Volume 3 – Parte 3
Capítulo 67: Transcendência

Lúcifer encontrava-se tão próximo de Norman quanto as duas garotas no outro lado do quarto.
Um dos joelhos dobrado, a outra perna pêndula diante da parede que precedia a abertura da janela.
Com um olhar de soslaio, encarava-as paralisadas, enquanto tinha o rapaz adormecido na mira.
Sequer pretendia fazer algo a respeito, portanto reagiu espantado assim que viu a mais nova se mover em disparada.
Ela se postou entre o vegetativo e o misterioso, os braços abertos em sinal de que serviria como um último escudo a fim de protegê-lo, caso fosse necessário.
Os olhos azul-escuros se semicerraram, o contrário ao que seu semblante de fato mostrava.
Apesar da coragem estampada na atitude da menina, o temor imperou numa proporção ainda maior.
Bianca quase mordia o lábio, no intuito de segurar-se naquela posição.
Os olhos esverdeados se tornaram um terremoto que acompanhou a intensidade do restante do corpo, prestes a desmoronar graças à pressão irradiada daquele ser.
De todo modo, suportaria até onde fosse possível.
Enquanto isso, Helen observava o evento sem deixar a incredulidade de lado.
Despercebida quanto a própria faceta boquiaberta, encarou as costas da Marcada de Deneb, tão alargadas em comparação ao que deveria ser.
Percebeu que, daquele local, nada poderia fazer. Ainda não havia se acostumado com tal intensidade, capaz de lhe arrancar gotas de suor frio e fazê-la engolir em seco.
O frio provindo do homem enigmático facilmente concebia uma sobreposição no natural clima primaveril.
Imaginar o quanto a garota, de aparência indefesa, era capaz de suportar aquela sensação bizarra, levantou certa ânsia em seu peito.
Mesmo ciente de que ela era incrível por ter suportado tantas tragédias com a idade que tinha, ver isso acontecer em sua frente tornava tudo ainda maior.
Inclusive, a fazia pensar em como era nada mais do que um empecilho na vida dos dois...
— Não vou deixar... você fazer nada com o maninho! — Bianca puxou a afronta da alma, à medida que não podia controlar os pesados arquejos de ansiedade.
Em protesto, Lúcifer exalou um pesado suspiro.
— Não será uma tarefa fácil, então?... — Desceu da janela.
Ele encarou a corajosa menina de cima, ratificando a grande diferença de estatura entre ambos.
Foi nesse momento que um fraco gemido se espalhou até os ouvidos dos presentes.
A garota arregalou os olhos, assustada, enquanto a universitária, na outra cama, pareceu despertar de um estado de transe.
As atenções foram direcionadas ao Marcado de Altair, acordado em sua cama.
Enquanto as protetoras eram dominadas pela exasperação diante do cenário atual, o invasor logo percebeu a possível raiz do problema, enterrada em seus globos oculares vazios.
Sem dar brechas para uma reação, tateou o ombro da distraída menina e a lançou para trás. Ela, pega de surpresa, soltou um fraco grito ao cair com o traseiro no piso.
No mesmo átimo, pôde-se constatar um rápido movimento das sobrancelhas do rapaz.
Isso trouxe a primeira resolução ao homem, que optou por seguir adiante com dois passos rápidos, se posicionando na adjacência do móvel que o sustentava.
Bianca esperneou de incômodo depois da queda, mas logo retomou a postura, desesperada ao enxergá-lo tão perto do incapacitado.
— Não! — gritou ao se levantar o quanto antes. No intuito de afastá-lo, lhe agarrou na cintura e usou toda sua força para o puxar. — Por favor! Não faz isso!
Embora aturasse as lamúrias da menina impotente por um bom tempo, Lúcifer perdeu a paciência e usou a região posterior do braço esquerdo — junto ao cotovelo — para arredá-la, com ainda mais força.
O resultado foi a Marcada de Deneb colidir com as costas na parede e no peitoril da janela, o que lhe trouxe uma dor eletrizante.
Na percepção da própria incapacidade de protegê-lo, deixou-se arrastar até retornar ao solo.
Seu desejo era de chorar, tanto pela agonia deliberada do choque quanto pela situação irreversível à frente.
Sem pestanejar, o misterioso levou a mão destra com cuidado na direção dele.
Os três maiores dedos tocaram sua testa. Nada ocorreu nesse meio tempo, no qual o silêncio voltou a predominar o recinto iluminado.
Helen queria se levantar.
Sentia-se puxada por algo invisível, a ponto de guiá-la até a defesa de seu amigo.
Mas, ao mesmo tempo, permanecia inoperante sobre o colchão, como se aprisionada por correntes invisíveis.
A cada vez que a vontade de reagir crescia, o sentimento de insuficiência sobrepujava.
“Pare...”, o coração buscava ecoar sua voz, a fim de superar a consciência paralisada. “Por favor... não faça isso”, os punhos se fecharam sobre as pernas, no aflorar de um nervosismo incontrolável. “O Norman... o Norman não...”
Logo remeteu aos traumas do passado.
A perda de dois de seus amigos, todo o processo de recuperação, o reencontro com aquele que havia a salvado, para então ser salva novamente.
Não podia deixar que acabasse daquele jeito. Não queria que acabasse daquele jeito...
No fim, a voz do coração venceu...
— Não...!
Ao se levantar e esticar a mão, recebeu uma olhadela congelante do homem, que a fez paralisar de novo.
— Por favor, façam silêncio... — soou o mais soturno possível.
Ela levantou as sobrancelhas.
De alguma forma, cogitou aguardar pelo procedimento realizado por ele, que não parecia carregar intenções ruins de fato.
Não teve a oportunidade de encontrá-lo, como a garotinha contou há pouco, então só possuía o conhecimento que lhe foi transmitida.
Ainda que seu amigo pudesse correr perigo... decidiu arriscar em ver para crer.
Detrás da figura ameaçadora, Bianca marejou as vistas, o observando com a cabeça baixa.
A ansiedade fez seu coração bater forte, a ponto de machucar o peito e ameaçar subir a garganta.
Mas, diferente do esperado, não observou qualquer reação proveniente do Marcado de Altair.
“Entendo... É como eu suspeitava”, o enigmático entrefechou as vistas, incapaz de desviar-se daqueles globos oculares desprovidos de qualquer ponto de luz.
Recuou o braço e levou os cílios a se encontrarem. Sua ação despertou ainda mais receio, no aguardo por algum pronunciamento positivo ou negativo.
Depois de tanta taciturnidade, declarou:
— A consciência dele encontra-se em um estado de estagnação, alheia ao entorpecimento.
Bianca voltou a esgazear os olhos, recheados de lágrimas já acumuladas em seus cílios.
Helen se livrou do congelamento causado pela aflição e aproximou-se dois passos cuidadosos, na busca por criar o mínimo de ruído possível.
— Poderia explicar melhor? — Sua pergunta o deixou espantado durante um rápido período.
Ele contornou a própria reação, em prol de delegar sua resposta:
— Essa é a razão de seu estado. Sua mente está aprisionada.
— Mas por que...?
Helen fitou a face do amigo, as sobrancelhas arriadas.
Lembrou-se de novo do dia da batalha decisiva para a Seleção Estelar, quando o encontrou desmaiado no vale, junto com Bianca.
A ponderação surgiu no mesmo instante que Lúcifer verbalizou:
— Isso ocorreu, pois ele enfrentou um grande trauma. — Também o encarou, sem abandonar a feição severa. — Um trauma causado por uma soma de conflitos internos e impactos vindos de fora. Tão poderoso que fez sua alma adormecer. Um processo de autodefesa, para evitar a dor que não deseja mais enfrentar...
Aquilo trouxe um calafrio surreal à espinha da universitária, que não encontrou palavras para expressar os pensamentos embaralhado.
Bianca voltou a se levantar, ainda enfraquecida após o forte choque com a parede do quarto, alheia aos sentimentos deturpados.
As lágrimas verteram das vistas brilhosas, fios pequenos responsáveis por umedecer as bochechas coradas.
Só de pensar no que o Marcado de Altair poderia ter vivenciado, a ponto de adentrar naquele estado, uniu as mãos e as apertou contra o peito.
Os olhos do garoto mantinham-se bem abertos, não piscavam uma vez sequer.
Vendo com maior atenção, além da elucidação oferecida pelo homem de aura fria, parecia buscar observar algum fator ausente daquele cômodo.
A menina não demorou a refletir sobre as circunstâncias que os levaram a tal cenário.
Depois da batalha decisiva, a Marcada de Vega foi coroada como a Rainha Celestial e desapareceu.
Com novas peças do problema entregues à sua montagem, tornava-se cada vez mais claro que a culpa deveria recair sobre ela...
E isso girou uma chave no coração não só de Bianca.
Helen nunca disse para ninguém, mas sempre carregou uma latente desconfiança acerca de Layla, desde o encontro casual na universidade.
Sua forma de interagir, a ordem dada a ela e seus companheiros no ataque que lhes tirou a vida... tudo que girava em torno da mística garota a trazia desconforto.
E não foi diferente ao encontrá-la pela última vez, na remota igreja que precedeu o confronto final.
No fim, todos os caminhos levavam até essa pessoa. E caso essa fosse a confirmação...
“Então a dor que ele quer evitar... tem a ver com ela?”, a indagação passou voando na mente da morena, incapaz de evitar a contração dos supercílios numa feição melancólica.
Inconscientemente, cerrou os punhos com força.
— Me responda... — O mussito chamou a atenção dele de volta. — O que você disse pra Bianca, sobre o universo estar se aproximando do fim... isso é verdade?
O homem demorou um pouco a responder:
— Sim, é verdade.
— Eu percebi que a estrela da Lira desapareceu do céu, quando essa tal Seleção Estelar acabou há três anos. — Buscou controlar as emoções ao máximo possível, em prol de não revelar o embargo no tom de voz. — No começo achei que pudesse ser um engano, mas como estudante de astronomia, observei e constatei esse fato com o tempo. Isso teve ligação com ela ter se tornado essa tal Rainha, não foi?
— Então é assim que chamam aqui? — cochichou para si próprio. — Sim, precisamente.
— E desde então, diversas outras estrelas também começaram a sumir. Embora a maioria não fosse tão relevante no céu noturno... — Abaixou a voz por um instante, mas logo regressou. — Esse seria o tal fim do universo que você diz?
“Essa garota é bem perspicaz”, pensou antes de retrucar.
Ficou impressionado com a capacidade de observação e fundamentação de uma pessoa que sequer tinha sido escolhida para o grande evento.
Só por isso, considerou-a como merecedora de receber a melhor explicação de momento:
— A entropia do universo está crescendo, desenfreadamente. Assim como o universo nasceu de uma grande explosão calorosa, seu destino ruma a um último gemido congelado. — Ao enunciar, constatou a perplexidade crescer no rosto da garota que boquiabriu. — Pelo visto você entende bem do que estou falando.
— Morte térmica do universo. — Com o murmúrio abismado, ela encarou os próprios pés. — Uma das hipóteses para o fim do universo seria... um grande congelamento.
— Era Degenerada — prosseguiu o misterioso. — É nesta “fase” que o universo se encontra, iniciada logo após a nomeação da nova Rainha. Isto deve explicar sua constatação anterior.
Helen levou uma das mãos à boca, na busca de esconder a incredulidade que só crescia a cada palavra proferida pelo invasor.
Antes desacreditada, Bianca também começou a compreender as nuances do cenário atual, muito graças às reações apresentadas pela companheira.
Chegou a sentir-se um pouco mal por ter duvidado tanto, mas qualquer um ali saberia que não era sua culpa.
Em consideração a isso, o homem a encarou acima do ombro, mediante um olhar indulgente.
Tudo que pôde devolver foi um desvio de foco, visando secar o pranto que não parava de cair pela face enrubescida.
— E então... — A universitária retomou o fio da meada. — Você precisa de Bianca... e de Norman para evitar isso?
— Certamente. Poucos escolhidos sobreviveram às batalhas de três anos atrás, mas esse garoto é primordial para que possamos reverter esse cenário antes que seja tarde. E, claro, a Cisne Branco foi de suma importância para que eu pudesse o encontrar. — Tornou a encará-la, dessa vez com metade do corpo virado em sua orientação. — Levou bastante tempo, mas ela enfim usou seu poder, o que me permitiu contatá-la.
— Então foi realmente você... — Fez beiço com sobrancelhas contraídas, ainda acuada.
Apesar da atitude, já se sentia menos inquieta na presença dele. E isso tornava tudo mais simples.
— Minhas induções de alerta não funcionam sempre. E, caso demorasse mais alguns dias, a situação certamente pioraria. — Apontou para o alto, com o indicador dominante. — Muitas das estrelas que podemos ver daqui já tiveram o combustível da vida apagado. A maioria entrou em fase de supernova até se transformarem em buracos-negros. Outras se expandiram mais rápido do que deveriam e se tornaram anãs brancas, pouco a pouco tendo suas últimas energias estagnadas para todo sempre.
— A luz ainda tende a chegar aqui, criando a falsa impressão de que ainda estão vivas. — Helen, mais séria e preocupada, deixou pensamentos falarem em voz alta. — Imaginar a conclusão de uma hipótese a essa altura... é assustador.
— Mas eu... ainda não consigo me convencer. — A Marcada de Deneb se pronunciou, com firmeza agora. — Quem é você? Como sabe tanto? E por que eu e o maninho somos importantes nisso? Você diz que pode fazer ele despertar, mas só quer puxar ele de volta pra isso tudo. Ele já sofreu bastante! Não quero que passe por tudo que passou de novo!
— Sobre as primeiras perguntas, não tenho a obrigação de responder. — A retruca seca fez a menina franzir o cenho, retomando um pouco da desconfiança. — Fato é que ele continua a sofrer neste estado atual. Caso não consiga se livrar dos próprios traumas, jamais deixará esse sofrimento. E desaparecerá, junto com todo este universo.
— E como você pretende despertá-lo? — Helen se intrometeu.
— Para livrar sua mente da estagnação traumática, ele precisa de estímulos.
— Estímulos?...
— Quando eu empurrei a Cisne Branco, por exemplo. Pude constatar um movimento de suas sobrancelhas, mesmo que por uma fração de segundos. — Aquilo fez ambas abrirem a boca, surpresas. — Isso por si só foi um estímulo. Creio que, ao viver com vocês duas durante todo esse tempo, ele tenha recebido diversos tipos de estímulos, mas não suficiente para despertar sua mente. Portanto, precisamos de algo ainda mais intenso, tão intenso quanto o que ele acabou de receber.
A garota refugou em introspecção, na tentativa de encaixar as novas peças no intenso quebra-cabeça mental.
Já havia chegado a um nível de difícil descrença quanto à problemática proposta.
Em vista de todos os embasamentos bem colocados, apesar de sentir que muitas respostas ainda estivessem omitidas, deu o braço a torcer e assentiu com a cabeça.
Sustentou a taciturnidade durante mais alguns segundos, até enfim declamar em alto e bom som:
— Tudo bem. Vou levar em consideração tudo que me disse até agora. — Helen encarou sem fraquejar, as vistas retilíneas sequer irradiavam insegurança. — E por acreditar no que diz, considerarei a urgência em resolver esse problema, se é que ele possa ser resolvido. No entanto...
Lúcifer encheu-se de expectativas, na iminência da oposição verbal da garota de emaranhados castanhos.
— Eu não irei lhe seguir. — O instante de silêncio perdurou, trazendo da janela uma nova brisa aconchegante. Então, apontou na direção da garota mais próxima da abertura. — Quem deve decidir isso é Bianca.
E as atenções se voltaram à Marcada de Deneb. Sua cabeça inclinada, os olhos a enxergarem os próprios pés, fazia a mediana franja alva cobrir metade da feição carregada.
Embora fosse tão próxima a Norman e desejasse a sua pronta recuperação, independente dos meios, não cabia a ela decidir aquilo sozinha.
Nada mais justo do que delegar a decisão final às mãos da menina, por mais difícil que parecesse ser.
A apreensão tomou conta do ambiente, por todas as partes. No ápice da crise inesperada, ela contentou-se a finalizar as considerações adquiridas através do debate entre as partes.
Reuniu coragem o bastante para, após segundos arrastados de silêncio, declarar:
— Me desculpa. Eu não posso aceitar.
De volta às lágrimas, a decisão de Bianca trouxe o primeiro grande impacto ao curso que definiria o destino derradeiro daquele universo.

Opa, tudo bem? Muito obrigado por ler mais um capítulo de A Voz das Estrelas, espero que ainda esteja curtindo a leitura e a história!
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