo que estou seguro: Se eu quiser ajudar alguém, o farei, ainda que...

Bram! A porta de entrada se abre com tanta violência que quase é arrancada da parede. Sou pego desprevenido, sem minhas armas. Estou na cozinha da casa diplomática, comendo algumas das frutas que aqui estavam. Um pedaço da fruta entala na minha garganta.

O professor nunca me ensinou isso, mas eu sempre me sento olhando para a porta de entrada, de modo que eu possa ver aqueles que por ali passam. Creio que é algo inerente ao ofício de caçador, assim como várias manias que desenvolvi.

E é por isso que consigo ver a silhueta feminina do que poderia ser descrito como um demônio em chamas passar pela porta. Ao menos, é assim que imagino que um demônio deva ser de perto.

Juro que por um instante, eu vi seus olhos brilharem em vermelho, como o fogo do inferno, o que me deixa agora com calafrios por todo o corpo.

É quando ela caminha pela porta principal e diz: — Ele mentiu, ele mentiu, ele mentiu...

A demônia balbuceia palavras sem sentido com uma voz serena, mas vindo dela é mais apavorante ainda.

— Gurp! — Consigo finalmente desengasgar do pedaço de fruta. Isso só foi possível ao fazer um movimento estranho com meu pescoço, acompanhado de um ruído vergonhoso.

Tenho uma maça mordida em minhas mãos, a qual deixo cair por acidente. Por um segundo, achei que este seria o gatilho para ela pular em meu pescoço.

A demônia para e acompanha com seus olhos de predadora a fruta rolar pela mesa. Mas ela continua a caminhar em minha direção com passos felinos.

Junto todas as minhas forças para dizer: — Q-quem mentiu, Alienor?

Agora a Srta. Kali também entra pela porta principal. Ela está com os olhos arregalados de medo, mas não a culpo, tendo em vista que estamos a ponto de uma catástrofe.

A lumen de olhos verdes e sardas olha para mim, arregala os olhos e se esconde atrás do Karakhan. Eu a compreendo, é aterrorizante mesmo.

— Ele disse que aquilo era um museu, você ouviu, não ouviu?

Engulo tão seco que parece que minha garganta rasga.

— Mas é uma arena de batalha, Gris. Ele a escondeu da gente.

— Arena? Como alguém esconderia uma arena?

— Onde ele está, Gris?

Ela nunca me chama pelo nome. Ela não para de me chamar pelo nome. Alienor vai me matar!

— O professor saiu da cidade... ajudar um amigo.

— Ele sabia o tempo todo, Gris. Aquele covarde sabia que o festival lumen era uma batalha. O Sr. Bigodes também, aquele maldito... e os dois em conluio decidiram não nos contar...

Ela se aproxima como uma leoa prestes a emboscar alguém. Estou seguro que, se eu virar o meu rosto, ela pulará em minha jugular.

— O que você fará, Alienor?

Nós! Nós vamos nos inscrever. É obvio.

— Recomendo que vão com calma aí — interrompe o mascarado —, pois o rito de passagem é uma batalha difícil, e muitos jovens guerreiros vêm do mundo inteiro para se provarem aqui.

Enquanto o Karakhan diz estas palavras e distrai o demônio flamejante, eu analiso minhas rotas de fuga; porém, em todas elas, eu precisarei passar por Alienor. É quando ela percebe minhas intenções e diz:

— Venha comigo, agora — Ela me pega pelo braço e me arrasta.

Seria infrutífero discutir com ela agora. Eu nem terminei minha fruta... Apenas a obedeço, humildemente.

Concordei em vir aqui, entretanto o professor me disse, antes de partir, que deveríamos esperá-lo sem sairmos dos nossos aposentos.

 A verdade é que não quero participar do torneio também, pois estou com meu braço ferido. Mas que opções eu tenho quando é Alienor quem me arrasta. Nada do que acontece lá dentro pode ser mais perigoso do que ela irritada aqui fora.

O meu plano é segui-la até essa arena. Lá tentarei convencê-la de que talvez não seja uma boa ideia. Quem sabe seja tempo suficiente para ela se acalmar?

Olho para frente e vejo uma construção em formato oval. Uma estrutura colossal que fica no térreo do centro de Ticandar. Quando passamos pelo térreo antes, não era possível enxergá-la direito, mas aqui de frente não há dúvidas de que se trata de uma arena de batalha.

Há muitas pessoas em frente a ela, as quais falam diversas línguas, com roupas muito diferentes das que eu conheço.

Há uma placa grande de bronze em frente à estrutura e nela há coisas escritas em diversas línguas. Duas das quais eu sei ler, pois uma é o idioma do império, já a outra está na linguagem lumen.

Arena Fir Kari

Bem-vindos à Arena Fir Kari. Trata-se da maior estrutura do Paraíso Verdejante de Khan, e é dedicada ao torneio quinquenal das batalhas, o rito de passagem dos lumens.

O presente edifício possui trinta e dois metros de altura e formato levemente oval, cujo maior diâmetro é de trezentos metros de comprimento na face externa.

Todo aquele que possuir a coragem de se colocar à prova é convidado a participar, independentemente da sua origem. Desde que, o participante tenha entre doze anos completos e vinte e dois anos de idade incompletos.

Todas as leis deste país vigoram dentro ou fora da arena. De modo que, elas serão aplicadas em conjunto às seguintes regras:

Não é permitido o uso de itens mágicos, ainda que sejam vestimentas ou armaduras;

Todas as armas são permitidas, desde que não possuam atributos mágicos, e sejam declaradas antecipadamente. Tais informações serão públicas;

São permitidas armas criadas a partir de magia durante as lutas, entretanto invocar armas mágicas é proibido;

Não é permitido o uso desproporcional de força, bem como o uso de qualquer técnica que coloque em risco de morte os demais participantes ou espectadores;

Qualquer participante pode desistir, a qualquer instante, dando a vitória ao seu oponente. Assim, desistente e vencedor serão impedidos de continuar com o combate;

As batalhas são em duplas, não sendo permitida a inscrição individual dos participantes;

Se qualquer participante não estiver em condições de continuar, a dupla estará desclassificada;

Qualquer violação é passível de expulsão do torneio, além da aplicação das leis locais, se o caso for.

“Ao vencedor, toda a glória. Ao perdedor; o respeito.” Fir Kari

— Paraíso Verdejante de Khan, onde fica isso? — pergunto.

— Estamos nele: é toda Ticandar; ou melhor, é a tradução do nome de Ticandar — diz o Karakhan, ao passo que aponta para o topo da placa, local em que está escrita a mesma informação, mas em linguagem lumen.

Quando olho para a inscrição, meus olhos me guiam até a palavra T’Khandar.

— Faz sentido — eu digo —, o “T” é a abreviação de tien, verde. “Khan” é o nome do líder destas terras. “Dar” significa paraíso.

— Dar? Hahaha! — caçoa Alienor.

— Está mais para inferno. Humpf! — reclama Kali, ao cruzar seus braços e virar o rosto.

— Não é crime se expressar aqui, mas vocês partirão meu coração desse modo. Hehehe — diz o mascarado. — Mas, me diga uma coisa, você sabe ler o idioma lumen, Gris?

— Sim, pois quando eu olho para as letras, a informação apenas aparece na minha mente. É assim também quando escuto os lumens conversarem.

— Cheio de surpresas você.

Creio que não seria prudente dar mais detalhes de como isso ocorreu. Saberem da existência de alguém capaz de usar uma magia tão poderosa pode deixá-los preocupados. Guardarei essa informação comigo por enquanto.

Tá! Agora vamos nos inscrever, Gris — diz Alienor ao me segurar pelo braço e me arrastar.

O destino no qual a ruiva pretende me levar é em uma espécie de pedestal dourado, com uma pedra verde brilhante no topo.

Nela vejo se aproximar um casal de pele negra e vestidos com túnicas de cor bege. Chama-me a atenção o fato da garota levar um bumerangue em suas costas, quase do seu tamanho.

Ambos colocam as mãos sobre a pedra, e em resposta vejo surgir uma ilusão sobre um painel, acima do portal da entrada da arena, na qual mostra algumas informações:

Jamal

Idade: 18 anos; Sexo: Masculino; Raça: Humano; Origem: Al Zarad.

Aisha

Idade: 19 anos; Sexo: Feminino; Raça: Humana; Origem: Al Zarad.

Inscrição aprovada.

Escuto os aplausos de centenas de pessoas a nossa volta quando as informações são mostradas na tela, e percebo que até o Karakhan está a aplaudir... Como eu deveria presumir.

— Alienor, o professor não gostará disso.

— Já te falei que você precisa pensar mais com sua própria cabeça! Humpf! — exclama em resposta, ao passo que solta minha mão, para na minha frente e apoia seus pulsos na altura da cintura.

Não queria admitir, mas ela tem razão. Eu dependo muito das ordens que o professor me dá. Porém, fato é que não deveríamos lutar, pois não estou nas melhores condições.

— N-nós não podemos — digo a ela —, pois eu ainda estou machucado. Nem sempre podemos fazer o que queremos, Alienor. Se fizermos as coisas sem pensar, pode ocorrer como naquele dia.

— Que dia, seu bocó?

— Aquele dia do Rio Reluzente.

Ela olha para o meu braço direito, suspira e, mais calma, diz: — bom! Nem acho que seria tão legal assim. É só um torneio idiota mesmo...

Ela termina de resmungar algumas palavras em baixo som, mas não consigo escutar muito bem.

Acho que ela me interpretou mal. Não queria insinuar que foi culpa dela eu ter me machucado.

— Não precisam ter pressa, pois daqui a cinco anos há outro. Você tem quantos anos de idade, Alienor? — pergunta o Karakhan.

— Farei dezesseis em alguns meses.

— Então vocês poderão participar do próximo, e melhor preparados — complementa o mascarado.

— Creio que ele tem razão, Alienor. Melhor participarmos do próximo, e eu prometo que serei sua dupla — digo a ela.

Tá bem! Mas se você não cumprir essa promessa, eu atearei fogo em você — responde a ruiva, já um pouco mais animada.

Por que ela ficou animada ao me imaginar pegando fogo?!

Há tantas pessoas aqui. Pergunto-me por que motivo.

— Há alguma premiação para quem ganha o torneio? — pergunto ao Karakhan.

— O vencedor tem o direito de fazer um pedido ao Lorde Khan. Porém para os lumens somente o fato de competir já é uma honra.

— Que tipo de pedido eles podem fazer? — questiona Alienor.

— Qualquer coisa, mas, se o nosso mestre se negar a realizar o desejo, ao vencedor é dado em troca um artefato mágico de nível catástrofe de único uso. Porém, é muito raro o Grande Khan se negar. Dizem que já aconteceu, mas foi há mais de trezentos anos.

— Se um lumen pedisse para deixar Ticandar como prêmio, o Sr. Khan permitiria? — pergunto ao Karakhan.

— Sim, é possível, pois já aconteceu há quinze anos — Kali me responde por impulso, mas se esconde atrás do Karakhan logo depois.

Por que ela está assim comigo agora?

— Você não quer tentar, branquela? Não é o que deseja... sair daqui? — questiona Alienor.

— Eu já tentei e falhei. Foi no último festival.

— Por que não tenta novamente? — eu pergunto.

— Eu não posso mais. O limite de idade é vinte e dois anos incompletos.

— Espera aí — diz Alienor. — Quantos anos você tem?

— Vinte e cinco.

Ela tem mais ou menos a idade da Srta. Cintia. Porém não parece ter mais que a idade de Alienor.

— Caramba, tenho certeza que algumas mulheres de Galantur matariam por isso. Deixe-me ver melhor — Alienor se aproxima de Kali e passa a analisá-la, virando seu rosto de um lado para o outro — Olha só, nenhuma marca de expressão!

— Srta. Alienor! Não tão perto... — Empurra a ruiva tentando se desvencilhar.

É uma pena que Kali não possa mais participar. Porém tive uma ideia.

Eu pego a mão de Alienor, enquanto ela se distrai com a garota de cabelos brancos, e a coloco juntamente com a minha sobre o pedestal. O professor vai me matar.

Ahm? — resmunga Alienor, então ela olha para sua mão. — Aê! É a isso que me refiro!

Kali e o Karakhan olham para a tela espantados, mas diferente de antes, eu não escuto aplausos.

— Por que você fez isso, Gris?! — pergunta Kali, irritada.

Já o mascarado abaixa sua cabeça, cruza os braços e fica pensativo.

A informação dos outros participantes havia sido mais rápida, mas a nossa está demorando demais para aparecer no telão. Será que foi negada a inscrição?

— A pedra está quebrada? — pergunta a ruiva, ao analisar o pedestal mais de perto. — Hey! Você trabalha aqui? Isto aqui está quebrado?

Entretanto, finalmente as informações surgem na tela.

Gris

Idade: 13 anos; Sexo: Masculino; Raça: Lumen/humano; Origem: [indisponível]

Alienor de Vermilion

Idade: 15 anos; Sexo: Feminino; Raça: Turiana; Origem: Galantur.

Inscrição aprovada.

Lumen e humano?

— Alienor, o que é uma turiana? — eu pergunto.

Ué!? É quem nasce em Galantur, mas por que a pergunta agora? — Ela mal percebe que as informações apareceram na tela, tampouco espera que eu a responda, e se vira para o atendente: — Hey! Estou falando com você. A pedra está quê-brá-dá...

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