A Herança dos Caídos Brasileira

Autor(a): Vannitas


Volume 1

Capítulo 2 — O Peso do Que Não Se Diz

— Sabe… amanhã, na comemoração… — disse Louis, a voz firme, suficiente para parecer verdadeiro. — Eu vou me declarar pra Ellie.

O silêncio que veio depois não foi vazio. Foi denso.  

Como se o ar entre eles tivesse engrossado, carregado de algo que nenhum dos dois queria tocar.

Louis não sorriu. Glenn apertou o maxilar, os ombros rígidos, o olhar preso em algum ponto que não era Louis — nem o chão.

— Por que está me dizendo isso? — perguntou, a voz baixa, firme, mas com algo quebrado por dentro.

Louis não respondeu. Nenhum músculo se moveu. Só o som do vento lá fora, e o estalar lento da madeira sob os pés — como se a casa também estivesse esperando.

Os segundos se arrastaram.  

Longos demais.  

A resposta não vinha.

E antes que o silêncio se tornasse insuportável, passos ecoaram do lado de fora.  

A porta se abriu com um rangido suave.

— Chegamos! — anunciou Tia Vivian, com o tom alegre de quem traz o mundo de volta à vida.

A casa se encheu de movimento. Vivian atravessou os cômodos com um cesto nos braços, o perfume de flores e pão fresco a seguindo.

— Adivinha quem encontramos no caminho? — continuou, sem esperar resposta. — A Ellie! E ela está lindíssima, meu Deus, aquela menina…

Parou no meio da frase. 

O olhar dela percorreu o ambiente, e se deteve nos dois — parados, frente a frente, no centro da sala, a tensão quase visível.

Reynolds entrou logo atrás, tirando o casaco pesado dos ombros.

O silêncio na casa parecia novo agora — diferente.

Vivian arqueou uma sobrancelha, o semblante mudou.

— Está tudo bem? — perguntou, a voz mais suave.

Glenn se virou para ela. Os olhos verdes da tia o observavam com atenção, e a expressão preocupada combinava com o brilho castanho-avermelhado dos cabelos soltos.

Antes que ele respondesse, Louis se adiantou, rápido:

— Tá tudo bem, mãe. — disse enquanto forçava um sorriso. — Eu só estava tentando convencer o Glenn a ir comigo amanhã ao festival. Mas, sabe… ele não parece se importar muito. Mesmo sendo um dia importante pra mim.

O olhar de Glenn endureceu por um instante.

Havia peso nas palavras — não pela frase em si, mas pelo que ela carregava escondido.

A lembrança do quase-beijo cintilou, rápida, e desapareceu entre o som do vento e o olhar desviado de Louis.

Glenn sorriu de canto, num esforço mal disfarçado.

— Festival, huh? — murmurou. — Pra ver você tropeçar no próprio pé na frente de meio vilarejo? Acho que prefiro dormir, obrigado.

Vivian soltou uma risada e cruzou os braços, com aquele ar teatral de mãe que já conhece todas as desculpas.

— Tropeçar ele vai de qualquer jeito. — disse, com um sorriso divertido. — Mas, Glenn, se você não for, quem vai ajudar a levantar o pobre coitado depois?

Reynolds soltou um riso abafado atrás dela.  

— Ela tem razão, garoto — disse, pendurando o casaco. — O Louis vai precisar de um curandeiro… e talvez de um coveiro, se insistir em lutar amanhã.

— Pai! — protestou Louis, vermelho.

Vivian balançou a cabeça, ainda rindo.  

— E olha que o dia nem começou. Mas Louis já tá colecionando previsões de desastres.

O riso preencheu o ar.

O vapor ainda pairava no ar após o banho, colado na pele. Glenn atravessou o quarto em silêncio. O chão rangeu sob os pés descalços.

Sentou-se à beira da cama, o cabelo ainda úmido que pingava sobre as mãos.

A lamparina no canto balançava com o vento, e as sombras dançavam pelas paredes — subiam, caíam, desapareciam.

As palavras de Louis ecoavam, uma única linha repetida, firme como ferro.

“Eu vou me declarar pra Ellie.”

O som do próprio fôlego pareceu alto demais.

Glenn passou as mãos pelo rosto, os dedos apertando as têmporas. Ficou assim por um tempo. Depois soltou o ar, longo, e caiu de costas no colchão.

O tecido quente o abraçou; o teto girava devagar. A respiração vinha curta, errada.

“Por que ele disse aquilo… daquele jeito?”

O pensamento veio seco, como uma pontada.

Os olhos se fixaram no teto, mas a mente ainda estava lá fora — entre as luzes, o vento, e o quase toque que não aconteceu.

Um músculo no maxilar se contraiu. As mãos, imóveis sobre o peito, denunciavam o coração.

Virou de lado. A cama gemeu sob o peso.

A imagem dela voltou. Os olhos verdes. O rosto próximo. O quase.

“Será que ele viu?”

Glenn fechou os olhos com força. O lençol arranhou levemente o braço.

Louis sorria, treinava, falava dela — tudo piscou na memória como lampejos

“Louis sempre a amou.”

— Louis é meu irmão… — murmurou, baixo, como quem tenta se convencer. — Eu não posso…

Ele ficou imóvel. O som de uma carroça distante cruzou a rua.

A lamparina oscilou. No reflexo da chama, o quarto parecia menor.

Glenn respirou fundo, devagar. O corpo se encolheu um pouco mais.  

O vento entrou pela janela, frio, e apagou parte da luz.

O sono veio tarde, mas veio. Quando a luz atravessou as cortinas, o quarto já estava morno, e o cheiro de sabão ainda pairava no ar.

Glenn abriu os olhos devagar. O mundo parecia calmo demais, como se a noite anterior tivesse sido um sonho pesado que o corpo ainda não esquecera.

Batidas leves na porta.

— Pode entrar. — disse, a voz arrastada.

A madeira rangeu, e Tia Vivian entrou com o rosto banhado pela luz da manhã.

— Bom dia.

— Bom dia, tia. — respondeu, erguendo-se.

Ela apoiou o ombro na moldura da porta, o olhar curioso.

— Tem certeza de que vai ficar trancado aqui o dia inteiro? Seu tio e o Louis já foram pro festival.

Glenn coçou o pescoço, ainda meio sonolento.

— Acho que vou ficar, sim.

Vivian suspirou e cruzou os braços.

— Claro. E eu, uma pobre mulher indefesa, vou atravessar a vila sozinha, cercada por gente apressada, barracas de comida e vendedores insistentes. — Ela fez uma pausa dramática. — Se eu desaparecer, diga que lutei com bravura.

Glenn arqueou uma sobrancelha e conteve o riso.

— Tia, isso se chama chantagem emocional.

— Eu prefiro “convite carinhoso”. — retrucou, com um sorriso vitorioso. — Mas tudo bem, se quiser perder os doces de maçã e as luzes novas da praça, o problema é seu.

Ele riu, finalmente.

Mas o riso não durou.

A lembrança da noite anterior voltou — o toque, o quase, o nome dela sussurrado na escuridão. Glenn respirou fundo. Ficou olhando o chão por alguns segundos, como se esperasse encontrar ali uma resposta.

Não queria perder. Nem para Louis, nem para ninguém.  

A verdade estava ali — pequena, dura, alojada no peito como uma pedra.

"Eu quero vê-la."

— Vamos, tia. — disse, a voz mais firme. — Acho que eu quero ir.

Vivian piscou, surpresa.

— É mesmo? — sorriu. — Então se apresse, antes que eu desista e leve o gato no seu lugar.

— Já estou indo. — respondeu, e pegou a camisa pendurada na cadeira.

Vivian saiu com uma risada leve. Os passos se espalharam pelo corredor.

Glenn permaneceu ali, por um instante só, vendo a luz da manhã dançar no chão.

O ar parecia outro — como se carregasse algo que ele ainda não sabia nomear.  

Não era arrependimento. Nem culpa.  

Era só a certeza de que não suportaria ficar longe dela.

O caminho de terra que levava ao centro da vila estava coberto de folhas secas e pétalas espalhadas.

O ar se encheu de um perfume doce que vinha das janelas enfeitadas

Vivian ia à frente, com as cestas penduradas nos braços.  

— Bom dia, dona Liane! — acenou. — As flores estão lindas hoje, hein!

Virou-se um pouco, falando baixo para Glenn:

— É o marido dela quem rega, mas ela jura que é talento.

Glenn riu.

Mais à frente, um homem acenou apressado.

— Senhor Harven! — chamou Vivian, animada. — Diga à sua esposa que a torta dela ainda me assombra nos sonhos!

O homem gargalhou, e Vivian caminhou com a familiaridade de quem conhecia cada pedra do caminho.

As pessoas pareciam gostar dela de graça.

Glenn observou tudo, as mãos nos bolsos.

— Acho que não tem uma alma viva nessa vila que não goste de você.

Vivian ergueu o queixo, fingindo orgulho.

— Ora, meu bem, fama vem junto com o talento… e com uma torta de maçã imbatível. — piscou pra ele.

Glenn riu, mas o riso se desfez rápido.

— Posso te perguntar uma coisa, tia?

Ela respondeu sem virar o rosto:

— Desde que não envolva política… ou a receita da minha torta.

Ele balançou a cabeça, divertido.

— Não é nada disso. É mais sobre… pessoas. Sentimentos, talvez.

Vivian interrompeu o passo, inclinou a cabeça e deixou escapar aquele sorriso que dizia mais do que palavras.

— Ah, entendi. — cantarolou. — Meu garotinho tá apaixonado

Glenn suspirou.

— E é por isso que eu nunca falo nada pra você.

Ela segurou a risada e fez força para parecer séria.

— Tá bom, tá bom. Prometo me comportar. — levantou as mãos, rendida. — Pode falar.

Ele hesitou e olhou para o chão.

— Como é que a gente sabe que gosta de alguém? De verdade?

Vivian arqueou uma sobrancelha.

— “Gosta” como? De conversar? De cuidar? De não querer que a pessoa vá embora?

Glenn pensou por um instante.

— De tudo isso, talvez.

Ela ficou em silêncio por um momento. O vento bagunçou os fios ruivos de seu cabelo, e ela olhou para o céu antes de responder.

— Se lembrar dela dá aquele aperto… mesmo quando foi só um momento… — disse, num tom calmo. — Se o silêncio te leva direto pra ela, sem esforço, então não tem mais dúvida.

Glenn abaixou o olhar e chutou uma pedrinha.

Vivian observou o gesto, o sorriso voltou aos lábios.

— Mas você já sabia disso, né?

Ele deu de ombros, sem encarar.

Ela riu e balançou a cabeça.

— Crescendo e ficando bonito… isso me dá rugas e orgulho ao mesmo tempo.

O vento quente cruzava a rua e trazia o aroma de pão doce e madeira queimada das barracas.

Vivian seguia em passos lentos, os olhos vagavam pelas decorações que tremulavam entre as casas.

— Sabe, Glenn… — começou, depois de um silêncio tranquilo. — A gente não escolhe por quem o coração resolve bater.

Ele ergueu os olhos, curioso.

— Mas a gente escolhe o que faz com isso. — Ela concluiu, enquanto ajeitava o lenço sobre o ombro. — Fingir que não sente é o mesmo que se trancar pra fora da própria casa.

Glenn não respondeu. O som das vozes, mais adiante, se misturava ao estalar das fitas no vento.

Vivian olhou pra ele de lado.

— Você tem esse jeitão fechado, de quem carrega o mundo nas costas. — disse, leve. — Mas quando se trata de sentir, meu bem… não dá pra viver escondendo tudo.

Ela sorriu, sem tirar a doçura da voz:

— Não tem problema ser um pouco egoísta. Às vezes, o coração precisa disso pra continuar firme.

Glenn parou. O olhar ficou preso ao chão.

— Mesmo que isso acabe machucando alguém que eu amo? — perguntou, quase num sussurro.

Vivian se virou devagar. Por um instante, os olhos dela suavizaram — o tipo de olhar de quem entende sem precisar ouvir explicação.

— Glenn… — disse baixinho. — Eu acho que amar sempre dói um pouquinho. A diferença é por que a gente aguenta essa dor.

Ele respirou fundo.

— Eu gosto da Ellie. — confessou, enfim.

Vivian piscou, surpresa, e deixou escapar um riso curto, cheio de ternura.

— Até que enfim alguém disse em voz alta.

Glenn abaixou a cabeça, sem jeito. 

Ela cruzou os braços, provocativa:

— E então? Vai ficar parado, esperando outro menino se declarar no seu lugar?

— Não é tão simples. — disse ele. — O Lo....

Vivian ergueu a mão e o cortou.

— Amor nunca é simples. — respondeu. — Mas também não é covardia.

Glenn tentou disfarçar o sorriso que escapou.

Vivian aproveitou e deu dois socos no ar, teatral:

— No meu tempo, os garotos resolviam essas coisas na marra.

Ele riu e balançou a cabeça.

— Isso seria uma péssima ideia.

— Eu sei. — respondeu, divertida. — Mas ia ser engraçado.

O riso deles se perdeu na estrada por um momento.

Então ela pousou a mão sobre o braço dele, o olhar calmo e firme.

— Só… não deixa o medo decidir por você, tá? — disse. — Seja lá o que acontecer, eu só quero ver você feliz.

Glenn a olhou nos olhos e assentiu, sem dizer nada.

Vivian sorriu.

— Então vai. — falou, com suavidade. — Antes que seja tarde.

Ele respirou fundo e começou a correr.

Vivian ficou ali, observando a silhueta dele se afastar, com a cesta pendurada no braço.

O sol se filtrava entre as árvores, dourando os cabelos dela quando murmurou, quase num sussurro:

— Me perdoa, Louis… mas o Glenn também é meu filho. — Fechou os olhos e sorriu. — Todo mundo merece a chance de amar… e de ser amado.

 

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