Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 1

Capítulo 17: A Máscara dos Malignos

CINTIA

 

Deve ser a minha punição, pois eu disse que tinha um plano infalível.

Entretanto, há momentos em que, mesmo com todo o planejamento, nós falhamos. Não consegui prever que os soldados de vermelho iriam tão longe e agiriam dentro de Lumínia.

O que está em jogo em Galantur para que eles cacem tão ferozmente uma Lady em terras vizinhas? Acho que você escondeu de mim alguns detalhes, Srta. Raposa.

Eu imaginava que te manter afastada da luta pelo poder já seria o suficiente, mas me enganei. Ao que vejo, sua irmã pretende te eliminar completamente.

Olho para as camas, Gris e a Raposa dormem um sono profundo, e não parecem mais estar em perigo de morte, entretanto o estado deles é péssimo.

Tsk! — Deixo escapar minha indignação.

Ah! Não faça essa cara, por favor. Uma senhorita tão charmosa não deveria contorcer o rosto assim, ou vai deixar rugas — diz um homem bem vestido, simpático e com um bigode muito bem-feito.

— Preciso lhe agradecer novamente, Sr. Alan. Receio que, se não fosse sua ajuda, eles estariam mortos. Estou em dívida com o senhor.

Ah! Não me chame de senhor. Causará a falsa impressão de que sou mais importante do que deveria.

Ele diz isso, mas percebo que é vaidoso. Ele fala que não, mas gosta de cordialidade. É um homem bem peculiar, portanto jogarei do seu jogo.

— Creio que o senhor terá que se acostumar a ser chamado assim, pois eu tenho muita estima pelo menino e pela raposa e, se não fosse a sua ajuda, a história deles já teria acabado. Parte de mim teria morrido junto com eles também.

— Pela forma que a senhorita diz, eles são como filhos, verdade?

— Sim, eu queria ser abençoada com filhos tão formidáveis assim um dia. Em todo caso, são tão importantes para mim, como se fossem de minha família. Ainda que eu conheça o Gris há pouco tempo.

Será que seria um sonho muito distante se eu pudesse cuidar deles daqui para frente? Eu queria tanto que o V. deixasse o Gris comigo, mas eu também teria muito medo de deixar Alienor sozinha com o degenerado.

Não pelo fato de ela ser uma garota bonita, e eu achar que ele tentaria fazer algo ruim com ela. Sei que o V. não é assim, ele não se atreveria.

Se o V. fosse mulherengo eu saberia, tendo em vista que todos os assuntos sempre começam ou acabam na estalagem. Fato é que, o V. atrai coisas perigosas, e tenho medo de que os garotos sofram por conta disso.

O que quero dizer é: Ele é um homem bom, mas que comete maldades.

É possível encontrar dois tipos de pessoas por aí: O primeiro, são os homens bons que cometem maldade, e o segundo são aqueles maus, que vestem máscaras de bondade, que praticam a maldade no seu íntimo, fora da vista. Estes, se observados de fora, aparentam os mais benevolentes.

O primeiro tipo de pessoa, que é o caso do V., é fácil de identificar, pois o esforço de uma pessoa boa para atuar como má é mil vezes maior, já o segundo tipo, ele pode nos enganar eternamente.

Em todo caso, Alienor também não pode ficar aqui, pois eu não conseguiria dar a devida proteção a ela.

— Está pensativa, Srta. Cintia. Em todo caso, não te culpo por isso. Devem passar mil coisas pela sua cabeça. Gostaria de beber algo? Eu acabei de preparar um chá, e está delicioso.

— Eu aceito, sim. Acho que vou me sentir melhor com isso.

— Como desejar, só um minuto.

O Sr. Alan sai do quarto e vai até a sua cozinha, próxima daqui, pois estamos na casa dele. Alan carregou Alienor e Gris para cá, os tratou e depois me chamou. Em resumo, ele é nosso benfeitor.

— Já contei para a Srta. que eu me tornei alquimista por conta do chá e do café? — diz Alan, lá da cozinha.

— Não, mas me surpreendo ao saber disso.

Enquanto conversa, ele pega suas xícaras e demais louças e as coloca em uma bandeja para trazê-las até nós. São louças muito belas e devem ser caras. Vejo que ele tem bom gosto e parece orgulhoso disso.

— Sim, de fato é, tornei-me alquimista, pois adoro tais bebidas, assim como outras do gênero. O café, por exemplo, possui muitas peculiaridades que podem afetar o sabor dele.

— Explico-me melhor, se a Srta. colocar açúcar misturado com a água e levar ao fogo, a temperatura que a mistura ferverá será um pouquinho maior, se comparado com a temperatura da água pura. Essa mínima variação pode afetar o sabor do café.

Ele gosta mesmo de falar sobre os detalhes ligados à alquimia e culinária, e parece combinar ambos para formar algo mais artístico do que técnico. Todavia, eu realmente estou curiosa sobre o assunto, não pela arte ou técnica, mas sim pelo sabor, afinal eu preparo café todos os dias e seria ótimo se o gosto melhorasse.

— Nossa! Vou ter isso em mente quando preparar o café na estalagem amanhã.

— Não estou te aborrecendo com esses detalhes sobre alquimia, Srta. Cintia? — diz o Sr. Alan, lá de longe.

— De forma alguma, inclusive eu queria saber mais detalhes. Quem sabe eu não melhore o gosto do meu café, os clientes adorariam.

— Então eu vou passar qualquer dia pela manhã e tomar café na sua estalagem. Quero provar do sabor do café da Estalagem Alazão Selvagem — diz Alan, enquanto se aproxima com a bandeja.

— O cheiro está ótimo — eu digo.

Ele preenche de chá uma xícara com uma destreza incrível e depois me entrega, logo enche uma outra para ele, senta-se e começa a saborear também.

— Pois bem, para concluir, tente colocar a água, fervê-la, quando isso ocorrer, desligue o fogo e então adicione o açúcar, depois o café, mexa e, por último, depois de um minuto, coe. Sem mais segredos, então experimentaremos. Claro, essa é a forma que mais me agrada, entretanto o paladar varia de pessoa para pessoa, e eu respeitarei se a Srta. não gostar. Se isso ocorrer, pode me dizer, pois não me ofenderei de forma alguma.

— Como foi que passamos esse tempo todo sem conversarmos, Sr. Alan? Eu adoraria ter conhecido melhor o Sr. antes, mas te vejo tão pouco.

Ah! Isso é culpa minha. Eu estou há poucos meses em Lumínia e quase sempre trabalhando. Sei que deveria ter sido mais cordial e comparecido à estalagem para conversar com a Srta. e me apresentar. Noto que perdi muito também, por não fazê-lo.

— Está realmente muito bom. Acho que é o melhor chá que já tomei.

— São incríveis as nuances que podem haver com ingredientes tão simples, como água, açúcar e erva, não é?

Quando olho para a cama, percebo algo estranho. Vejo um amontoado de pelos vermelhos, agora organizados em uma configuração diferente da que vi antes, pois vislumbro globos avermelhados, dentes e um rabo que não para de se mexer de um lado para outro.

— Parece o papo de dois velhotes, que chatice. Acho que seria melhor ter morrido perto do rio mesmo. Será que dá tempo de voltar lá e falecer?

Por que ela fez isso?! Vai assustar o Sr. Alan, e ele vai achar que é uma besta.

Eu me levanto e olho para ele. Minha tensão é tamanha que esqueço de respirar, e os músculos do meu corpo estão tão rígido que sinto até mesmo dor. Porém ele continua... tomando chá?

— Percebo uma certa confusão, Srta. Cintia. Fato é que eu já sabia há bastante tempo que a raposa de fogo, procurada pelos soldados de Galantur, estava aos seus cuidados. Também sei que ela, na verdade, é a belíssima Alienor de Vermilion, uma Lady e uma maga de destruição e de vida, muito poderosa por sinal.

Ele toma outro gole de seu chá, como se tivesse todo o tempo do mundo disponível, e continua: — Ah! Eu vi as belíssimas explosões que ela produzia, e pareciam com fogos de artifício, eram belíssimos, tão belíssimos. Aquela última então, possuía um leve toque avermelhado — Ele intercala as frases com breves pausas para gesticular e ilustrar bem o movimento dos fogos.

Eu me sento, mais tranquila, coloco a mão no peito e me acalmo.

— Pelo menos o do bigode sabe aproveitar um pouco de arte — diz a Raposa.

— Alienor! Mais respeito pelo seu benfeitor!

Ah! Não se preocupe, eu também já fui jovem e caótico um dia. Eu fazia uma bagunça por aí. Também é bom estar perto de pessoas que esbanjam tanta energia: é como ficar ao sol em um dia frio.

— Em todo caso, sinto-me na obrigação de me desculpar por ela.

— Se é importante, eu aceitos suas desculpas. Todavia relaxe, pois o perigo já passou.

— Sr. Alan... quanto eu te devo pelos seus serviços? Não sei se tenho o dinheiro todo agora, mas certamente posso levantar a quantia, se me der algum tempo.

Hum! Não se preocupe com isso — responde Alan —, eu estava de olho no garoto de cabelos cinzas, a pedido de Val Lefar. Nós temos um combinado, portanto o serviço já está devidamente pago. Quanto a Srta. Vermílion, o pagamento foi o belo espetáculo de fogos que eu vi. Devo admitir que já vi belas artes pelo mundo e aqueles fogos estão realmente entre as mais refinadas, já a efemeridade deles os tornam ainda mais valiosos. Sinto orgulho de ter visto tamanha orquestra. Enfim, como poderia deixar morrer uma artista tão talentosa?

 Ao terminar de falar, ele se debruça sobre seu punho, enquanto se sustenta sobre sua perna cruzada, o que dá uma impressão clara de que ele ficaria realmente muito triste por perder Alienor. Talvez até mais triste que com a morte de Gris.

— Ainda assim, eu insisto. Você fez muito, e nós tão pouco pelo Sr.

— O que ocorre, Srta. Cintia, é que eu também já fui pago, em espécie, pelos serviços. Não me sentiria bem em receber o pagamento em dobro. Eu nem conseguiria dormir se fizesse algo tão desonesto.

Pago em dinheiro?

— E quem pagaria por estes serviços? — eu pergunto.

  1. talvez? Ele já voltou? Pela quantia, poderia ter sido o barão, mas com que propósito?

— A Srta. não tem um cavalariço?

— O Alberto? O Sr. se refere a ele?

Mas ele não teria dinheiro ou interesse nisso.

— Sim, ele mesmo, foi ele quem me pagou — Alan bebe mais um gole de chá depois de falar.

— Não entendo, o Alberto não teria interesse e creio que nem dinheiro para isso.

— Seu raciocínio é parcialmente correto. Quanto ao interesse, foi pelo fato de que ele ficou realmente comovido ao saber do estado grave da raposa e de Gris. Claro que ele pensa que a raposa é um animal de estimação, mas ficou deveras chateado mesmo assim. — Alan faz uma pausa para beber outro gole. — O fato dele ser o causador do ocorrido só o deixou ainda mais abalado.

— Causador? — diz a Raposa, que se levanta, ainda fraca.

Ah! Sim, Srta. Vermilion, ele a viu nos estábulos e a delatou para os soldados de vermelho. Em troca da recompensa, é claro.

— Ele o quê? — Levanto da cadeira. Eu vou matar o Alberto, aquele ganancioso.

— Bom, tenho certeza que ele não fez por mal, pois creio que pensava que era um animal comum, não cogitava que fariam mal e ele. Em todo caso, ele está longe agora. Ele me disse que ficou tão envergonhado do que fez, que não poderia mais voltar, e se mudou de Lumínia. Era possível ver a tristeza em seus olhos. — Enquanto fala, Alan enche outra xícara de chá para si e diz:

— Mais chá?

— Sim... claro... obrigada — digo, ao passo que olho para Alienor pego o chá das mãos de Alan.

Creio que não consigo conter o meu nervosismo, mas Alienor está despreocupada escutando a conversa. Ela balança o rabo, para lá e para cá. Algo nessas histórias não parece se encaixar.

— Enfim, ele me deu as duzentas peças de ouro, para pagar as despesas do tratamento, e partiu para morar com sua família em sua terra natal. Creio que era nos subúrbios de Thar ou seriam nos campos de arroz de Thar? Uhm... não lembro bem. — Alan bebe novamente de seu chá.

— Creio que perdi dois empregados esta semana — digo isso, já mais calma. Neste ponto já consegui controlar meu nervosismo.

— Pois é, a Srta. Lorena também era uma moça adorável e sua filha então, que menina formidável, não parava de falar, mas era tão fofa.

— Como assim, o Sr. fala como se ela tivesse saído da cidade com a família também?

— Exatamente, o pessoal comenta pelo vilarejo que a última coisa que ela falava por aí era que haviam ratos e baratas em seu estabelecimento. Imagine só, quanta petulância espalhar boatos mentirosos por aí. Difamação é algo muito grave.

Alan pausa sua fala, pensa, bebe de seu chá e depois continua: — Ela também disse que iria cobrar um favor do barão, mas algum tempo depois ela foi embora de Lumínia. Eu tenho uma teoria, creio que ela ficou assustada com o incidente do menino de cabelos cinzas e saiu da cidade. É! Creio que foi isso mesmo — diz Alan, depois continua a degustar do chá.

Eu olho para Alienor e tudo o que vejo é uma expressão de sono em seu rosto, pela conversa.

— A Srta. quase não tocou em seu chá — ele comenta.

Precisamos sair daqui.

— Pois bem, já é tarde, Sr. Alan. Eu creio que levarei os meninos para minha residência para terminar de cuidar deles lá.

Ah! Não se preocupe, pois eles estão bem acomodados aqui e não incomodam em nada.

— Eu insisto. Não quero te causar mais problemas.

— Não é problema algum, Srta. Cintia. Na verdade, faço por prazer.

Toc! Toc!

Ah! Creio que temos visita. Vou ver quem é, só um minutinho. Fiquem à vontade. — Alan se retira e vai até a porta de entrada.

Não conseguirei retirar o Gris, sou fraca para isso, mas eu preciso tentar.

Alienor dormiu e ela não percebeu nada estranho. Preciso tirá-los daqui e rápido!

— Nossa! Que surpresa boa. Entre, meu amigo, você vai adorar saber quem está aqui na minha casa agora. — Escuto Alan receber alguém na porta. Pelo som de seus passos, parece ser alguém muito grande.

Vou primeiro até a raposa.

— Alienor, acorde, rápido, precisamos sair daqui!

Ai! Deixe-me dormir! Estou acabada, gastei todo fluxo e meus músculos doem.

— Isto não é hora!

Alguém entra no quarto e está exatamente atrás de mim agora. Sinto uma presença ameaçadora, e ele deve ser enorme, pois sua sombra eclipsa a luz do lampião, quase que completamente.

Eu me levanto e viro devagar, antão crio coragem e olho para a pessoa.

Ele realmente é muito alto, deve ter uns dois metros de altura, é muito forte, com cabelos e barba pretos. Eu não conseguiria fugir dele, mesmo que estivesse sozinha, muito menos carregando os dois meninos.

Eu o abraço.

— Você está sem seu amuleto de proteção — diz o homem que possui uma aura maligna.

— Eu esqueci em casa, mas posso buscar.

— Depois, pois nós precisamos conversar antes.

Eu não aguento e começo a chorar. Quanto mais tento me controlar, mais eu choro. Não queria fazer isso na frente dele, mas não consigo parar.

— Por que você demorou tanto, V.? Seu idiota! Idiota! Imbecil! Burro! Chamou o filho do Barão de...

Eu o bato com toda força que tenho, mas ele mal se mexe, ele não sente nada. Que ódio que estou! Eu continuo a socá-lo mais e mais. Já nem lembro do motivo.

Ele me abraça, mas nem poderia dizer que é um abraço, parece mais como se ele quisesse me imobilizar para eu não me machucar na tentativa de bater nele.

— Está tudo bem. Você foi formidável, mas agora pode descansar — diz V.

Eu solto o peso do meu corpo e só não caio porque ele me segura.

Sinto-me fraca.

— Já falei para vocês que eu adoro reencontros? Por favor, sentem-se. Eu vou preparar mais chá. Estão com fome?

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