Volume 1
Capítulo 8: O Peso de Ficar
Pov Glenn
Os passos de Ellie se afastaram da porta, e o som se tornou cada vez mais distante, até desaparecer por completo. Glenn continuou deitado, o olhar preso no teto, o corpo imóvel. A respiração saía irregular.
Suspirou.
— Eu não acho que estou pronto pra vê-la... — murmurou, a voz baixa, quase um sopro. — Não conseguiria olhar pra ela... não depois de tudo...
Fechou os olhos.
A lembrança veio rápida, cruel. Ellie inconsciente em seus braços, o corpo leve, o sangue que escorria, e a voz fraca dela, trêmula, perdida entre um fio de vida e outro.
"— ...você prometeu... me salvar... — ela sussurrava. — ...se eu... estivesse em apuros..."
O som ecoou na cabeça dele como uma lâmina. Glenn pressionou o rosto com as mãos, os dedos cravados na pele.
— Eu não consegui... — disse baixinho. — Não consegui proteger ela... nem o Louis...
A voz falhou.
Engoliu o ar e continuou.
— Eu só fugi... não foi?
O vento entrou pela janela entreaberta e mexeu as cortinas. A luz do fim da tarde atravessava o quarto em linhas douradas, cortava o chão em pedaços de sombra. Glenn se virou de lado e encarou o canto vazio do quarto.
— Você morreu por ela... — murmurou, com um sorriso que doía. — Como um herói. E, no fim, eu aposto que ela percebeu que escolheu a pessoa errada pra protegê-la, não é...?
Riu, mas o som não durou. Morreu na garganta, como tudo o que tentava sair.
— Você me pediu pra ir — disse, com a voz firme, mas baixa. — Disse que ia dar tudo certo. E eu... eu acreditei. Como um idiota. Como um covarde. Como alguém que preferiu acreditar porque era mais fácil do que admitir que tava com medo.
O peito subia e descia rápido agora.
— Você tava ali, na minha frente, implorando sem dizer nada. E eu quis acreditar... porque era o que eu sempre fiz. Fingir que as coisas iam se resolver sozinhas.
Ele passou a mão pelos cabelos e apertou a cabeça, como se quisesse arrancar o pensamento à força.
— E agora você tá morto. E eu tô aqui. Com essa merda desse silêncio.
As palavras saíam quebradas, o tom oscilava entre raiva e cansaço.
— Eu devia ter ficado. Devia ter te seguido. Devia ter dito “foda-se o que você quer, eu não vou te deixar sozinho.”
O olhar dele se perdeu.
As mãos tremiam.
— Mas eu fui. — A voz era quase um sussurro agora. — Eu deixei você morrer.
O vento aumentou. A cortina bateu devagar. Glenn permaneceu ali, com os olhos fixos no tecido que balançava.
— Morrer parece ter sido a melhor opção agora... — continuou. — Porque agora eles me olham como se eu fosse só mais um sobrevivente. Mas eu não sobrevivi, Louis. Eu só fiquei.
Fechou os olhos.
— E ficar... — o som saiu rasgado, do fundo da garganta. — Ficar é a pior parte.
A respiração dele pesava, e o último raio de sol desapareceu pela janela, deixando o mundo escuro outra vez. Glenn permaneceu sentado, imóvel, como se o corpo não soubesse mais como se levantar.
“Podia ser só um sonho. Daqueles que somem quando o dia começa.”
Mas o dia já tinha passado. E nada tinha sumido.
Ele respirou fundo e saiu do quarto.
O corredor parecia mais longo. Cada passo fazia a madeira ranger. Quando chegou perto da porta entreaberta do quarto de Louis, parou. Não porque quis. Mas porque o corpo travou.
Lá dentro, ouviu a voz de Vivian. Baixa. Quase sem força.
— Eu vou ter que aprender a respirar sem ele também? — disse, olhando pro teto. — Como é que faz isso, Reynolds? Me diz. Porque eu não sei mais.
Reynolds estava ajoelhado ao lado da cama. O braço enfaixado descansava sobre o colchão. Tremia.
— Viv...
Ela continuou.
— Quando eu estava grávida da Rys — falou, com um sorriso pequeno, cansado —, eu conversava com ela toda noite, como se ela pudesse ouvir. Prometi que ela ia conhecer este mundo, mesmo que fosse frio, mesmo que fosse feio. — Fez uma pausa. — Mas ela não conheceu nada.
Reynolds não respondeu. Só ficou ali. Quieto.
— E agora o Louis também. — A voz dela falhou, mas ela seguiu. — Eu cuidei dele com tudo. Mesmo nos dias em que eu não tinha nada. Dei tudo. Tudo, Reynolds.
Ela apertou o cobertor.
— E mesmo assim ele foi embora. — Riu. Um riso curto, sem força. — Então me diz... onde foi que eu errei?
Reynolds abaixou a cabeça.
— Você não errou.
Vivian virou o rosto pra ele. Os olhos vermelhos. Sem lágrima nenhuma.
Era pior assim.
— Então por que só sobrou esse vazio? — perguntou, sem levantar a voz. — Por que parece que arrancaram alguma coisa de mim e deixaram o buraco aberto?
Reynolds tentou tocar o rosto dela. Ela desviou. Não com raiva. Com cansaço.
— Eu tô cansada, Reynolds. — Fechou os olhos. — Cansada de tentar manter viva uma parte de mim que o mundo insiste em matar.
Ele puxou ela pra um abraço. Firme.
— Eu sei.
Vivian não resistiu. Mas também não retribuiu.
Era aquele tipo de abraço que não consola.
Só segura a queda.
Glenn continuava na porta. Imóvel. As mãos ao lado do corpo. A garganta apertada. O ar, quente demais.
Não havia espaço pra ele ali. Nenhuma palavra servia. Nenhuma desculpa cabia.
Desviou o olhar. Deu um passo pra trás. Depois outro.
Reynolds saiu do quarto e puxou a porta com cuidado. Ficou ali, parado, com a mão na maçaneta. Não parecia saber se devia soltar ou segurar. Respirou fundo, mas o ar entrou falhado.
Glenn estava no corredor. Os olhos se encontraram por um segundo — tempo suficiente para tudo e nada acontecer.
Reynolds esboçou um sorriso. Pequeno. Frágil. Um gesto que parecia mais reflexo do que intenção. Não era felicidade. Nem consolo. Era só... tentativa.
— Está com fome? — perguntou, com uma voz limpa demais, como se não houvesse nada errado.
Glenn balançou a cabeça. Não respondeu. Não desviou o olhar.
— Certo. — Reynolds disse. E só isso. Não insistiu. Não tentou preencher o silêncio. Passou pelo Glenn.
Foi nesse movimento que Glenn viu.
O olhar.
Não era culpa. Nem raiva. Nem julgamento.
Era ausência.
E isso doeu. Doeu como se tivesse sido dito em voz alta.
Reynolds não percebeu. Ou percebeu e não soube o que fazer. No fim, dava no mesmo.
Glenn ficou ali. Parado. A respiração curta, como se o ar tivesse engrossado.
Depois caminhou até a porta da frente e saiu.
O cheiro de chuva ainda estava no ar. As nuvens baixas deixavam tudo com uma luz azulada, quase fria. A vila parecia suspensa.
No suporte, as espadas de treino. Glenn pegou a de Louis sem pensar. A mão foi sozinha.
Era leve. Ridiculamente leve. Louis sempre dizia que ia trocar por uma de verdade. Um dia.
Glenn olhou para o cabo, esperando que alguma coisa viesse — uma lembrança, uma frase, qualquer coisa que justificasse aquele momento. Mas nada aconteceu. Nenhum pensamento se formou. Nenhuma imagem apareceu. Só o calor subindo pelo rosto.
O olho direito tremeu. A primeira lágrima caiu sem som. A segunda veio logo depois, pesada. Os ombros cederam, como se o corpo tivesse esquecido como se mantém de pé. Ele tentou respirar fundo, mas o ar saiu falhado, e um som escapou — não foi um grito, não foi um lamento. Foi o som de alguém tentando continuar. E falhando.
A espada escorregou das mãos. Não por raiva. Não por impulso. Mas porque ele simplesmente não conseguiu mais segurá-la. Ela caiu com um estalo seco na terra, um som pequeno demais para o peso que carregava.
Glenn ficou ali, parado. As mãos vazias. Nenhuma palavra saiu. Nenhum pensamento se formou. Só o espaço onde Louis deveria estar. E o silêncio que ele deixou.
Passos escoaram pela grama. Reynolds se aproximou, devagar. O som era leve, mas bastou para puxar Glenn de volta. Ele virou o rosto — e aquele olhar, o mesmo de antes, o mesmo silêncio, o mesmo vazio — bateu mais forte dessa vez. Algo dentro dele se mexeu.
Reynolds parou perto da espada caída. Se abaixou e a pegou, passando a mão pelo cabo, como quem reconhece um objeto que já segurou antes.
— Você quer tre...
— Por que você tá falando comigo como se nada tivesse acontecido? — Glenn cortou. A voz saiu baixa, mas firme.
Reynolds não respondeu de imediato. Apenas ficou ali, com a espada nas mãos. Quando falou, a voz veio calma, mas trincada por dentro — como madeira antiga cedendo ao peso.
— Você quer que eu grite? — perguntou. — Que eu quebre essa casa inteira? Que eu desabe na frente da Vivian, quando ela mal consegue respirar? Você quer que eu te dê isso, Glenn?
Glenn levantou o rosto. Os olhos vermelhos. As mãos tremiam um pouco.
— Eu quero que você diga que me culpa — ele disse. — Porque quando eu olho pra você… ou pra ela… é isso que eu vejo. Sempre.
Reynolds permaneceu quieto.
— Porque eu fui embora. — Glenn continuou. — Porque eu deixei ele ir atrás da Ellie… ele disse que tava tudo bem… que não precisava de mim… e eu acreditei. Eu deixei ele ir. Eu deixei ele ir sozinho.
As palavras começaram a sair mais rápido. Não dava mais pra segurar.
— Ele sempre diz que ia dar um jeito. Sempre fala isso. Sempre fala como se fosse fácil. Eu… eu devia ter ido. Eu devia ter falado não. Eu devia ter ficado. Eu devia ter dito alguma coisa. Qualquer coisa. Mas eu só fui. Porque era mais fácil. Porque eu… — a respiração falhou — porque eu fiquei com medo.
A voz dele quebrou. Só um pouco.
— Eu deixei ele morrer.
Silêncio.
Reynolds deu dois passos.
Mas não rápido.
Ele ficou diante de Glenn. Não tocou. Apenas falou, baixo, direto, sem desvio:
— Glenn. O Louis não morreu sozinho.
Glenn piscou.
Como se a frase não fizesse sentido.
Reynolds continuou, a voz firme, mesmo quebrada:
— Ele morreu sabendo que salvou quem ele queria salvar. Ele morreu fazendo exatamente o que ele escolheu fazer. Ele não te pediu pra ficar porque, se você tivesse ficado, teria morrido também. E ele nunca… — a voz vacilou um instante — nunca ia te deixar morrer no lugar dele.
Glenn ficou imóvel.
A respiração curta.
Os olhos brilhando.
Reynolds deu mais um passo.
O suficiente para que Glenn não pudesse fugir do olhar.
— Se você tivesse ido — Reynolds disse — eu estaria enterrando dois filhos. E a Vivian não estaria viva agora. E nem a Ellie.
Glenn finalmente respirou. E o corpo cedeu. Não caiu, mas sentiu faltar algo que o mantinha erguido.
Reynolds ficou em silêncio por um tempo. O cheiro de chuva ainda pairava no ar, trazido pelo vento que tornava tudo mais úmido, mais lento.
— Você passou por muita coisa também — disse ele, enfim. A voz saiu baixa. — E ainda assim… está aqui.
Glenn levantou os olhos. Devagar. Como se não soubesse se queria ouvir o resto.
— Perder meu filho… — Reynolds continuou, e a frase ficou suspensa por um segundo. — É difícil. De um jeito que eu nem sei explicar. Mas… — ele respirou fundo — eu não perdi tudo.
Ele levantou a mão e pousou no topo da cabeça de Glenn. Um gesto antigo, de quando Glenn ainda era só um menino correndo pelos quintais de Eloria, com os joelhos ralados e o mundo inteiro pela frente.
— Eu ainda tenho você. E a Vivian. — O sorriso que veio era pequeno, cansado. — Minha família.
Glenn não se mexeu. Não por frieza. Mas porque não sabia o que fazer com aquilo.
Reynolds não insistiu. Só deixou a mão ali por mais um instante, depois recuou.
— Temos que continuar — disse. — Não importa o que aconteceu. A gente vive. E segue.
Por um momento, tudo parou. Não havia som, nem movimento — só a presença deles, suspensa no ar.
— O que você quer fazer agora? — Reynolds perguntou.
Glenn olhou para o chão. Depois para a própria mão, trêmula. Respirou devagar, como se cada movimento exigisse esforço. Estendeu o braço e pegou a espada que Reynolds segurava. Apertou o cabo com força, como se aquilo fosse tudo o que ainda podia segurar.
— Eu… — a voz falhou, mas ele não parou. — Eu quero ficar mais forte.
As palavras saíram baixas, mas firmes.
— Eu preciso de força — repetiu. — Mas eu não sei se consigo. Só sei que não quero mais ficar parado. Não quero só chorar. Não… não de novo.
Reynolds o encarou.
— Entendo — disse. — Não tem como voltar. Nem como consertar.
Ele deu um passo à frente. O olhar sério, firme, como pedra.
— Então usa isso. A raiva. A dor. A parte que você não consegue perdoar. Se é isso que sobrou… transforma.
Glenn apertou a espada com mais força. O maxilar travado. O olhar fixo em algum ponto que não estava ali.
Reynolds completou:
— Deixa isso te mover. Nem que seja só por agora.
O vento soprou, levando o cheiro de chuva embora. Glenn não respondeu. Não precisava. Ficou ali, espada na mão, respiração lenta, olhos ainda vermelhos — mas firme.
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