Volume 1
Capítulo 7: O Silêncio Entre os Sonhos
Pov Ellie
Ellie abriu os olhos. A luz era fraca, filtrada por alguma janela próxima. Tudo parecia embaçado, como se o mundo ainda não tivesse decidido voltar a existir por completo. Tentou mover a cabeça, mas o corpo respondeu devagar, pesado, envolto por um calor alheio à própria pele.
O teto. Ela piscou outra vez.
Um teto... de madeira clara, rachado em alguns pontos. Por um instante, pensou:
"Meu quarto?"
Mas algo não se encaixava. O ar tinha cheiro de fumaça, de poeira. Não havia o som dos pássaros, nem o barulho do moinho do lado de fora.
— Onde... onde eu tô...? — murmurou, a voz fraca, rouca.
— Ellie...! — A voz rompeu o silêncio, embargada. — Minha filha!
Antes que entendesse, braços a envolveram com força. O corpo de Edran tremia, o rosto se escondia no ombro dela. Ellie piscou depressa, o susto misturou-se à confusão.
— Pa... papai...? — sussurrou. — O que... o que aconteceu...?
As palavras saíam devagar, arrastadas.
Ela tentava lembrar — o som da chuva, o fogo, o grito de alguém — mas as imagens surgiam partidas, trocadas, quase sem sentido.
Edran a olhou, mas desviou logo em seguida. O queixo dele tremeu, e o silêncio que se instalou disse mais do que qualquer resposta.
Ellie respirou fundo e levou a mão à cabeça. Uma pontada forte a fez apertar os olhos. Depois, por instinto, a outra mão subiu até o peito, onde o ar mal conseguia entrar.
— Eu... eu tive um sonho... — disse, com a voz se perdendo. — Um pesadelo... a vila... estava...
Ela parou. O som desapareceu. As lembranças voltaram em lampejos: fogo, lama, o céu escuro. Tentou negar, mas o corpo não reagiu.
— É... — murmurou, ao forçar um sorriso frágil. — Foi só um sonho... está tudo...
E então uma lágrima escorreu. Veio sem aviso, quente, atravessou o rosto e pingou sobre a coberta. Ellie a limpou depressa, quase irritada, mas outra surgiu, e mais uma, até que os dedos começaram a tremer.
— Lo... Louis... — sussurrou, o nome saiu quase mudo. — Ele...
Edran se aproximou mais. Os olhos dele estavam úmidos, vermelhos, cansados.
— Onde ele está...? — perguntou Ellie, com a voz trêmula.
Por um momento, Edran permaneceu imóvel. O silêncio durou tanto que parecia que o tempo esperava com ela pela resposta. Quando finalmente falou, a voz saiu baixa, áspera.
— Louis... não está mais conosco, querida...
Ellie o encarou. O som se apagou. Os lábios se abriram, mas nenhuma palavra saiu. O quarto girou, a visão voltou a embaçar. As lágrimas retornaram, muitas, e ela nem tentou contê-las.
O peito arfava, os soluços vieram sem controle. Tudo o que restava era o som abafado do pranto e o eco distante de um nome que jamais encontraria resposta.
Edran manteve o abraço por alguns segundos, enquanto buscava ar entre os soluços da filha. Quando conseguiu falar, a voz saiu rouca, quase falha.
— Mesmo depois de... — ele engoliu em seco. — Mesmo depois que ele se foi... o Louis ainda te salvou.
Ellie o olhou, sem entender.
— Acreditamos que... a pulseira... — continuou o pai, ao reunir forças. — Aquela que ele te deu... tinha uma pedra de cura. Quando te encontramos, ela brilhava... foi o que fechou seus ferimentos, o que manteve você viva. Por pouco... mas foi o bastante.
O olhar de Ellie desceu lentamente até o pulso. A pulseira estava ali, suja de sangue seco, a pedra agora rachada e opaca, como se tivesse gasto o último resquício de vida que possuía. Ela tocou o adorno com a ponta dos dedos, ao sentir o metal frio contra a pele.
E então o mundo ruiu por dentro.
— É... culpa minha... — ela murmurou, com a voz trêmula. — O Louis morreu... por minha culpa...
Edran tentou se aproximar, mas ela recuou.
— Ele veio por mim... — continuou, com o tom em ascensão, o corpo trêmulo. — Ele... ele me salvou... mesmo depois do que eu disse... mesmo depois de tudo!
A voz dela se quebrou no ar. Ellie cobriu o rosto com as mãos e chorou com força.
— Eu... eu mandei ele embora... e ele... — o som se dissolveu entre soluços. — Não... não...
Edran a envolveu de novo, apertou contra o peito, o corpo inteiro tremia.
— Não, querida... — sussurrou. — Não foi culpa sua... não diga isso...
Mas Ellie se debatia, tentava se soltar, o choro saía entrecortado, quase sem fôlego. As lágrimas escorriam pelo queixo e caíam sobre a camisa dele.
Até que, de repente, ela parou.
O corpo congelou.
O olhar distante, fixo em algum ponto invisível.
Uma ânsia subiu, o estômago se revirou, o coração acelerou sem aviso.
— O Glenn...? — murmurou, sem força. — Onde... onde ele tá...?
Edran a olhou, assustado com a mudança repentina no rosto da filha.
— Ele está bem, querida — respondeu depressa, ao tentar acalmá-la. — Foi ele quem encontrou vocês dois...
A respiração de Ellie ainda vinha descompassada, mas aos poucos o ar retornou. O olhar dela desceu de novo até o pulso. A pulseira permanecia imóvel, o brilho morto.
Ela a segurou firme, passou o polegar sobre a superfície riscada da pedra. As lágrimas voltaram, silenciosas, escorreram até o lençol.
“Louis...”
Pensou, com os lábios em movimento, sem som.
“Eu...”
Mais uma lágrima caiu, lenta, quente.
“...me desculpa, Louis...”
O quarto mergulhou em silêncio. Apenas o som suave da respiração dela e o vento contra a janela quebravam o ar. A luz do sol já atravessava as cortinas e tingia o teto com um tom pálido de manhã — um dia que parecia não merecer nascer.
…
Algum tempo passou. O sol mudou de posição, e a claridade se infiltrou pelas frestas e projetou faixas douradas sobre a madeira.
Ellie permaneceu deitada, os olhos fixos nas marcas do teto, e seguiu com o olhar o traço de poeira que dançava na luz. Não pensava em nada específico — apenas deixou o tempo escorrer por dentro dela, como se o corpo fosse um recipiente rachado.
Mas então, um pensamento surgiu. Leve, insistente, como uma brisa que não se deixa ignorar.
"Eu preciso ver... o Glenn..."
A morte rondava Eloria, e o luto parecia ter se instalado em cada parede. Mesmo assim, Ellie sentia que, se não fosse agora, talvez nunca mais tivesse coragem de ir.
Tentou se mover. O simples ato de virar o corpo espalhou a dor como fogo sob a pele. As costelas repuxaram, e uma fisgada aguda percorreu o ombro. Ellie cerrou os dentes, respirou fundo e tentou outra vez.
"Provavelmente só os ferimentos graves foram curados..."
Pensou, ao se sentar com cuidado. O ar frio do quarto arrepiou os pelos do braço.
Por um tempo, permaneceu ali, respirou fundo, com as mãos afundadas nos lençóis amassados, até reunir forças para se levantar. A cabeça latejava, as pernas tremiam, mas algo dentro dela não permitia que ficasse parada. Uma urgência silenciosa, como se o mundo estivesse prestes a mudar e ela não pudesse perder o momento.
Abriu o armário e pegou uma blusa qualquer. O tecido era simples, limpo, com cheiro de madeira e fumaça. Vestiu-se com calma, ignorou a dor e saiu de casa.
Lá fora, o ar estava fresco, o céu limpo — como se o mundo fingisse que nada havia acontecido. O vento soprava leve, levantou seu cabelo e trouxe o cheiro distante de terra molhada.
Ellie seguiu pela estrada de terra. O chão ainda guardava marcas da chuva da noite anterior.
Ao chegar diante da casa de Glenn, parou.
A fachada permanecia intacta, as janelas abertas, a madeira escurecida pelo tempo.
"Ainda bem que aqueles cavaleiros não vieram para essa parte de Eloria..."
Ellie hesitou por um instante diante da porta. O som leve de vozes distantes vinha de dentro da casa, mas cessou quando ela bateu. O coração acelerou, e por um momento, ela pensou em voltar — mas antes que pudesse, a tranca girou.
A porta se abriu devagar, e Reynolds apareceu.
O braço direito estava enfaixado até o ombro, preso por uma tipoia improvisada. A pele pálida, o olhar cansado. Ainda assim, havia algo firme na postura dele, uma espécie de dignidade silenciosa que resistia ao peso do que carregava.
— Senhor Reynolds... — Ellie disse, com esforço para ajeitar a voz.
Ele piscou devagar, como se demorasse um pouco para processar as palavras. Depois, um sorriso breve e cansado surgiu no canto dos lábios.
— Ellie... — respondeu, com um tom baixo e cheio de alívio. — Que bom que você está bem...
Ela assentiu, mas não sustentou o gesto por muito tempo. O olhar caiu para o chão, depois para o braço dele, enfaixado.
— O senhor... — começou, com cautela. — Se machucou?
Reynolds olhou o próprio braço e deu de ombros, um gesto pequeno, quase indiferente.
— Nada que já não tenha enfrentado antes. — Soltou um riso leve, mas a voz falhou no final. — Os ossos quebram... mas a gente ainda precisa levantar, não é?
Ellie tentou sorrir, mas a expressão não se formou direito. Havia algo pesado no ar, algo que nenhuma das palavras deles preenchia.
— Eu... si-sinto muito... — murmurou, e o som quase se perdeu entre eles. — Eu... não sei o que dizer...
Reynolds respirou fundo e balançou a cabeça.
— Está tudo bem, Ellie. — As palavras vieram lentas, sinceras. — Todos nós perdemos alguém... não foi?
Por um instante, o vento soprou pela abertura da porta e fez o pano da tipoia balançar. Reynolds desviou o olhar, fixou o chão e completou com a voz rouca:
— Veio ver o Glenn, não é?
Ellie assentiu de leve.
— Ele está no quarto dele. — Reynolds deu um passo para o lado e abriu passagem. — Pode entrar.
Ellie tentou sorrir, mas o gesto mal alcançou os olhos.
— Obrigada... senhor Reynolds.
— Não precisa agradecer, menina. — A voz dele suavizou. — Ele vai gostar de te ver.
Ela entrou. O cheiro da casa continuava o mesmo — madeira úmida, fumaça e algo familiar, reconfortante, que agora só fazia doer. Passou por Reynolds com um aceno curto, e ele ficou à porta, observando enquanto ela seguia pelo corredor até desaparecer da vista.
Quando a porta se fechou, o som pareceu mais alto do que deveria.
O coração de Ellie batia rápido, tão alto que ela o ouvia nos ouvidos. Cada passo ecoava pela casa como se o chão reclamasse do peso. O ar trazia cheiro de fumaça antiga, madeira úmida e algo que lembrava remédio. A cada movimento, o corpo pedia para parar — mas a mente não cedia.
"Será que fui rude...? — pensou, ao tentar focar no som dos próprios passos. — Ou egoísta...? Eles perderam o Louis... e eu..."
O corredor se estendia à frente, com pequenas frestas de luz atravessando as janelas.
Ela passou pela porta entreaberta do quarto de Louis.
Parou.
Vivian jazia sobre a cama do filho, o rosto escondido sob o cobertor que ele costumava usar. O tecido subia e descia com a respiração dela. Os cabelos desgrenhados, as mãos apertadas no pano como se quisessem impedir que o tempo o levasse também.
Ellie permaneceu imóvel por alguns segundos, o coração preso na garganta.
Aquela cena a paralisou de um jeito estranho — como se olhasse algo sagrado, que não devia ser interrompido.
"Louis morreu..."
"Ele realmente… morreu."
O ar pesou depois disso.
Mas, entre a dor, algo nela se moveu — uma lembrança.
O rosto de Glenn, a chuva, o toque rápido de uma mão quente que segurou a dela antes de tudo escurecer.
"Eu preciso vê-lo..."
O corpo reagiu com uma vontade que ela não soube explicar.
"Assim como ele me ajudou... eu quero ajudá-lo também."
"Assim como ele me ajudou com minha mãe..."
Ela seguiu adiante.
O corredor levava até o quarto dele. A porta fechada, a madeira marcada pela umidade. Ellie parou diante dela, hesitou por um instante.
— Glenn...? — chamou, com um toque leve na madeira. — É-é a Ellie...
A voz dela pareceu pequena demais para atravessar a porta.
O coração batia descompassado.
"Louis... ele morreu me protegendo..."
O pensamento voltou, frio, cortante.
Ela bateu mais uma vez.
Nada.
— Glenn...? — tentou de novo, agora com mais firmeza.
O silêncio devolveu apenas o som distante de algo tocando o telhado.
"Ele deve estar dormindo... é, só isso... dormindo..."
Esperou alguns segundos e bateu pela terceira vez.
O som ecoou e morreu ali mesmo.
"O irmão dele morreu me protegendo..." — repetiu em pensamento. — "O irmão... do Glenn... o meu amigo...."
As mãos começaram a tremer.
— Ele deve me odiar... — concluiu, sem perceber que sussurrava. — É justo. Eu não conseguiria olhar pra mim também.
O peito apertou, e uma lágrima escapou antes que ela conseguisse contê-la. Caiu no chão e se misturou à poeira. Ellie levou a mão à porta, pronta para bater mais uma vez, mas a outra subiu e segurou seu pulso.
Ela ficou parada, imóvel, como se o corpo travasse entre o impulso e o arrependimento.
O ar dentro da casa não se movia.
Por um instante, tudo o que existia era o som distante do vento nas janelas e o coração batendo alto demais dentro dela.
Soltou a respiração presa e recuou um passo.
O corredor parecia mais escuro agora. Passou novamente diante do quarto de Louis, sem olhar para dentro, e seguiu até a saída.
Ao abrir a porta, o vento frio da manhã a atingiu. O ar de fora trazia cheiro de campo molhado e folhas novas. Por um segundo, ela respirou fundo e tentou engolir o nó que subia pela garganta.
Então saiu.
Devagar.
O som dos passos se perdeu atrás dela, junto com tudo o que não teve coragem de dizer.
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