Volume 2

Capítulo 111: A VORAGEM INOMINÁVEL

Kai não sabia o que pensar nem o que sentir. Ele sempre foi muito crítico e claro quanto à isso, mas, de repente, tudo pareceu sem rumo e sem sentido. 

Havia uma profundidade extenuante nas palavras de Naor, que grudaram em Kai como grãos de areia. 

Algo aqui era forte e denso, trazendo, de repente, a realidade nua e crua da qual Kai tanto queria se desvencilhar. 

Pela primeira vez em muito tempo, alguém estava de fato preocupado com ele. Ele se esqueceu disso… era bom. 

Naor sentou-se lentamente diante dele, fazendo-o lembrar de quando ele mesmo se aproximava de um animal ferido. 

O fogo projetava sombras longas em seu rosto, aprofundando o vinco entre as sobrancelhas, onde uma preocupação antiga parecia residir. 

Por um tempo, ele simplesmente o observou. A pressão e vontade inicial de Kai de desviar o olhar se foi, como se houvesse sido acolhida por Naor. 

Kai respirava fundo, cada inspiração exigindo uma luta interna contra algo invisível. 

O Líder dos Esquecidos viu. Viu como quem reconhece um rastro familiar de dor. 

— Você sente agora, não sente? — Perguntou aos sussurros. Kai não respondeu de imediato. Apenas passou a mão pelo rosto, exausto. 

Quando falou, sua voz carregava uma rouquidão cansada e seca. 

— Sinto… como se houvesse alguém atrás dos meus olhos. — Houve surpresa da parte dele, duvidando até o último segundo que estava disposto a se abrir com alguém. Mas não foi difícil prosseguir, no fim. 

— Alguém… observando, esperando… sussurrando às vezes. E parece… antigo. E faminto. 

A sombra da fogueira tremeu ligeiramente, a voz da jovem cantora — Kai presumiu ser Liorah — se aprofundou em um barítono, atraindo a atenção do jovem pálido e inexpressivo. 

Naor, por sua vez, acompanhou a sombra com o olhar, como se escutasse algo que ninguém mais podia ouvir. 

Sim. — disse ele, recuperando a atenção de Kai. — Está na hora de você saber o porquê. 

O silêncio ao redor ficou tão denso que até o crepitar da lenha pareceu hesitar. Kai voltou-se para Naor, franzindo o cenho e notando sombras escuras crescerem sobre a bolha. 

Um suspiro foi contido, a atenção dos Esquecidos sendo puxada para a conversa dos dois homens. 

— Aquilo que vive em você não é um espírito, nem magia viva, nem uma maldição de feiticeiro. — Um frio subiu pela espinha de Kai, de repente recordando as feiticeiras daquela estranha Ordem… Filhas da Névoa.

Naor ajeitou o próprio cajado. Talvez precisasse do gesto para organizar a própria coragem. 

Não passou pela cabeça de Kai que o homem poderia estar receoso. 

— É mais antigo que qualquer coisa que já caminhou sobre este Plano. 

Kai arqueou as sobrancelhas, mas nada disse. 

— Antes do homem caminhar pelos planos superiores. Antes dos de Orelha Pontuda moldarem canções. Antes dos Gananciosos aprenderem a nomear as estrelas. Antes dos Planos serem Planos… já havia fome. — Naor respirou fundo. — Uma fome que não tinha rosto. Nem forma. Nem intenção além de existir e consumir. 

Kai sentiu o arrepio se intensificar, subindo a nuca. 

— Ela não tem nome? — perguntou ele, quase temendo a resposta. 

Naor abaixou os olhos, como quem recita um fragmento proibido.

— Tem… Mas não deveria. Essas criaturas, mais antigas que o Ser, se alimentam da intenção, da compreensão de sua existência…

Ele levantou o olhar outra vez. 

— O povo caído daquelas terras chama de Sauveg Mauror Nimu. Mas eles tendem a idolatrar e endeusar figuras caóticas…

Kai soltou um leve suspiro, lembrando das palavras do Firenze. 

— Entre meu povo, — prosseguiu Naor. — contudo, chamamos de “A Voragem Inominável”. Porque chamá-la pelo nome verdadeiro… é como bater na porta do abismo e esperar que alguém responda.

Kai ficou imóvel, tendo a sensação de que algo dentro dele despertou com esse título. Mas estava tudo quieto… algo impedindo sua voz de surgir. 

Engolindo em seco, Kai franziu a testa. 

— A Voragem… quer me consumir?

Naor negou lentamente. 

— Não. Consumir você apenas apagaria a chama que ela deseja. Ela quer te usar. Quer se moldar através de você, usando sua alma como recipiente… porque uma Centelha pulsa em você, mesmo que pequena e fraca. Criaturas como ela… — ele engoliu em seco — criaturas que existem antes [Daquele Que Tudo Percebe]… só conseguem tocar este Plano através de algo que pertença a Ele. 

Kai franziu a testa, de repente sentindo um frio indomável. Havia muitas nuances imperceptíveis aqui. A primeira delas era o modo como Naor se sentia cauteloso quanto à figura da Voragem Inominável. 

Kai vinha lidando com a criatura, então entendia bem a razão do grande sujeito se sentir receoso apenas em dizer seu nome cerimonial. 

A segunda coisa era sobre a revelação do mundo… 

Kai tinha a sabedoria acerca dos Planos, embora grande parte fosse apenas especulação. O que não significava que ele não pudesse tirar algo do que Naor dissera, mesmo que muita coisa estivesse subentendida. 

A primeira era que de fato existia um ser cósmico cuidando e guiando todos… e aparentemente [Aquele Que Tudo Percebe] se parecia bastante com a crença divina dos vitanti em uma figura única, singular e patriarca. Etteyow

Kai não negava nem afirmava sua existência… exceto que ele esteve muito perto da morte algumas vezes, e durante sua estadia em Orquídea, ele podia sentir essa presença quase onisciente, observando cada passo seu…

Ele suspeitava que Etteyow fosse apenas uma presença mística da natureza, e que os protetores fossem apenas uma figura criada pelos vitanti para afirmar sua fé sobre algo divino os escoltando e os protegendo. 

Afinal, muitos homens faziam isso apenas para dar sentido universal à própria existência vazia e sem sentido. Apenas para nivelar e acreditar na fé cega de que alguém zelava por eles… pois, que sentido teria se esse mundo de merda não tivesse nem mesmo isso? 

Mas, aos poucos, Kai mudou fundamentalmente sua opinião, vendo de perto a vontade e intenção desses seres Protetores. 

Não apenas isso, mas sua experiência com Abwn Eblomdrude pós morte foi crucial para ele não negar mais a existência desses seres. 

Ainda assim, era custoso acreditar…

No fim, Kai acabava sempre na mesma situação. Coisas aconteciam com ele simplesmente porque sim. 

Abaixando a cabeça, um peso súbito caiu sobre seus ombros. 

— Então… por causa de algo que nunca pedi… ela está sempre tentando tomar meu corpo?

Naor assentiu, observando Kai. 

— Não por algo que você pediu — seu tom foi firme e gentil. — Mas por algo que você é. 

De repente, aquela apatia foi empurrada firme no fundo de seu peito, um ódio profundo e vil ardendo lentamente em sua alma. Seus olhos brilharam com uma raiva silenciosa. 

— Como você sabe tanto? 

Naor olhou lentamente para seus companheiros, voltando ao canto que estava antes. 

Não é que Kai duvidasse dele. Ele sabia o bastante sobre a Voragem pra não duvidar de nada que dissessem sobre ela.

— A areia… sussurra para nós. 

Kai assentiu, aceitando a resposta por enquanto. Pelo menos isso não era tão irreal assim. 

Ele encarou a borda da bolha, observando os grãos colidirem e urrarem. A canção de Liorah pairava, o fogo se alçava alto e a madeira estalava. 

Dentro, havia um turbilhão de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Memórias de mundos caindo e explodindo… 

Kai apertou os olhos, tentando esquecer, mas isso fazia apenas lembrar, pois pequenos pontos dançavam na sua visão escurecida e logo ele lembrava de imensas esferas explodindo e se lançando num vazio incomensurável. 

— É culpa minha… fiz um acordo com ela em um momento de fraqueza… é por isso que minha alma está ruindo, minha sanidade desvanecendo… minha espada silenciando. 

Kai abriu os olhos. Ele quase esperava que Naor negasse, dissesse que nada disso era sua culpa, que ser fraco era da natureza do homem e que ele não podia saber o que aconteceria diante da bela proposta da criatura. Quase.

Naor não disse nada disso. Ficou em silêncio, dando tempo para Kai se situar. 

Eles ficaram horas parados, em silêncio. Naor respeitou o momento de Kai, que não sentia vontade de falar nada no momento, apenas apreciava o quão patético era. 

Nadou tanto para morrer na praia…

Finalmente, ele se virou e encarou Naor, que estava exatamente no mesmo lugar de antes, os olhos fechados. 

Sentindo o par de olhos negros e escuros sobre si, Naor abriu os seus próprios, fogo dançando em seu belo rosto de terracota. 

— Eu não quero ser a “âncora” de nada. 

Naor suspirou, uma tristeza crua em sua voz se pronunciando. 

— Eu sei. É por isso que estamos aqui. Existe conhecimento antigo… fragmentos… formas de conter o avanço dela. Objetos. Ritos. Escudos de alma. E eu vou te ensinar cada um deles. 

Kai respirou fundo — a criatura dentro dele também. Ele sentiu. Um eco. Um pulsar. Um chamado longínquo. 

Enquanto isso, uma parte distante de seu cérebro, aquela já contaminada pelo vazio indescritível, colocava sementes de dúvida em seu desejo. 

Por que eles o ajudariam? O que tirariam de bom nisso? Era a voz vil falando em outro tom. 

Naor percebeu. 

— Não a escute, Kai. Ela tentará te seduzir com poder, com promessa e destino. Mas tudo o que ela quer… é voltar. E você é o único caminho que ela tem. 

Kai fechou os olhos mais uma vez, sentindo a antiga e longa conexão com a Voragem se aprofundar e se distanciar. Algo a afastava. 

Talvez fosse a presença dos Esquecidos, ou alguma outra coisa. Por enquanto, ela permanecia em silêncio. 

Eventualmente, Kai abriu os olhos, negros, frios e determinados. Um sorriso doente surgiu em seu rosto apático e pálido. 

— Muitas criaturas já tentaram me matar… já fui torturado, espancado, possuído, desmembrado, espetado, esfolado, decaptado e, certa vez, tive metade do meu corpo completamente destruído por uma magia poderosa. — Naor tremeu levemente, finalmente perdendo um pouco da calma compostura que aos poucos se mostrava não apenas ser uma máscara, mas sua feição habitual. — Mas, sabe de uma coisa? Eu sempre dei um jeito de voltar, vez após outra, eu voltei… e cada um dos malditos vagabundos pereceu lenta e ardilosamente pela minha mão. 

Ele sorriu mais ainda, sentindo — talvez fosse coisa de sua cabeça — Vento Noturno sibilar brevemente. 

— Então, por que não? Apenas me ensine a fechar a maldita porta. 

Naor sorriu — um sorriso triste, porém firme, daqueles que atravessam eras. 

— É para isso que nós, Esquecidos, existimos.

 

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