Volume 2

Capítulo 109: PULSO DO AÇO, PULSO DA ALMA

Desde que criara Vento Noturno, nos salões escondidos dos Echanti no interior de Pylpunt, Kai percebera que havia criado algo muito mais enigmático e poderoso do que poderia imaginar.

Havia uma vontade latente naquela espada e, Kai percebeu, um certo lampejo de intenção. Algo como uma vontade imaculada e dormente.

Claro, era óbvio que para ele não passava de sua imaginação. 

Mas quanto mais ele a manejava, mais percebia como sua determinação era profunda.

No fim, aos poucos, e lembrando de algo que ouviu há muito de um velho ferreiro em Neve Sempiterna, Kai foi percebendo a verdadeira natureza do que havia criado.

Naqueles tempos, quando menino, Kai era fissurado pela forja de espadas. Ele passava horas vendo o mestre de forja do Grande Castelo Branco — Thandor Pedracalma, um ancião de sobrancelhas brancas que jamais sorria, mas cujo silêncio era sempre cheio de significados.

A lembrança vinha vívida, como se o calor voltasse a queimar seu rosto.

O salão da forja ficava numa câmara funda, abaixo do castelo. O ar era pesado, espesso de fumaça e brasas. As paredes tremeluziam com a luz do forgeiro, o grande braseiro central alimentado por carvões negros que só existiam nas montanhas perdidas do sul. O som constante — clang, clang, clang — era uma trilha que o menino Kai conhecia melhor do que sua própria respiração.

Thandor sempre começava com o mesmo ritual:

— Observe, menino. A alma do aço nasce no silêncio.

Ele colocava o lingote bruto sobre a bigorna, ajustava os grampos de ferro e, com a outra mão, puxava a marreta de dorso largo. O metal entrava incandescente, rubro, cuspindo faíscas. Kai, de pé num banquinho improvisado, observava tudo com olhos que brilhavam mais do que as brasas.

Primeiro vinha o aquecimento — a subida gradual da temperatura até o metal atingir o “ponto de sangue”, como Thandor chamava a coloração vermelho-vivo.

Depois, a decapagem, raspando as impurezas com a escova de latão.

Então, começava a parte que encantava o menino:

O forjamento.

A marreta descia em ritmo constante, quase ritualístico. Cada golpe espichava o metal, dava-lhe forma, e Kai sabia — sem entender exatamente por quê — que algo ali acontecia além do físico. Parecia que o metal respondia. Quase respirava.

— Toda lâmina tem um pulso — dizia Thandor, sem olhar para ele.

— Um... pulso? — Kai repetia.

— Sim. Pulso é aquilo que você não vê, mas sente. É o eco do ferreiro dentro do ferro.

Thandor então levava a peça até o têmpero, mergulhando a lâmina ainda viva num recipiente de óleo negro. O vapor subia como uma névoa fantasmagórica, envolvendo ambos.

O aço “gritava” numa chiadeira fina.

No final, vinha a parte que mais impressionava o garoto: o revenimento, quando a lâmina voltava às brasas só o suficiente para estabilizar sua nova natureza.

Thandor dizia que aquele era o momento em que a espada “aceitava o mundo".

E havia, por fim, o instante silencioso em que ele colocava a quase-espada diante de Kai e declarava:

— Se escutar com atenção, vai ouvir o que ela quer ser.

Kai fechava os olhos. Não sabia escutar nada; apenas o próprio espanto.

Mas anos depois — muitos anos, e muitas dores depois — ele entendeu.

Vento Noturno havia sido forjada não apenas com técnica, mas com um tipo de verdade interior, exatamente como Thandor ensinara. No fundo da lembrança, Kai ouvia a voz do mestre outra vez:

— A lâmina guarda aquilo que o ferreiro teme e aquilo que ele deseja. Se a vontade for pura, ela permanece. Se for turbulenta… a lâmina desperta.

E então, tudo se encaixava.

Vento Noturno reagira ao Líder dos Esquecidos porque, no instante de sua criação, Kai carregava dentro de si os dois extremos que Thandor descrevera: o medo profundo de perder-se novamente e o desejo ardente de proteger quem não podia se proteger.

Observando a espada vibrar e não oferecer resistência ao toque do estranho, uma dúvida pairou na mente de Kai, ainda que muitas coisas apontassem para sua resposta. Como se ouvisse os pensamentos dele, o homem devolveu sua lâmina à bainha e ergueu o rosto.

— É uma tarefa dura e difícil, a de dar alma à um objeto.

Kai não respondeu, um gosto amargo subindo por sua garganta. 

O mundo fora da bolha ainda colidia e urrava, pronto para destruir tudo e a todos. Mas ali dentro, havia uma calma e paz inconfundível.

O homem suspirou, e as areias sob ele vibraram. Como se não estivesse esperando por uma resposta, e totalmente alheio aos pensamentos e sentimentos de Kai, o homem continuou.

— Somente grandes forjadores conseguem tal feito, e eles têm estado em falta nos dias de hoje… mesmo neste canto esquecido pelos deuses.

Havia algo nas palavras dele que faziam Kai querer parar e escutar. Essa calma e paciência com as palavras, o ar e tom de sabedor… quase faziam Kai aceitar suas palavras como verdade absoluta.

Mas dentro dele um turbilhão acontecia, colidindo tal e qual os grãos de areia da terrível Tempestade Cisca.

O sujeito estreitou os olhos sob o capuz, encarando a textura da bainha de Vento Noturno. Ela ainda vibrava densamente.

— Vejo, contudo, traços de uma vontade inocente e genuína no trato desta espada. Não era sua intenção dar voz à ela, era?

Kai suspirou, finalmente reagindo às palavras do sujeito. Estreitando os olhos, ele encarou-o enquanto o homem acariciava gentilmente a bainha negra. Não havia pressa no homem, ele não desejava uma resposta imediata. Parecia estar vivendo no seu próprio tempo.

Mesmo assim, contudo, ele não pôde deixar de erguer o rosto e fitar Kai, aqueles olhos dourados exalando algo escondido e misterioso. Esperava uma resposta.

Kai balançou a cabeça, voltando a si.

O homem assentiu, relaxando.

— Como supus.

De fato, como bem o homem percebeu, Kai não tinha intenção de dar à arma uma intenção. Ele sequer sabia como fazer isso.

Para Kai, que tudo era metódico e seguia uma linha de escola e raciocínio, dar uma intenção à um objeto era para fazer qualquer cético perder a sanidade.

Entretanto, com tudo que Kai tinha visto após Neve Sempiterna, ele estava pronto para deixar de lado o ar de ceticismo e entender que o mundo era grande, cheio de mistérios e loucuras que fariam qualquer um enlouquecer. Uma arma com espírito era apenas a ponta do iceberg.

Ele se remexeu sobre a areia, suspirando fundo.

— Você percebeu tudo isso apenas encarando minha espada?

O homem franziu a testa, e o canto de sua boca se curvou para cima. Ele soltou um inaudível “Oh?” e suspirou.

As finas linhas brilharam antes que ele falasse.

— De fato — Sua voz saiu calma e melodiosa. — Afinal, armas espirituais não reagem à força, e sim a ferreiros da alma.

Agora foi a vez de Kai soltar um leve Oh!. Ele inclinou a cabeça levemente, percebendo mais coisas.

No dia em que fez a lâmina, sua essência era uma só com seu propósito. Kai estava em processo de cura, libertação e lampejo do que a vida poderia lhe proporcionar. Contudo, eventualmente, ele se partiu. A lâmina sentiu a rachadura… e se calou.

Quando o homem tocou nela, talvez ela tenha reconhecido nele a mesma unidade que sentiu no instante em que nasceu. Por isso cantou.

Um entendimento alcançou Kai, e talvez tenha sido refletida em seu rosto, pois o homem suspirou novamente e sorriu levemente.

— Parece que compreendeu.

Sim… A espada não reconhecia força. Ela apenas lembrava de Kai… ou do eco que ele já fora um dia.

Era inegável dizer que, neste momento, Kai passava por um dos seus momentos mais sombrios.

Lembrando de quando era apenas um faz tudo para Enoryt Murphy, o mundo parecia ser mais colorido. Kai era menos antissocial e, talvez, mais despreocupado.

Com isso… não era que o homem tivesse poder demais. Vento Noturno não obedecia a força. Obedecia a vontade pura, aquela que molda o aço ao nascer. E, naquele momento, esse homem carregava exatamente aquilo que Kai perdera — um espírito inteiro, estável, silencioso e firme como uma duna antiga.

A espada reconheceu no homem a mesma natureza.

Por isso ela vibrou. Por isso ela o escolheu. E por isso, pela primeira vez, Kai teve medo do que criara.

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