Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 1

Capítulo 9: Sangue nas Mãos

GRIS

 

Já é de manhã, e sou acordado pelo cheiro do café sendo preparado. Eu gostaria de ser acordado por este cheiro para sempre.

É o segundo dia.

Olho para a janela do quarto. Está um dia claro. Não parece que vai chover agora, pois normalmente venta forte, a pressão do ar aumenta um pouco, e o ar fica mais úmido antes da chuva cair — o que não está acontecendo.

Acho que vou para a cozinha, dado que não quero perder o café, pois, pelo cheiro, parece estar delicioso.

Ao sair, eu tranco a porta, como de costume. Já no salão, verifico se os soldados estão por ali, mas não estão. Fico mais tranquilo e vou ao balcão.

— Bom dia, Srta. Cintia!

Ah! Bom dia, entretanto eu sinto lhe informar que a Srta. Cintia não está, pois hoje é o dia que ela tira folga. Meu nome é Lorena, e você deve ser o Gris. Ouvi falar muito bem de você.

Quem me responde é uma mulher de uns trinta e cinco anos, loira, magra e estatura mediana. Seu cabelo está preso, e as vestes são iguais às que Cintia usa ao trabalhar.

Lorena é muito sorridente ao falar, isto me dá a impressão de que é muito feliz e também de que é confiável.

— É verdade, quase que me esqueci. A Srta. Cintia disse mesmo que hoje era seu dia de folga.

— Sim, ela também pediu que eu te servisse café e o avisasse que você deve encontrá-la em sua casa, que fica aqui ao lado. Para chegar lá, saia pela porta principal e vire à direita.

Lorena também me entrega uma caneca com café e um prato com pão, geleia e manteiga.

Hum... agora que parei para pensar, minha filha falou de você.

— Filha?

Não me lembro de ter conhecido ninguém, pois eu quase não falo com as pessoas por aqui.

— É, seu nome é Laura, uma menina loira, mais ou menos desta altura. Ela fala até pelos cotovelos. Disse ter conhecido um rapaz de cabelos cinzas, e não há muitos aqui com cabelos cinzas.

Ah! Sim, ela me chamou para brincar mesmo, e sua filha é bem divertida, Sra. Lorena.

— É, mas tome cuidado, porque a Laura gosta de inventar mentiras. Ela falou que você mora dentro da floresta, e há dois dias ela veio correndo para mim e meu marido dizendo isso, pode acreditar?

Ahm... na verdade ela não inventou, pois eu realmente moro lá com meu pai, mas é na parte mais segura da floresta: Lá tem poucas chances de aparecerem bestas.

Humpf! Então agora descobri quem foi que colocou essas ideias malucas na cabeça da minha filha — diz Lorena, mas ela não parece tão brava quanto suas palavras indicam.

— Sinto muito se causei problemas.

— Vejo que Cintia não exagerou, pois você é um menino muito educado mesmo. Em todo caso, não causou problema algum, e seria bom se vocês brincassem mais também, pois a Laura gosta de fazer amigos.

— Perdão, mas meu pai disse para eu não sair de perto da estalagem até ele voltar, mas a verdade é eu queria mesmo, pois é divertido brincar com ela.

— Eu posso trazê-la aqui qualquer hora.

Creio que o professor não se importará.

— Porém, olhe lá, se você se engraçar muito com ela, vou te obrigar a casar — diz Lorena, com um sorriso.

Não sei se entendi bem, mas se eu brincar muito com a Laura eu vou ter que me casar com ela? Termino de tomar meu café e, por não ter certeza de como responder a Lorena, apenas digo:

— Muito obrigado pelo café, Sra. Lorena. Eu vou ali me encontrar com a Srta. Cintia.

— Vá então. Nos falamos mais tarde.

Com isso, me dirijo à porta de saída e, quando a abro, percebo uma sombra que tampa completamente o sol.

Algo me segura pela camisa, na altura do pescoço, e me joga para o lado de fora. Eu rolo pelo chão, porém me recomponho para cair de pé.

Quem me atacou se aproxima, me segura novamente pela camisa e me golpeia com um poderoso soco no rosto. Desta vez, tive mais tempo para reagir e jogo meu rosto para trás no exato momento do impacto, o que o ameniza um pouco, mas ainda assim cambaleio para trás. Sinto dor.

O soco foi forte — cuspo sangue. — Ao que tudo indica, feri a parte interna da minha bochecha, mas não é nada sério.

Se fosse na floresta, eu nunca teria deixado alguém chegar tão perto assim, mas aqui eu relaxei demais. O professor tem razão, eu relaxo muito fora da floresta.

Olho para o rosto de quem me deu o soco, e é o garoto que tentou me bater no dia que cheguei, o filho do barão, e ele parece mesmo não ter gostado de mim.

— Te encontrei, seu merdinha, e fiquei sabendo que seu pai não está na cidade.

O professor não me ensinou muito sobre como agir em uma situação destas. Sei lidar com animais e algumas poucas bestas. Quase tudo que sei é sobre como viver na floresta.

Eu poderia tentar fugir, já a outra opção seria enfrentá-lo, pois o garoto age como um dos animais que marcam território na floresta. Então creio que, se eu deixar claro que sou mais forte, ele deve sair daqui e não voltar.

Em dias chuvosos, o professor me ensinou lições sobre lutar contra pessoas, principalmente desarmado. Não entendia o motivo de um caçador saber isso, não até agora.

O valentão investe contra mim novamente. Não terei muito tempo para pensar. Não posso fugir, tendo em vista que preciso ficar na estalagem por mais cinco dias, foram ordens do professor. Só me resta uma opção.

O plano está decidido, agora o executarei. Parto para cima do garoto grande.

— Deveria ter fugido, seu babaca!

Se olhar pelo aspecto físico, ele faz uma boa avaliação, porém eu já vi o professor matar ursos com várias vezes o tamanho dele. Sei que nem sempre o mais forte vence.

Ele tenta dar um soco cruzado, mas eu me abaixo rapidamente e devolvo um soco no estomago, rápido e certeiro, sem abrir a guarda.

Guggh! Ahh! Esqueci que você é um selvagem. Deixe eu te ensinar uma lição.

Achei que aquele soco o pararia, mas ele é resistente e não parece que vai desistir tão fácil, portanto eu não posso me segurar.

O garoto tenta me chutar com bastante força, mas é bem desajeitado e, por isso, o antecipo. Seguro a perna dele e levanto, o que o faz o garoto perder o equilíbrio e cair no chão.

Preciso aproveitar que está caído, pois ele é mais forte. Se me agarrar, acabará para mim. Em uma luta no chão eu não terei chances, por isso chuto seu órgão genital.

Ah! Seu covarde de merda! Ah! Que dor!

Creio que isto seja o suficiente. Não, ele ainda se levanta, pois tem vontade de prosseguir. Neste ponto, Lorena sai da estalagem e grita:

— Pare, Sr. Diego, seu pai já lhe disse para não criar confusão com a Srta. Cintia e muito menos na estalagem!

— É, mas ele não é a Cintia, e estamos no meio da rua!

Com a fala de Lorena, eu paro de prestar atenção por um segundo no garoto. Ele se aproveita, me agarra e se joga comigo no chão. Parece que ele percebeu que não me vencerá de pé.

 Eu estou por baixo, e se não reagir rápido estarei perdido. Com minha mão direita aperto com toda a força contra a traqueia de Diego.

— Ugh!

A dor é tão excruciante que ele se joga para trás: É inevitável. Ele cai, já eu me levanto.

Não deveria, entretanto estou com tanta raiva que pulo em cima dele. Quero vencê-lo no chão mesmo, para que ele tenha certeza que não tem chance e não volte mais.

Ajoelho-me em cima da barriga de Diego. Ele é forte e conseguirá se soltar. Preciso fazer rápido. Dou um soco no estomago, com isso, ele tira os braços da frente do rosto.

Escuto a voz de Lorena, mas não entendo o que ela diz.

O segundo é no rosto, e é um golpe forte. O garoto desmaia.

No terceiro, eu o faço com toda a força e coloco o peso do meu corpo nisso. Ouvem-se apenas três golpes secos:

Tum! Tum! TUM! Depois um silêncio.

O garoto está inconsciente e sangra.

O silêncio é quebrado por uma comoção de vários curiosos que se aglomeram para ver o que acontece. Eu posso ouvir:

— É o filho do barão? É o Sr. Diego? — diz um dos moradores.

— Parece que é ele mesmo, mas o que aconteceu? Aquele garoto esmilinguido que fez isso?

— Creio que não, pois ele é muito fraquinho e não conseguiria fazer isso. Será que foi um bandido que fugiu?

Assim, Cintia aparece entre a multidão e me abraça. Ela é como uma ave que puxa seus filhotes para debaixo da asa. Então Cintia me arrasta em direção a sua casa e me diz em voz baixa: — O que você fez?

Vejo preocupação em seu rosto. Será que o que eu fiz é tão grave assim? Eu me defendi. Foi ele que veio até mim para me bater, e ele está somente desmaiado.

Está somente desmaiado?

Será que eu usei tanta força assim? Droga, eu não queria matar o garoto, mas só que ele saísse de perto da estalagem e não voltasse por cinco dias. Só isso.

— Eu... Não vai se repetir, Srta. Cintia.

— Não... não o quê?! — Cintia parece confusa.

Com isso, os guardas veem a multidão e se aproximam, já os moradores abrem caminho para eles passarem. São soldados que usam armaduras prateadas, com o Brasão de Espadas de Lumínia. O símbolo são três vaga-lumes que voam em torno de um escudo, sob duas espadas cruzadas e uma estrela de oito pontas no centro do escudo.

— O que é esta aglomeração? — diz um dos soldados.

Os moradores apontam para o garoto no chão.

— Olha, tem sangue nas mãos daquele menino! — diz um dos aldeões, ao apontar para mim.

Olho para minha mão direita e realmente há sangue nela, mas estou acostumado com isso, por matar os animais e desossá-los na cabana. Portanto não dou muita importância.

Um dos soldados se assusta ao olhar melhor para o menino caído e corre em direção a ele.

— Por Dara! É o Sr. Diego. É o filho do barão!

— O quê? Chamem o Dr. Túlio e o Sr. Alan, da loja de poções. Diga para trazerem equipamentos para salvar o filho do barão, com urgência, vão! — Aquele que parece ser o soldado de maior patente dá as ordens e corre em direção ao garoto no chão, depois olha para meu punho ensanguentado e diz: — Prendam o garoto, e levem-no para interrogatório.

— Não, esperem! — grita a Srta. Cintia.

— Senhor, espere. Olhe isto aqui — diz o soldado que havia se aproximado primeiro de Diego, e ele aponta para o rosto do menino.

Na bochecha de Diego há um ferimento peculiar, o machucado tem um formato que o soldado reconhece. Agora também vejo, e é uma caveira e uma balança. Agora o líder dos soldados me olha, se aproxima, segura minha mão direita e diz:

— Puta merda, que monte de...

Um homem bem arrumado e com um bigode inusitado chega. Ele leva consigo uma poção azul, analisa o garoto e, por fim, diz:

Hum... ele ainda respira e está vivo. Toma aí, grandão, vai ficar novinho em folha. — Assim, o Sr. Alan despeja o líquido na boca de Diego e o ferimento no rosto do menino se cura, mas o sangue continua ali, e se forma uma cicatriz no local do ferimento fechado, com um desenho.

— Srta. Cintia, você é a responsável pelo garoto?

— Sim, eu sou! — diz rapidamente a Srta. Cintia e me abraça mais forte.

Sem querer, eu acabei sujando as roupas de Cintia. Ela veste uma camisa branca, calças pretas e botas altas, já seu cabelo está amarrado com um rabo de cavalo, e ela está bem bonita.

Parece que estava pronta para andar a cavalo comigo, todavia agora a camiseta branquinha está com uma mancha enorme de sangue.

— Srta. Cintia, desculpe, pois eu acho que sujei sua... — Cintia rapidamente tampa minha boca, por isso não consigo dizer o que quero.

— O que vocês pretendem fazer? — diz Cintia aos soldados.

— Por agora nada, mas mantenha esse garoto na estalagem ou na sua casa. Ele não pode sair daqui até que eu informe ao barão, e ele decida o que será feito. Vou deixar alguns soldados aqui para evitar que ele fuja, está entendido?

— Sim, ele ficará comigo e não sairá.

— Vocês vão ficar aqui de guarda. Este garoto está sob prisão domiciliar preventiva, se ele tentar sair da área da estalagem ou da residência da Srta. Cintia, vocês devem apreendê-lo de imediato, e me reportar diretamente. Diretamente, eu digo! Em hipótese alguma machuquem o garoto e o mesmo para a Srta. Cintia, me ouviram?

— Sim, Senhor! — gritam os soldados, que prestam continência.

— Não machucar?

— Prisão preventiva?

— Domiciliar? Ele não vai ser levado para a prisão?

— Sim, é flagrante, e ele está com sangue nas mãos.

— Será que o garoto é algum nobre ou de família rica? — dizem os moradores.

Penso em falar que eu sou o filho do caçador, mas, pelo que percebo, a Srta. Cintia não quer que eu fale nada. Os cidadãos estão confusos e começam a comentar várias outras coisas.

— Alguém viu o que aconteceu aqui? — diz o líder dos soldados.

Algumas pessoas olham para Lorena, e ela fica pressionada a dizer: — Eu vi, vi praticamente tudo.

— Então me acompanhe. Você prestará depoimento no quartel, agora.

— Quanto aos demais, o espetáculo acabou, entenderam? Saiam daqui. Dispersem! — diz o líder dos soldados aos camponeses.

Sendo assim, os moradores começam a sair do local.

— Caramba, você viu aquilo? O Sr. Diego foi surrado por um menino franzino.

— Cala a boca, ou você será preso, seu idiota! — Dois moradores conversam.

O Líder dos soldados coloca a mão no rosto, abaixa a face e suspira bem fundo.

Diego recobra a consciência e se levanta atordoado. Imediatamente o médico chega, examina o garoto e diz:

Hey! Me ajudem a levar o garoto para a minha clínica, vamos, rápido!

Começa a ventar fraco. O cheiro do ar está úmido. Vejo algumas poucas nuvens agora. Agora sim: Creio que vai chover.

Acho que eu perdi a chance de andar a cavalo.

O Sr. Alan me espreita, ele dá um sorriso e vai embora.

Olho para a Sra. Lorena, ela parece muito assustada com a situação. Todavia, com a mão tampando a boca e, sem dizer nada, é escoltada pelos soldados.

De relance, vejo o segundo andar do estábulo. Há uma janela no centro dele, e ali percebo dois olhos sinistros e avermelhados em meio à escuridão.

Hey, Alberto! Cuide da estalagem para mim, por favor, que depois eu lhe pago um adicional — diz Cintia ao empregado, que cuida dos cavalos, depois olha para mim e completa: — Vamos para a minha casa, agora.

Eu não tenho certeza do que aconteceu para os moradores agirem assim, mas eu acho que fiz o certo e me sinto bem.

Afinal o garoto não deve voltar aqui nos próximos cinco dias.

 

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