Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 1

Capítulo 8: Um Belo Chapéu

CINTIA

 

Pobre garoto, pois não possui ideia do azar que tem ao viver sob a tutela de um degenerado, em um dos lugares mais perigosos do mundo, e ainda consegue manter sua inocência. Se alguém o visse de relance jamais imaginaria pelo que passa.

Ele esconde, mas eu percebi que ele tem cicatrizes pelo corpo.

O que Valefar faz com ele, naquele lugar, e que tipo de inferno ele obriga este menino a passar? E o pior é que o garoto não tem nem ideia do quão perturbadora é sua vida, pois ele parece não conhecer nada diferente daquilo que o V. mostrou para ele. Por isso, não tem sequer um parâmetro para entender o quão ruim está. Que droga, V.

Porém você mudou depois que encontrou este garoto, não é? Certamente já foi pior, mas será que à medida em que o Gris é corrompido, você é curado? Tenho medo de ver quem cederá primeiro.

Eu preciso tentar ajudar de alguma forma, e fico feliz que o V. deixou o Gris comigo, por um tempo. Talvez eu consiga demonstrar que existem coisas boas a se fazer, e não somente caçar o dia todo, e sabe-se lá o que demônios mais eles fazem.

Se eu pudesse, o adotaria para viver aqui, mas sei que o V. não deixará. Porém, eu acho que vou tentar, pois ele deve estar preparando algo ruim para o futuro do menino, porém só não sei o que é ainda.

Então o que posso fazer é o que eu sempre faço. Aos poucos, vou entender o que se passa na cabeça dele e moldar as coisas sutilmente. Espero que seja suficiente. Sinceramente, eu espero que seja o suficiente para que o final de vocês dois seja feliz.

Mas por falar em sutileza.

— Você se arrisca demais, sua imprudente, fanfarrona. O que pensa que está fazendo? Quer se matar? Se quer se matar, faça isso sem minha ajuda. Sua Louca! Que ódio! — eu digo.

— Está exagerando, professora Cintia — responde a raposa.

Tsk! Exagerando você diz? Você acha que eu não sei que você foi às portas da Floresta de Prata esperar por eles? Acha que eu nasci ontem? Se quer tanto se suicidar, deixe que eu te ajudo. — Pego a raposa e simulo estrangulá-la.

— Já se sente melhor? Se sim, me deixe no chão. Fico feliz por aliviar sua frustração. Você sabe que eu não gosto de ficar sentada esperando as coisas acontecerem, e não é como se ele fosse me atacar assim que me visse. Além disso, posso estar fraca agora, mas tenho certeza que pelo menos fugir de um caçador eu consigo, eu acho.

Solto a raposa no chão.

— Tola, se ele quisesse te matar, você precisaria de meio batalhão de soldados para ter uma chance de fugir, ou você acha que alguém normal moraria na Floresta de Prata!?

! Você tem razão. Eu deveria ter esperado mais. Mas eu acho que você exagera sobre esse caçador. Será que você não esconde sentimentos por ele?

Ai! Eu vou fazer churrasco de raposa e servir para todo mundo amanhã no almoço da estalagem.

— E, ainda por cima, você vai e faz o quê? Se encontra com o garoto no meio da noite. Se eu não percebesse a tempo e não fosse te alertar, o V. teria feito de você um chapéu de raposa bem quentinho, e quer saber? Eu usaria esse chapéu, pois seu pelo é tão bonitinho, e ficaria lindo na minha cabeça!

Tá bom! Já pedi desculpas. Eu ajoelharia aqui na sua frente, mas seria estranho uma raposa ajoelhar, pois não teria tanto impacto e não expressaria o quão arrependida estou — diz a raposa em tom irônico.

Hum! Sua maldita. Entretanto, apesar dos seus esforços para estragar tudo, está tudo indo melhor do que eu esperava, pois eu vou cuidar do garoto por estes dias. O V. sairá da cidade e deixará o menino comigo. Em troca por cuidar do Gris, pedirei ao V. para ele te levar até onde você precisa chegar: é um plano infalível.

Aponto para a raposa e concluo: — Vamos! Diga que é infalível e me aplauda. Ah! Quase esqueci! Você é uma raposa e não tem mãos para aplaudir! — digo isso com as duas mãos na cintura, ao passo que me inclino para caçoar da raposa mais de perto.

— Ainda bem que não sou sua inimiga. Você tem certeza que é a dona de uma estalagem? Você deveria cogitar se tornar uma conselheira real, uma diplomata ou algo assim. Apesar que eu teria um pouco de pena de quem tratasse com você.

Essa maldita, eu vou matá-la!

— Eu não sou a dona de uma estalagem. Eu sou a dona de uma estalagem e de um ESTÁBULO! Entendeu, sua delinquente?!

— Pois bem, amanhã eu pretendo que conversemos um pouco com o Gris. Por isso, eu vou passar o dia com ele, para fazermos amizade. Então assim que ele estiver bem confortável eu te chamarei, e aí trataremos dos seus assuntos.

— O V., até certo ponto, parece gostar do menino, então o que você precisará fazer é se aproximar do garoto, não o ameaçar, não humilhar, nem ferir, tampouco insultá-lo. Ahm... nada de magia também, portanto apenas seja uma bela raposinha, linda, fofa e amável, entendeu?

— Essa tal amiga não seria eu, verdade? O que eu faria com um moleque ranhento desses? Já sabe, se tentar gritar, vai cair duro no chão de novo!

Eu juro que vou te matar qualquer hora! Sua delinquente maldita!

— Não vou gritar, mas acho que você deveria se esconder, pois tem uns soldados na cidade que procuram por você — diz o Gris.

O garoto é corajoso. Ele já está acostumado com a presença da raposa, mesmo que possa ser uma besta. E tenho certeza que ele sabe o que isso significa.

Bem, eu não poderia esperar menos, pois ele foi treinado por aquele degenerado, mas é triste ver um garoto tão jovem que age como se esperaria de um adulto. Aliás, até adultos correriam de medo agora.

— Ouvi dizer que há uma recompensa por mim, isso não te atrai? São duzentas peças de ouro, afinal — diz a raposa.

— É bastante dinheiro, mas eu não preciso comprar nada, pois já tenho onde morar, tenho comida, água e... eu queria uma espada para mim, só que isso o meu... pai, é! Ele vai trazer uma para mim.

Troco olhares em silêncio com a raposa, que é quebrado primeiro por ela.

— É um idio... — A Raposa tenta falar algo, mas eu sou mais rápida e consigo fechar seu focinho antes.

— O que a Srta. Raposa iria dizer é que se sente lisonjeada por sua liberdade valer mais que duzentas peças de ouro, não é mesmo, Srta. Raposa?

Ah, sim, é isso mesmo, uhum, uhum! — diz a raposa, na medida em que balança sua cabeça em afirmação. — Eu fico muito agradecida por você se preocupar tanto por mim.

Você poderia ao menos parar de abanar tanto o rabo para mentir?!

— A verdade é que eu queria saber mais sobre o que você me contou, a respeito do bracelete e sobre as minhas memórias.

— Sobre o bracelete, eu já contei praticamente tudo que sei, salvo que ele serve para bloquear o fluxo da pessoa. Ou seja, com ele posto, você não conseguirá usar magia.

— Mas eu não consigo usar magia, quero dizer, o professor disse que eu não consigo.

— O professor isto, o professor aquilo. Pense mais pela própria cabeça! Provavelmente seu professor men... Aink! — Dou um cascudo na raposa. Estou ficando boa nisto. Depois digo:

— O V. não deve saber ao certo para que serve esse bracelete, e eu também não sabia sobre ele. — É uma mentira minha, porque provavelmente o V. sabe do que se trata, mas eventualmente algumas mentirinhas são necessárias. Só às vezes.

— Bom, é que em Galantur há escravos e esse item é bem comum neles. O funcionamento dele é simples: ele é preto e branco. É feito de dois materiais diferentes, o preto emana fluxo negativo, e o branco; positivo. Como ele está entrelaçado, acaba embaralhando o fluxo da pessoa, e ela não consegue dar forma à magia.

— Que legal! Você consegue tirar o bracelete e me ensinar magia?

— Com ele posto, eu não sei dizer se você pode usar magia, e eu também não consigo remover. Eles são muito resistentes, e é impossível retirar com base na força, até onde sei. Você precisaria da ajuda de um especialista em magia de criação, e um muito poderoso para romper esse bracelete. Já eu sou proficiente em magia de destruição, que é justamente o oposto da que você precisa. A verdade é que mesmo que eu fosse boa em magia de criação, não conseguiria remover, pois está acima das minhas habilidades.

— Mas será que você sabe de alguém que conseguiria remover? — eu pergunto.

— Não aqui em Lumínia, com certeza não, nem em Galantur, pois nas terras vermelhas os magos se especializam em destruição, assim como eu, mas certamente em... Ticandar. Sim, em Ticandar certamente há. Há outra opção e seria Thar...

— Ticandar é muito melhor, e está decidido — eu repondo.

— É melhor? É perigosíssimo tentar chegar lá! — diz a raposa.

Pior que é verdade, pois eu sei onde fica Ticandar. É no meio da Floresta de Prata, o lugar que tem as bestas mais poderosas, e eu não consigo ir lá — contesta Gris.

— Sim, todavia é lá que vivem os lumens. Eles são muito poderosos e muito bons em magia de criação e de vida. Em todo caso, não entendi como que isso pode ser bom, Srta. Cintia? — diz a raposa.

— Você precisa chegar lá também, portanto é só juntarem esforços e pedirem ajuda para o V. — digo, enquanto dou uma piscadinha discreta para a raposa, a qual entende o recado.

Ah! É verdade, eu quase me esqueci que eu precisava chegar lá também — mente a raposa, enquanto é denunciada pela sua cauda delatora. — Quem sabe a gente possa ir junto com o seu pai não é, Gris?

— Eu posso tentar pedir para ele, pois daqui seis dias ele vai voltar, aí eu pedirei. Além disso, também quero conhecer as bestas da floresta...

Ah! Também há uma outra forma de remover o bracelete, mas acho que vocês não vão querer — diz a raposa.

— Diga qual é, pois se houverem opções será melhor sabermos — eu repondo.

— Daria para cortar a mão dele, e depois achar um mago de vida para pôr no lugar, só que sem o bracelete. Hahahaha! — diz a Raposa e completa: — Por isso que em Galantur eles colocam no pescoço: Quem colocou isso aí deve ser um amador.

— Pois bem, se mais ninguém tiver algo estupido para dizer, creio que o plano é ir à Ticandar.

Gris é um menino muito bom, e ele precisa compreender mais sobre a maldade do mundo. Não é como se estivéssemos enganando ele, mas é tão inocente que parece estamos nos aproveitando do garoto.

Ah! Meu coração vai se partir em dois. Desculpe, Gris, eu vou te compensar por isso.

Entretanto, o que você quer dizer com conhecer as bestas? Isso definitivamente não é algo legal. Você é um daqueles garotos estranhos que gostam de coisas inusitadas!? O que o V. está te ensinando!?

— Mas eu tenho que te pedir algo, Gris.

— O que, Srta. Cintia?

Ah! Ele é tão adorável. Acho que vou sequestrá-lo, colocar num potinho e fugir para bem longe! Você nunca terá ele de volta, V. Muahahaha!

— Eu preciso pedir que você converse a respeito disto com o V., mas somente quando eu estiver presente. Na verdade, será melhor que deixe eu tocar no assunto primeiro, pode ser?

— Claro, pode ser, pois acredito que se eu pedir ao professor ele não vai querer, porém se for a Srta. Cintia ele vai aceitar. Ele vai aceitar com certeza.

Lentamente a raposa me olha, depois se joga no chão e cai na gargalhada.

Pf! Hahahahaha! Ai, meu estomago está doendo! Hahahahaha! Vocês me matam.

Eu é que vou te matar!

— Mas, Srta. Raposa, e sobre as minhas memórias. Você também sabe de algo, não é?

A raposa para de rir, recompõe-se e responde:

— Bom... são somente suposições, mas se partirmos do pressuposto que apagaram uns seis ou sete anos de memórias no mínimo, foi um grupo de pelo menos uns cinco ou seis magos de altíssimo nível. Seria algo complexo e, por isso, precisaria ser por um ritual demorado.

A raposa pensa um pouco nas próprias palavras e continua: — A verdade é que isso é tão improvável, que seria mais fácil acreditar que você simplesmente nasceu há três anos no meio da floresta. Eu acho que não ajudei muito, não é?

Seis ou sete anos de memórias apagadas? Ele não se lembra do próprio passado? Isso explica muito do comportamento do garoto.

— Não tem problema, Srta. Raposa, pois eu fico grato mesmo assim. Como eu não lembro de nada, também não me importo tanto assim. Só estava curioso sobre o assunto.

Como será que eu reagiria se meu passado fosse apagado? Eu creio que sentiria falta de algo pelo menos. É muito triste que ele tenha que passar por isso, mas me assusta a forma fria que ele lida com o assunto.

— Pois bem, creio que já está na hora de eu preparar a janta na estalagem e também não é seguro conversarmos muito, não com uma recompensa pela cabeça da Srta. Ah! Por falar nisso, nada de saidinhas, pois é muito perigoso. Eu te trarei comida, então fique escondida aqui o tempo todo, entendeu?

— Entendi, Srta. Cintia, não vou sair daqui — diz a raposa, desanimada.

— Certo, para dentro então, Gris.

Gris não tira os olhos da raposa. Ele não aparenta querer ir embora, e talvez ele queira conversar mais com ela para tirar mais dúvidas. Em todo caso, precisamos ir.

Ele me obedece.

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