Volume 2
Capítulo 110: A METADE QUE AINDA ESCUTA
O silêncio que se seguiu pareceu ganhar peso, repousando sobre os ombros de Kai como um manto revelador.
Não que fosse o bastante. Ele já suspeitava de muitas das coisas ditas pelo estranho homem — mas ouvir tudo em voz alta custava a descer pela garganta.
E, mais do que nunca, sentia-se deslocado ali. Deslocado em todos os sentidos. Como alguém que não pertencia a lugar algum, nem ao mundo diante de si, nem ao que deixara para trás. Um vazio insondável latejava no peito, lento e amargo. Era familiar… mas ao mesmo tempo distante, como se tivesse esquecido o próprio gosto de sua solidão habitual.
Durante anos, aperfeiçoara a arte de estar sozinho após o abandono do pai adotivo.
Contudo, Kai não lembrava como era sentir isso. Mas agora… era como estar nu diante de uma multidão — exposto não de roupas, mas da alegria que qualquer homem deveria ter o direito de possuir.
E perceber que Vento Noturno recuava de seu lado sombrio e vazio… isso o afundava ainda mais. Não que ser melancólico fosse um problema; pelo contrário, havia conforto nisso. Mas a consciência crua do vazio que nada no mundo parecia capaz de preencher… isso sim dava arrepios.
Engolindo a bile, Kai devolveu o olhar ao sujeito estranho.
A fogueira estalava num ritmo irregular, luz e sombra dançando no rosto daquele homem. Lá fora, a tempestade rugia contra a bolha de proteção — um lembrete de que o mundo inteiro parecia ruir… e ele junto.
O homem estendeu o punho, os dedos envolvendo o curto cajado disfarçado. Kai observou-o por um longo minuto, até esticar sua mão e pegar Vento Noturno.
Ele sentiu seu toque frio, insolúvel. A lâmina não chiava mais. Estava em completo, desolador e mortal silêncio. Uma apatia se apossou do coração de Kai… mais ainda.
Quase podia ouvir a voz insidiosa e vil da criatura… mas ela também estava em completo silêncio, quase como se tivesse partido. Kai gostaria de realmente acreditar nisso, mas entendia bem a cruel verdade.
Respirando fundo, ele se sentou diante do homem, observando-o cautelosamente. Não sentia qualquer intenção maligna ali, dele ou de qualquer outro, mas manter a guarda alta sempre era bom.
Apoiando os cotovelos nos joelhos, ele olhou de esguelha para os outros.
— Antes que continue falando em enigmas… quem são vocês? — perguntou, a voz rouca, sem pressa. — Ou melhor… o que são? Acho que devo agradecer por cuidarem de mim…
O homem, ou o que quer que fosse, ergueu o rosto devagar, como se o movimento acompanhasse o ritmo exato do estalar da fogueira. A luz alaranjada refletiu em seus olhos de modo estranho, quase como se tivesse grãos de areia suspensos nas íris.
— Naor, — disse ele, colocando a mão aberta sobre o próprio peito. — Este é o nome que carrego, e por ele me reconhecem na quietude e na morte.
Ele inclinou a cabeça, num cumprimento que era mais antigo que gesto humano comum.
— No idioma esquecido das dunas, significa “o que escuta quando o mundo se cala”.
Kai estreitou os olhos. Suspirando, deu um breve olhar para trás, observando exatamente o momento em que a mulher de antes iniciava a cantarolar uma música com um ritmo suave e melancólico.
— Sou Kai Stone. — Ele inclinou a cabeça, tornando a encarar Naor. — Kai significa “nascido no mar” e Stone significa… “bastardo”.
Naor assentiu, sem qualquer desejo de desdenhar do sobrenome do rapaz. Ele mesmo não ficaria ofendido se o fizesse. Foi-se o tempo em que Kai se preocupava com as pessoas fazendo pouco dele e de seu nome arranjado.
Ao mesmo tempo, era como se um entendimento surgisse entre eles.
Naor continuou, com a voz baixa, quase como se repetisse algo que ouvira desde pequeno:
— Somos chamados Esquecidos da Areia… não porque ninguém se lembre de nós, mas porque nosso lugar é permanecer onde todos os outros deixam de olhar. — Ele tocou o chão com a ponta dos dedos. — Onde a vida adoece. Onde a alma racha. Onde o homem se parte sem que o corpo sangre. É apenas nosso dever cuidar de você enquanto passa por momentos turbulentos.
A fogueira estalou, soprando faíscas que desapareceram na pequena cúpula de proteção. Kai escutou atentamente cada palavra do homem, quase resfolegando durante algumas palavras.
Havia cuidado e trato em suas pronúncias, como se cada palavra dita fosse essencialmente parte daquilo que deveria ser, exercendo exatamente a força e motivo que deveria exercer.
Naor prosseguiu:
— Cada um de nós carrega um nome e um som. Eu sou Naor, o Sussurrante. — Ele respirou lentamente, como se partilhasse algo íntimo. — Ao meu lado caminham: Liorah, a Que Ouve o Areal; Yegar, o Mudo de Barro; Azbai, o Cego que Dança; Mizrah, a Queimada do Poente e Ashvai, o Jovem Sem Fim. Somos seis. Sempre seis. Nunca mais, jamais menos.
Sua voz soou como um toque melodioso do vento em um sino no campo ao pronunciar os nomes dos Esquecidos da Areia. Kai o observou sem piscar, de repente querendo saber mais sobre essas pessoas.
Era como se a muda antes plantada, estivesse sendo regada e, aos poucos, a tensão inicial fosse se esvaindo. Ele de repente se sentia próximo dessas pessoas. Era como se apenas saber seus nomes fizesse isso ser capaz.
Naor ergueu o olhar de novo, agora encontrando os olhos dele sem hesitação:
— Não nascemos para guiar povos nem para desfazer guerras. Nascemos para um único propósito: caminhar até aquele que carrega um fardo tão profundo… que começa a esquecê-lo enquanto o sente. — Seu tom suavizou. — E lembrar a este homem que ele ainda respira.
Kai respirou fundo, sentindo as palavras de Naor descerem mais devagar do que deveriam — como areia fina escoando por um funil estreito.
— Então… — ele começou, hesitante. — Vocês são… curandeiros?
Naor sorriu de um jeito leve, quase imperceptível.
— Curar é palavra grande, Kai Stone. — Ele inclinou o corpo para frente, apoiando as mãos nos joelhos. — E perigosa. Quem tenta curar um homem, tenta mudá-lo. E nós não mudamos ninguém.
Ele inclinou um pouco a cabeça.
— Escutamos. Só isso.
Kai não respondeu. A palavra — escutamos — parecia simples demais para o peso com que fora dita. Na verdade, todas as suas palavras tinham exatamente essa aparência.
Naor continuou, a voz macia como areia movida por vento brando:
— A areia não nos mostra o amanhã. Não precisamos dele. — Seus olhos, dourados profundos, tremeluziam. — Ela nos mostra onde o pé afunda. Onde a respiração falha. Onde a alma se quebra no escuro.
Ele ergueu o dedo indicador e tocou o próprio peito.
— E às vezes… ela nos mostra quando um homem está prestes a desaparecer por dentro.
Kai desviou o olhar, como se as chamas fossem mais seguras de encarar. Havia uma graça obscura nisso, de fato.
— Eu não… estou desaparecendo — murmurou, numa tentativa fraca de firmeza.
— Não — concordou Naor, sem hesitar. — Já desapareceu. Metade de você ficou presa onde ninguém deveria ficar. Mas a outra metade ainda luta para não seguir o mesmo caminho.
O silêncio entre eles não era incômodo. Era… verdadeiro.
Kai soltou uma risada seca, cansada, quase amarga.
— E o que pretendem fazer? Me puxar de volta por… simpatia?
— Não. — Naor piscou lentamente. — Por propósito.
Ele encarou a fogueira.
— Não estamos aqui para salvar vidas. Aparecemos quando um homem pode interferir entre aquilo que vive e aquilo que devora o mundo… e não consegue fazê-lo se estiver quebrado demais.
Kai sentiu um arrepio subir pela nuca.
— E você acha que eu…?
— Eu acho — disse Naor, firme, sem dureza — que ainda respira. E que isso é o suficiente para começar.
O homem inclinou ligeiramente o tronco, como quem se oferece, não como quem exige:
— Deixe-nos tornar o ar menos pesado, Kai Stone. Só por esta noite. O resto… o resto vem depois.
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