Volume 2
CAPÍTULO 108: ALMA LATENTE
Talvez tenha sido a primeira vez em muito tempo que a mente de Kai ficou em silêncio.
Não havia vozes, nem sons indistintos. Apenas um silêncio indescritível e absoluto.
Também foi a primeira vez que ele dormiu de verdade, sem preocupação de nada.
Até mesmo dormindo ele era afetado por sonhos e pesadelos recorrentes. Sempre que dormia, era assombrado por tais coisas. Visões, memórias, lembranças. O que deveria ser um descanso, acabava sendo mil vezes mais cansativo, pois ele sempre era assolado por uma enxaqueca horrível e a sensação de cansaço mais forte.
Mas desta vez, não houve nada disso. Ele dormiu. Descansou. Ou pelo menos pensou que sim.
A mente humana sempre foi programada para aguentar um determinado limite em termos de pressão, por isso dormir sempre foi essencial, tanto fisicamente, quanto mental e espiritual.
Era praticamente certo que ele ruiria se não houvesse uma boa noite de sono, abdicando das responsabilidades e culpas ocultas no fundo de seu peito.
Foi bom… enquanto durou.
Porque no momento em que despertou, tudo retornou como uma avalanche – memórias, lembranças, sentimentos, a dor da perda, a dor da culpa, a dor física, mental… o rasgo espiritual que se aprofundou mais e mais…
Kai teve dificuldade para assimilar tudo num único instante, precisando de horas, talvez dias para finalmente compreender sua situação.
Sua mente estava latejando, e algo pulsava, como uma ferida entreaberta… algo no seu ser. Era a sua alma, sendo lentamente dilacerada.
Kai já recebera lacerações e eviscerações o suficiente para saber que nada no mundo se comparava a isso. Nem mesmo o vazio em seu peito.
Algo estava consumindo sua alma, e ele sabia exatamente o que.
Mas, no entanto, o que havia de novo? Era apenas mais um dia na vida de Kai Stone. Ele vinha se tornando expert em quanto poderia aguentar calado e sem reclamar. A potência com que seu corpo era atacado, estripado, cortado e quebrado era equiparada ao tanto com que ele conseguia suportar.
Kai era difícil de quebrar.
E, contudo, aqui estava ele, lutando contra o próprio corpo.
Não era nada físico. Mas era surpreendente como a mente de uma pessoa poderia exercer domínio sobre o corpo.
Tudo doía – desde a matéria fibrosa e dura da queratina de sua unha até o fio último do manto de seu alcorão mental. Somado à dor do espírito… tudo desvanescia lentamente, sem poupar nada.
Mas, novamente, ele se acostumara com isso. Já se esquecera do tempo em que era simples, até.
Talvez antes de realmente começar o treinamento com o velho Shiv…?
Sim… como poderia esquecer? Com a maldição, lembranças antigas eram como tivessem acontecido há poucos minutos. Não todas, apenas as essenciais.
E ele lembrava perfeitamente disso, porque era algo importante para ele.
Quando a dor amenizou o bastante para ele poder lidar com a agonia que assumia sua mente, Kai suspirou, deixando seus sentidos se habituarem normalmente…
Ele observou atentamente um teto abobadado e translúcido, mas claramente visível, separar uma Tempestade Cisca de si mesmo.
Do lado de lá, era tudo grãos em atrito e revoltos. Sons do vento uivando e de criaturas espreitando poderiam ser ouvidos atentamente, bastava se concentrar.
Mas do lado de cá… estava calmo como um quarto anti-ruído.
Havia um espaço de, no mínimo, uns 10 metros de área, sendo separado do resto do mundo.
O teto abobadado se curvava também dos lados, formando uma bolha… não, um bolsão de ar. Os grãos batiam e voltavam em suas paredes translúcidas, o chiado de areia batendo em vidro alto o bastante para Kai esquecer a realidade da situação.
Mas quem havia colocado aquilo ali? Ele havia caminhado por dias e semanas, e sequer encontrado ruínas – exceto a cidade perdida de Fireas, muito ao noroeste dali (se ele estivesse certo).
De repente um frio morno acendeu-se como uma lâmpada em sua mente. As sombras encapuzadas que ele viu antes de apagar…
Kai piscou, e observou na periferia de sua visão uma fogueira alta e seis figuras ao redor dela.
Todos permaneceram encurvados, mas calmos o bastante para ignorar o que acontecia ao redor do mundo.
Kai se levantou, caminhando até eles. Parando a alguma distância, se esforçou muito para não se mostrar apreensivo, exalando uma aparência indiferentemente pálida diante das seis pessoas… estranhas.
Realmente, eram muito estranhos. Kai já havia visto uma cota parcial de insanidade após deixar Algüros. E ainda assim, conseguia se surpreender.
Neste lugar, já havia visto pessoas estranhas por si só. Mas essas pessoas, eram unicamente singulares, destoando gravemente do resto.
Talvez fosse efeito da doença que assolou os reinos antes da Queda, talvez não.
Cada um deles usava mantos rasgados de tecido leve. Eles tinham uma presença distinta dos outros também.
Cada ser vivo possuía uma presença, e aqueles com afinidade profunda com a mana conseguiam sentir. Kai sempre teve a sensibilidade para saber que a presença de cada ser vivo era única, como o próprio dna e o ser.
Os Vitanti tinham sua própria presença, como se pertencessem ao mundo e o mundo à eles. Era devido ao fato de controlarem éter, força mor na criação do mundo e seu universo.
Os humanos possuíam também sua própria identidade e, com ela, sua aura, que muitas vezes podia revelar as intenções deles, como a vontade de matar ou não alguém.
Os troazianos tinham sua própria presença e aura, claro, assim como aquele Ministro, que se assemelhava bruscamente à ensandecida falta de filtro.
Mas estes sujeitos… era difícil colocar em palavras. Era como tentar explicar a cor do mundo para alguém cego ou os sons para alguém surdo. Não havia palavras para tal.
Entretanto, era como se tivessem atmosfera, a temperatura ao redor deles caindo alguns graus, indiferentes ao deserto além.
Todos o encararam, e ele teve dificuldade de manter o olhar muito tempo em cada um, ao mesmo tempo que queria mantê-lo.
A pessoa mais próxima a ele suspirou, e ele se virou para ela.
Era uma mulher de aparência jovem, corpo fino, alongado de musculatura marcada. Sua pele adquiria um âmbar claro. Franjas de areia se soltaram de seus ombros quando ela virou a cabeça.
Com o capuz baixo, ela o encarou profundamente. Seus olhos eram de um azul-lunar, intensos e acolhedores. Duas linhas verticais desciam dos olhos até a mandíbula, pintadas com fuligem. Havia um leve zumbido ao seu redor, como se o vento sussurrasse seu nome. O que era estranho, pois o lugar estava totalmente estático exceto pelo som da fogueira estalando.
Ela estava descalça, revelando dedos pintados de negro, exceto as unhas, que estavam brancas feito neve.
Sua boca se abriu, e sua voz criou vibrações de poeira no ar.
– Que bom que despertou – disse, calma e relaxada. Isso também dispersou a relutância inicial de Kai. – Espero que tenha conseguido dormir bem.
Kai assentiu lentamente. Isso que ele de repente estava experimentando agora… Uma calma ultrajante e protetora, como se as palavras dela tivessem exigido um momento de suspiro, afastando a tensão em sua alma rugindo.
Ele franziu a testa pálida, indiferente, mas por dentro urrando de uma curiosidade mista e cheia de indecoro.
A jovem inclinou a cabeça, franzindo a testa.
Kai sentiu como se estivesse em transe. Aqueles olhos, a pele dela, sua voz… tudo era de outro mundo e, no entanto, deste.
Erguendo o rosto, ele olhou de soslaio para as outras figuras, todas dispersas e distantes, como se vivendo cada uma no seu próprio mundo, com suas próprias presenças.
Estavam todos com seus rostos cobertos e, ainda assim, Kai não conseguia se concentrar em nenhum especificamente. Não conseguia processar nada e, ainda assim, uma presença parecia lhe convidar.
Estava do outro lado da fogueira, encurvado e com um braço apoiado no joelho.
– Vá. – Disse a jovem novamente, distante.
Kai assentiu, com um solavanco interno. Ele passou pela primeira figura após a jovem. Havia um cheiro de queimado vindo dele.
Um deles gesticulava para o nada, sua figura igualmente sombria.
Kai observou bem suas vestimentas, mas não conseguia manter muito tempo a atenção. Sua mente estava embaralhada.
Ele logo se aproximou da figura mais distante. O sujeito tinha dois metros, e era alto mesmo sentado no chão.
Usava uma túnica amarelo-queimado longa feita de mantos cerimoniais antigos, costurados uns aos outros como remendos de história. A bainha da túnica era irregular, como se tivesse parcialmente queimado. Na cintura, ele usava uma faixa de tecido marrom-avermelhado, segurando pequenos amuletos de vidro.
Ele estava sentado, curvado e abraçado em um cajado de madeira, como fragmentos de vidro fundido presos na ponta. Lembrava lágrimas endurecidas.
Antes, havia a sensação de que o vento não fluía. Aqui, no entanto, essa sensação se intensificava. Isso porque era como se ele, o vento, cessasse. Havia esse silêncio súbito, quase sobrenatural.
Kai não conseguiu manter o olhar sobre o homem, que era alto e longo feito uma sombra. Ele desviou o olhar para algo ao lado, contudo.
Uma bengala negra e uma bolsa descansavam gentilmente. Uma sombra perpassou o rosto de Kai, uma vontade sombria e tremenda refletindo em seus olhos negros. Claro, isso foi apenas por um segundo. No outro, ele estava resoluto e calmo como antes.
Por dentro, contudo, ele fervia com um suspiro acalentador. Afinal, era sua espada e, mesmo que estivesse bastante quieta nos últimos tempos, ele podia sentir sua vibração por baixo daquela bainha camuflada.
O sujeito ergueu o rosto, percebendo o olhar de Kai. Um capuz amarelo-queimado caía até o lábio superior, lançando sombra em metade de seu rosto.
Mesmo com a sombra, Kai tornou a focar no rosto do homem, observando suas feições. Sua pele era de um terracota escuro, marcada por fissuras finíssimas. Seus olhos… eram como dois círculos dourados-foscos brilhando no escuro, sem pupilas, feito miniaturas de sóis apagados.
Kai se arrepiou quando os olhares foram cruzados. Mas continuou indiferente, composto e resoluto. Não tinha medo, de fato, mas a visão deste homem era… bela demais, e singular também. Sua presença era calmante, apesar deste olhar que marcaria eras. Se algo, o homem despertou apenas a curiosidade latente de Kai.
O rapaz segurou o olhar por um tempo, mas desviou novamente, como se algo dentro dele alertasse para não fazer o que vinha fazendo há algum tempo.
Novamente, não era medo… apenas que o homem não seria alguém fácil de lidar. E, depois, não havia razão para um enfrentamento, vide que ele parcialmente tinha cuidado de Kai – e seus colegas também.
Kai não devia nada além de gratidão.
Estava curioso, contudo.
Ele não disse nada, sabendo que o olhar do sujeito ainda repousava calmamente sobre si. De repente era como quando criança, das vezes em que fazia besteira e era punido por sua babá.
– Uma lâmina espiritual – disse o sujeito, com uma voz baixa e calma que levantou poeira do chão. As fissuras finas brilharam em âmbar quando ele falou, feito brasas antigas respirando.
Sua voz era serrilhada e contida e, por um momento, pareceu que a Tempestade se acalmou, logo para urrar e grunhir novamente.
Kai suspirou, levando tempo para associar as palavras e, lentamente, observar Vento Noturno.
O estranho balançou a cabeça.
– Você a fez. – Não foi uma pergunta. Cada palavra dele era como uma afirmação factual de algo óbvio. – Vejo sua vontade nela.
Ele esticou o braço que repousava sobre o joelho – o esquerdo –, revelando uma espiral viva, um desenho ritual que dava a impressão de se mover muito lentamente, como duna mudando de forma.
Seus dedos longos e esguios, pintados de areia negra facilmente alcançaram Tirise, roçando em sua bainha camuflada.
Uma vibração como aço fervente sendo molhado surgiu, mas logo foi substituído pelo uivo de um vento melodioso e doce.
Vento Noturno estava… aceitando o toque do homem. Mais do que isso, estava irradiando sua própria vontade depois de muito, muito tempo.
Uma ruga surgiu na figura estática de Kai. Seus olhos se arregalaram um pouco, e sua boca ficou seca.
Tirise, isto é, Vento Noturno, havia ficado silenciosa desde que ele aceitou que a escuridão dentro dele tomasse forma. Não reagia mais ao seu chi, tampouco à sua intenção. Kai não a julgava. Ele achou que tinha algo errado com ele, e a reação da espada ao toque do homem confirmou isso.
Vento Noturno tinha sentimentos, afinal, e algo irritou-a ou magoou bastante.
De volta à Orquídea, quando ele foi pego na Ilusão Onírica, seu chi, sua própria mente e Amencer, a Espada do Amanhecer, juntaram suas consciências para ajudá-lo a escapar daquele feitiço.
Kai ainda se lembrava vagamente da forma que a consciência tomou.
Há muito tempo ele vinha suspeitando que Amencer era também uma arma espiritual, feita por algum deus esquecido.
Na época, Cineáltas, o nobre senhor de Pylpunt e pai de Fioled e Ómra, lhe contou o “mito” de criação de Amencer.
Forjada no monte Ifaísteio e esfriada no Rio aad-Ceilt, nas profundezas do mundo.
Na época, Kai riu internamente pois aparentemente havia sido feita por um Protetor, chamado Turgev. Após a batalha contra a Aliança Celestial Rebelde, o protetor jogou a lâmina na terra, e foi quando ela se perdeu na história.
Claro, agora ele acreditava um pouco na existência de protetores, mas ainda era um pouco abstrato demais pensar em uma guerra celestial acontecendo. Contudo, era inegável que o mito dava indícios sobre a criação da lâmina.
Armas espirituais existiam, desde que os forjadores colocassem sua vontade em sua criação. Isso queria dizer que Amencer era uma Arma Espiritual Divina, dado a natureza de seu criador…?
Absorto em pensamentos distantes, Kai observou enquanto o sujeito passeava os dedos sobre a bainha negra de Tirise, que fora criada para dar a falsa sensação de se parecer com um cajado ou bengala.
Apertando a outra extremidade, o homem puxou o cabo de sua bainha, facilmente revelando sua lâmina. Kai ficou estupefato, pelo simples fato de que a espada deveria atender somente ao seu comando, quando seu chi e sua intenção fossem despejados nela.
Duas veias surgiram na testa de Kai.
“Que diabos…”
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