Volume 1
Capítulo 1 – Três Ecos de Infância
— Vão me fazer esperar até que horas?
O coração de Glenn, que já batia rápido, perdeu o compasso. O som preencheu o ar como uma nota que só ele parecia ouvir. Por um segundo, teve medo de que Louis notasse o tremor leve em sua respiração.
Louis se virou imediatamente, o rosto abria num sorriso.
— Ellie! — exclamou, reconhecendo-a de longe.
Ela estava no alto da colina.
A luz do sol a envolvia inteira, e por um instante parecia que o vento existia só para brincar com os cabelos dourados dela. O vestido claro se movia junto, leve, como se cada dobra tivesse vontade própria.
A distância não escondia o brilho nos olhos — aquele mesmo brilho que, anos antes, ela usava pra desafiá-los no treino. Mas agora havia algo diferente. Uma graça que não cabia mais na menina que chutava escudos.
Louis correu em direção a ela com os braços abertos, o riso livre cortando o ar. Ellie o recebeu com o mesmo entusiasmo — riu alto, girou sobre os próprios pés, como se o tempo tivesse parado para os dois.
Glenn permaneceu onde estava.
O maxilar estalou — seco, involuntário — como se o corpo tentasse reagir antes da mente.
Os segundos se esticaram.
Longos demais.
Como se o tempo tivesse se rendido àquela imagem: os dois abraçados, encaixados com uma intimidade que doía.
O som abafado das risadas, o farfalhar das folhas, o calor do sol nas costas — tudo parecia conspirar para que aquele instante durasse mais do que devia.
Ellie jogou a cabeça para trás.
A risada explodiu, clara e viva. Os cabelos dourados se abriram no ar como labaredas dançando com o vento.
Era como se a natureza soubesse que ela nasceu para seguir em frente — enquanto ele, parado ali, ainda tentava entender o que havia ficado para trás.
Glenn caminhou até eles. O passo lento. O olhar fixo demais para quem fingia calma.
Ellie virou-se primeiro.
— Louis, você ainda corre como se ainda tivesse um porco-espinho enfiado na bota. — disse, divertida, o sorriso abria caminho entre as palavras.
Louis estreitou os olhos, tentando conter o riso.
— E você ainda acha que corre como o vento, né?
Ela deu dois passos para trás, teatral.
— Louis, Louis… você não sabe com quem está falando.
Ergueu a mão, a palma voltada para o céu, e fechou os olhos. Um sussurro suave escapou dos lábios — curto, quase imperceptível. Do centro de sua mão, o ar se torceu em espirais delicadas. Uma brisa nasceu ali, tímida no início, depois mais forte, ganhando forma e movimento. As folhas secas ao redor começaram a dançar, rodopiando em torno dela num balé de cores e risos.
Louis arregalou os olhos, empolgado.
— Olha isso, Glenn! Tá vendo? — disse, apontando com os olhos brilhando. — Com a nossa idade... ela já faz isso aí. Eu sabia! Aquela vez que ela me jogou no lago com um vendaval inteiro — você riu, lembra? Nem acreditou quando eu contei!
— Você escorregou! — protestou Ellie, rindo, a voz clara como o próprio vento que a envolvia.
Glenn meteu as mãos nos bolsos. O polegar roçou a costura do tecido, uma, duas vezes. O olhar, preso nela, parecia pesar mais.
“Então ela aprendeu a usar magia…”
Louis continuava falando, mas o som se perdia. O redemoinho desfez-se aos poucos, as folhas voltavam ao chão, uma a uma, como se o vento as devolvesse com cuidado.
Ellie caminhou até ele. Parou a menos de um passo.
— É bom te ver, Glenn. — disse, simples.
Ele assentiu.
O abraço veio antes da resposta. Um toque leve, rápido, como se ela tivesse medo de que o vento a puxasse de volta. O cheiro de flores se misturou ao da terra molhada, e o tecido da roupa dela roçou na manga dele — macio, quente do sol.
— Também é bom te ver, Ellie. — Glenn piscou lentamente, o olhar demorava um segundo a mais do que devia.
O vento passou.
— Desde quando você aprendeu a fazer isso? — perguntou Louis, ainda olhando para as folhas que voltavam a repousar na grama.
Ellie deu um passo para trás, se afastou de Glenn.
— Bom… lembra de um ano atrás, quando o tio Reynolds me apresentou àquele mago viajante? — disse, com o olhar voltado para o céu. — Aquele dos livros flutuantes. Desde então, tenho praticado.
Glenn franziu o cenho, genuinamente surpreso.
— Isso é incrível… você aprendeu praticamente sozinha.
Ela sorriu de leve. Com a ponta dos dedos, puxou uma mecha dourada para trás da orelha.
O olhar baixou por um instante, e os ombros pareceram se recolher, como se o gesto tivesse sido mais para ela do que para ele.
Louis cruzou os braços, triunfante.
— Eu disse que ela era um prodígio.
Glenn desviou o olhar. As palavras de Louis pairaram no ar, sem pressa de sumir.
Por um instante, o rosto de Glenn se fechou — não de raiva, nem de dor, mas como quem sente algo e não sabe onde guardar. O maxilar se moveu, quase imperceptível.
“Todos estão melhorando… é como se…”
— Vamos sentar — disse Ellie. A frase veio antes que o pensamento pudesse se concluir. — Perto da figueira. Preparei uma surpresa pra vocês.
Louis arqueou a sobrancelha.
— Além da magia?
Ela assentiu, o sorriso surgiu em segredo.
A figueira se erguia um pouco adiante, o tronco largo e as folhas espessas ofereciam sombra suficiente para três.
Ali, Ellie já tinha estendido um pano claro sobre a grama. A borda balançava com o vento, e sobre ele repousavam cestas de palha e copos de barro. Tudo cuidadosamente arranjado — como se ela tivesse calculado até a hora exata em que a sombra da árvore ficaria naquele ponto, só pra que não precisassem se mover.
Dentro das cestas, pães trançados ainda mornos, pequenas tortas de frutas, pedaços de queijo e um jarro de vidro com suco cor de sol — talvez laranja, talvez pêssego. Uma toalha branca cobria parte do lanche, pesada com pedras lisas para o vento não levar.
Louis soltou um assobio baixo.
— Parece que você caprichou, hein?
Ellie riu, abaixando-se ao lado deles.
— Fazia tempo que não nos víamos… — disse, com leveza, mas o olhar ficou distante por um breve instante. — E eu não consegui me despedir de vocês da última vez.
Louis assentiu com um exagero teatral, a mão pousada no peito.
— É… aquilo doeu.
Ainda sorria quando pegou um dos lanches, como se a dor tivesse virado piada.
— Mas seu pai explicou a situação — disse Glenn, e se inclinou um pouco para frente. — Foi de última hora. Não foi culpa sua.
Ellie assentiu. O olhar estava leve, mas sem sorriso.
— E, bom… — ele hesitou. Virou o copo nas mãos. — Parece que valeu a pena. Você… tá diferente.
Fez uma pausa curta e completou, num tom mais baixo:
— No bom sentido.
Ellie piscou, surpresa. Um brilho de confusão e riso atravessou o rosto dela ao mesmo tempo.
Glenn percebeu o que dissera tarde demais. Endireitou o corpo, desviando o olhar, o queixo tenso.
— Digo… é que… — limpou a garganta — você parece mais forte, é isso.
Ela não respondeu de imediato. Apenas sorriu de leve, um sorriso pequeno, verdadeiro.
Sem comentar, pegou o jarro e encheu o copo dele até a borda. Entregou em silêncio.
Louis não notou nada. Continuava a mastigar alto um sanduíche, satisfeito com a própria existência.
— Meu pai me contou que você o ajudou, esses meses — disse Ellie, com o rosto voltado para Glenn. — Que foi com ele caçar na mata.
Glenn deu um leve aceno de cabeça.
Mas Louis não resistiu:
— Se tropeçar pra fora da mata, berrando por causa de lobos, é considerado ajuda… então ele salvou o dia.
Glenn deu um soco leve no ombro dele.
— Pelo menos eu fui, seu covarde.
— Covarde é elogio. — Ellie interveio, rindo. — Louis mal aguenta encarar um inseto.
— Ei, aquilo era uma vespa! — protestou ele com as mãos agitadas, como se ainda tentasse espantar o bicho. — Do tamanho de uma maçã!
Ela gargalhou, e o som preencheu o ar como se o vento parasse pra ouvir. Glenn a observou por um instante — o reflexo dourado do entardecer brilhava entre os fios de cabelo, os olhos semicerrados de tanto rir.
Ele desviou o olhar. O céu acima estava limpo, um azul forte que cedia lugar ao primeiro brilho da lua — branca, firme, já alta demais para o horário.
O vento mudou de direção. Trouxe o cheiro do riacho e o farfalhar das folhas.
E então a voz dela o chamou, suave, quase num sussurro:
— Glenn.
Ele virou o rosto depressa, como se o nome tivesse peso.
— Você mal tocou na comida — disse Ellie, enquanto se inclinava um pouco. — E tá calado demais hoje.
Glenn deu de ombros, os olhos fixos num ponto qualquer da toalha.
— Só ouvindo vocês.
Louis ainda mastigava, mas não resistiu à provocação:
— Ou tá sentindo que tá ficando pra trás?
Glenn ergueu os olhos devagar e encarou o primo.
— Afinal... — Louis ergueu as mãos, com teatralidade. — Eu tô evoluindo com a espada, a Ellie já conjura sem tropeçar nas palavras... alguém aqui precisa correr atrás, né?
— Louis. — Ellie o cortou, sem elevar a voz, mas com firmeza.
Glenn desviou o olhar para o céu. A voz saiu baixa, quase como se falasse para si mesmo:
— Nunca me vi com uma espada na mão.
Ellie parou. O olhar dela se fixou nele, quieto. A expressão antes leve se apagou aos poucos, como se algo dentro dela tivesse murchado.
— Nem murmurando pra mana me obedecer. — completou Glenn, num tom que mal cortava o ar.
Louis riu, alheio ao peso daquelas palavras.
— Você fala isso porque nunca tentou de verdade. Nem sente a mana ambiente, cara.
O silêncio caiu como uma cortina.
Glenn manteve os olhos no horizonte. Por dentro, o peito apertava — mas por fora, queria parecer tranquilo.
— Talvez. — disse, com um fio de voz. — Mas não dá pra sentir falta do que nunca foi meu. Então… acho que tô bem assim.
Louis abriu a boca para responder, mas Ellie o calou com um olhar.
— Você não ter despertado ainda não quer dizer nada, Glenn. — disse, firme. — Louis também não despertou. Cada um tem seu tempo. Seu momento. Nunca ouvi história de alguém que não conseguisse. A sua hora vai chegar.
Glenn a olhou. A luz da tarde caía por entre as folhas da figueira e riscava o rosto dela em traços de ouro e sombra.
— Não ter despertado ainda não muda quem você é. — completou Ellie.
E então pousou a mão sobre a dele.
O toque foi leve e quente. O tipo de calor que não se move, mas parecia respirar.
Glenn não disse uma palavra.
Os dedos dela permaneceram sobre os seus por um segundo que se estendeu — longo demais pra ser casual, curto demais pra ser certeza.
Ele não soube se devia afastar. Ou se devia segurar.
O vento passou entre as folhas, arrastando um silêncio que parecia mais fundo do que antes.
Ellie soltou a mão dele devagar. O rubor subiu-lhe às bochechas, discreto, como o reflexo do entardecer nas pétalas espalhadas ao redor.
Louis observou a cena. Pareceu querer dizer algo, mas o olhar vacilou, e nenhuma palavra veio. Ficou ali por um instante, pensativo, até que os olhos se acenderam.
— Ah, quase esqueci! — disse, com a mão já dentro do bolso.
Ellie o olhou, curiosa.
Louis retirou um pequeno objeto, fechado na palma.
— Queria te dar isso.
Abriu a mão. Era uma pulseira simples — ferro escurecido, uma pedra presa no centro, esverdeada, quase transparente sob a luz que restava.
— O vendedor disse que é um protetor — explicou, com um sorriso. — Dizem que quem carrega uma dessas… nunca está só.
Ellie ficou em silêncio por um momento. Os olhos brilharam como se refletissem o próprio céu.
— Louis… isso é… lindo. — sussurrou, a voz embargada de ternura.
Ele riu, meio sem jeito, e segurou o pulso dela com cuidado. Prendeu a pulseira ali, o metal tocava a pele clara, e por um instante pareceu que até o vento havia parado para ver.
Ellie levantou o braço, a pedra brilhava com o último dourado do dia. Depois o abraçou.
Glenn desviou o olhar. O céu, de repente, pareceu merecer atenção.
As primeiras nuvens se acumulavam no horizonte, tingidas de violeta e cobre. O sol se escondia atrás das montanhas, e as sombras começavam a se esticar sobre a grama.
Ele inspirou devagar.
“Eu nem sabia que ele tinha comprado algo pra ela.”
Louis deu uma palmada na testa.
— Droga, quase esqueci.
— O quê? — perguntou Ellie, virando-se para ele.
Glenn também ergueu o olhar.
— Minha mãe… — Louis coçou a nuca — disse que hoje é o meu dia de ir à missa. Se eu chegar depois do sino, ela me transforma em oferenda.
Ellie riu.
— Vai, está tudo bem. Eu e o Glenn cuidamos das coisas aqui.
— Tem certeza? — ele perguntou, já meio de pé.
— Tenho. — respondeu ela, sorrindo. — E obrigada por ter vindo.
Louis pegou o último lanche e deu um passo para trás.
— Obrigado por hoje, de verdade. — disse, sincero. — Foi bom… ver a gente junto de novo.
— Também achei. — respondeu Ellie.
Ele acenou, e o riso ainda pairava no ar quando o som dos passos dele começou a sumir pela trilha.
Só o farfalhar da figueira e o murmúrio do riacho preenchiam o ar.
O silêncio não pesava.
Ficava ali, entre eles, como parte da paisagem — como se sempre tivesse estado.
Ellie brincava com um fio solto do pano estendido sobre a grama. Enrolava a ponta no dedo, soltava. De novo. Como se o tempo tivesse esquecido de passar.
Glenn observava o gesto. Não por curiosidade. Mas porque havia algo ali — no jeito distraído, no ritmo — que o fazia esquecer de olhar para qualquer outra coisa.
— Senti falta disso. — disse ela, quase num sussurro.
— Do quê?
— De… nada importante. — respondeu, dando de ombros, o olhar voltando pro chão.
Glenn sorriu, pequeno.
— A gente devia fazer isso mais vezes.
— Sim… — ela disse, e a palavra saiu como se não quisesse incomodar o ar.
Eles se levantaram devagar. Nenhum dos dois falou mais nada.
Glenn se abaixou para juntar a cesta. Ellie ainda segurava a borda do pano, dobrando devagar.
— Então… — murmurou ele.
— Então. — ela repetiu no mesmo instante.
Os dois riram, baixinho.
— Parece que a gente se acostumou a falar junto. — disse ele.
— Ou você anda lendo meus pensamentos. — retrucou ela, com um meio sorriso.
— Não ousaria. Devem ser perigosos.
— Talvez sejam — respondeu, e ergueu o olhar. — Mas você é corajoso, não é? Só tem medo de lobos, pelo que ouvi.
— Corajoso o bastante pra segurar o outro lado do pano — disse ele, ao segurar a ponta que o vento insistia em levar.
Ellie riu.
— E prático.
— E prático — repetiu ele, com o mesmo tom dela.
O silêncio voltou, só o farfalhar da toalha entre eles.
— Sabe… — começou ela, olhando para as cestas — eu tinha esquecido como é fácil conversar com você.
— Fácil? — ele arqueou a sobrancelha. — Achei que eu fosse péssimo com conversas.
— Você é — respondeu, com um sorriso. — Mas comigo não parece. Você parece se soltar.
Glenn não disse nada. Só assentiu, meio sem saber o que fazer com as mãos.
O caminho se estendia úmido e dourado sob as últimas luzes do dia. Ellie trazia a toalha nos braços; Glenn, a cesta leve que balançava com os passos. Desciam a colina em silêncio, enquanto o sol se desfazia entre os galhos como ouro líquido.
O ar misturava o cheiro de terra quente com pão recém-assado — aquele aroma que só o fim de tarde conhece. Ao longe, carroças rangiam, vozes se cruzavam, e pássaros riscavam o céu antes de voltarem aos ninhos.
A vila surgia aos poucos: bandeiras dançavam ao vento, luzes mágicas pendiam das janelas, e fitas cintilavam como constelações suspensas.
Ellie ergueu o olhar, o rosto iluminado pelas lanternas mágicas.
— Já reparou como a vila muda nessa época? — disse, com um sorriso suave. — Parece que até o ar fica mais leve quando se aproximam os ritos de Aldebaran.
Glenn seguiu o olhar dela até as decorações flutuantes.
— É... o Festival da Luz. — murmurou. — Sempre achei curioso como as pessoas acendem velas pra agradecer por coisas que ainda nem aconteceram.
Ellie riu de leve.
— É fé, Glenn. Acreditar antes de ver. Meu pai diz que Aldebaran só guia quem caminha no escuro.
Glenn balançou a cabeça, pensativo.
— Ou talvez seja só uma desculpa para pendurar fitas e comer pão doce.
— Você é impossível. — ela disse, divertida. — Mas admito que gosto da parte das fitas. E do pão.
Glenn arqueou a sobrancelha.
— Então é isso que te atrai na espiritualidade? Açúcar e tecido colorido?
Ellie deu um empurrão leve no ombro dele.
— Não. Mas... talvez eu goste da ideia de que alguém lá em cima ainda se importa.
Glenn sorriu, enquanto observava as lanternas subindo devagar no céu.
— E parece que todo mundo aqui acredita nisso. — disse. — A vila inteira se transforma. Como se a esperança tivesse cheiro.
Ellie assentiu, o olhar vagando pelas ruas.
— As pessoas precisam disso. Mesmo que seja só por alguns dias. Mesmo que Aldebaran nunca responda…
A voz dela se perdeu por um instante. As ruas já ganhavam cor: tecidos pendurados como véus, enfeites flutuavam sobre os telhados, e pequenos globos de luz que subiam e desciam no ar. As pessoas sorriam — envolvidas em preparativos, pinceladas e melodias.
— …gosto de ver o povo assim. — completou. — Feliz.
Glenn olhou para ela, o reflexo das lanternas dançava em seus olhos. O som dos passos se misturava ao farfalhar das folhas, e o cheiro doce das frutas expostas nas barracas começava a se espalhar pelo ar.
— Você vai? — perguntou de repente, o olhar fixo no chão à frente.
Ellie virou o rosto, surpresa.
— Pra festa de amanhã? — esperou um segundo, depois sorriu. — Claro que vou. Louis vai participar do duelo de abertura, lembra? Ele disse que treinou tanto…
Glenn assentiu, curto.
— Ah… é verdade.
O sorriso dela vacilou um pouco, percebeu a rigidez no tom dele.
— E você?
— Eu? — Glenn chutou uma pedra no caminho. Ela rolou até o meio da trilha e desapareceu na sombra. — Não. Festas cheias não são muito a minha cara.
Ellie o observou, mas ele não retribuiu o olhar.
— Não gosto de multidões. — continuou. — Nem de gente bajulando alguém que nunca viu… e provavelmente nunca verá.
Ellie parou. O vestido esvoaçou no vento, batendo leve contra as pernas.
— Achei que viria. — disse, a voz mais baixa. — Só pra ver.
Glenn parou alguns passos adiante, sem se virar.
— Ver o quê?
Ela hesitou. O silêncio entre os dois pareceu se alongar, pesado, até que as palavras saíram quase num sussurro:
— Talvez eu.
Glenn levantou o olhar. Os olhos dela o encontraram — verdes, calmos, mas com algo ali que o desarmava. Por um instante, o som do vilarejo pareceu distante demais, como se o mundo inteiro tivesse prendido a respiração.
Uma lembrança atravessou a mente dele — O abraço de Louis em Ellie horas antes, o riso leve dela, o modo como o vento brincava nos cabelos dourados.
O peito de Glenn se apertou.
Desviou o olhar.
— Louis vai estar lá. — disse num esforço de neutralidade. — Ele merece toda a sua atenção amanhã.
Ellie bufou, com os braços cruzados.
— Você sempre faz isso.
Glenn ergueu o olhar.
— O quê?
— Se afasta. — respondeu ela, firme, sem hesitar. — Se fecha. Como se não fizesse parte daqui.
Ele a olhou por alguns segundos, o rosto imóvel, o vento passava leve entre os dois.
— Talvez eu não faça. — disse, simples.
Ellie deu um passo à frente.
— Você cresceu aqui. — disse, o tom mais baixo agora. — Meu pai e o seu tio te acolheram como filho. Louis te chama de irmão. E eu…
Ela parou. A palavra ficou presa na garganta.
E então, como se o próprio ar tivesse ficado mais quente, Ellie desviou o olhar, para esconder o rubor que já tomava conta das bochechas.
— E eu… — disse ela, após respirar fundo — Eu gosto de ter você por perto, Glenn. — um sorriso leve surgiu nos lábios dela. — Mesmo quando você parece querer fugir do mundo.
O sorriso de Glenn veio quase sem querer — pequeno, contido, mas sincero.
— Eu não fujo. — disse. — Só… caminho devagar.
Ellie fez um beicinho e cruzou os braços outra vez.
— É, e nessa velocidade, o mundo inteiro já deu a volta enquanto você ainda tá pensando.
Glenn riu e balançou a cabeça.
— Eu?
— Sim, você. — retrucou ela. — Sempre foi assim.
— Assim como?
— Sempre me ignorou quando éramos crianças. — disse, com um tom meio risonho, meio magoado. — A gente te chamava pra brincar, lembra? Todo mundo da vila. Mas você preferia ficar sozinho.
Glenn fingiu pensar, a expressão provocadora.
— Sozinho, não. — respondeu. — Eu ficava estudando.
— Estudando o quê? — perguntou Ellie, arqueando uma sobrancelha. — Como parecer entediado?
Ele riu, e ela acompanhou o riso, o som leve ecoava entre as casas iluminadas.
— Bom… — disse Glenn, o olhar ainda perdido na estrada — você sempre foi a mais sociável.
Ellie riu de leve.
— E você, o mais reservado. Ou o mais tímido.
Ele sorriu de canto.
— Pode ser.
O som dos passos se misturava ao das cigarras. Ellie o observava — havia curiosidade no olhar, e algo mais fundo, como quem olha para um eco antigo.
— Às vezes eu me perguntava por que você me evitava. — disse, sem ironia, a voz quieta. — Ou por que nunca se aproximava de verdade.
Glenn virou o rosto pra ela, intrigado, o meio-sorriso surgia.
— E você chegou a alguma conclusão?
— Cheguei — respondeu ela, e desviou o olhar. — Achei que você me odiava.
Ele parou de andar, surpreso.
— Odiar você? — balançou a cabeça com um sorriso leve. — Não… nunca foi isso.
Ellie também parou, à frente dele. O vento soprou e ergueu uma mecha dourada de seu cabelo, que logo caiu sobre o ombro.
— Mas aí você começou a se aproximar de mim — disse ela, com os olhos voltados para o chão — quando minha mãe…
A voz se perdeu no fim, engolida pelo barulho distante da vila.
Glenn assentiu devagar, o rosto sereno.
— Eu lembro. Você estava triste. — Fez uma pausa. — Achei que talvez precisasse de alguém… alguém que soubesse como era perder alguém importante.
Ela o olhou, e o brilho das lanternas flutuantes se refletiu nos olhos verdes dela, como fragmentos de vidro sob a luz.
Por um momento, o silêncio entre os dois disse mais do que qualquer palavra.
— Alguém como você. — completou ela, por fim.
Glenn respirou fundo, o peito pesado de palavras que não sabia dizer.
— Eu não sabia o que fazer. — murmurou. — Só quis ficar por perto.
— E ficou. — respondeu Ellie, num tom que soava quase como gratidão.
Eles se olharam, longamente. O mundo pareceu se calar à volta.
Ellie o observou com atenção, o olhar percorrendo o rosto dele.
— Seus olhos… — disse, quase num sussurro. — Sempre foram azuis assim?
Glenn piscou.
— Assim como?
— Assim… — ela sorriu, leve. — Claros, como se guardassem um pedaço do céu no começo do dia.
Ele desviou o olhar, tímido.
— Acho que é a luz das lanternas.
— Não é. — respondeu ela, baixinho. — É você.
Os dois ficaram parados, imóveis.
A noite parecia suspensa entre eles.
Glenn sentia o próprio coração bater alto demais — rápido, pesado, descompassado.
Ellie respirava curta, o peito subiu e desceu num ritmo que o hipnotizava.
O vento passava devagar, mexendo os fios dourados do cabelo dela, que tocavam o rosto dele quando se aproximava.
Por um instante, os olhares se perderam — não havia mais voz, nem pensamento, só aquele espaço estreito entre o querer e o fazer.
A respiração dela roçava a dele.
Os olhos de Ellie desceram, sem querer, até a boca de Glenn.
Ele engoliu em seco, incapaz de se mover.
O mundo todo parecia inclinar-se para aquele instante — como se até o ar esperasse o toque que estava prestes a acontecer.
Ellie fechou um pouco os olhos, o corpo inclinado para frente…
Glenn também.
As pontas dos dedos dele tocaram a dela, e foi o bastante para o tempo se dissolver.
— Ellie!
A voz cortou o ar como uma lâmina.
Os dois se afastaram num sobressalto.
Glenn tropeçou um passo para trás, Ellie arregalou os olhos, o rosto tomado por um rubor tão vivo que parecia brilhar sob as luzes da vila.
— P-pai?! — ela gaguejou, as mãos se moveram no ar, como se tentasse empurrar o momento para longe. — Eu… eu tava só… mostrando o caminho!
Do alto da escadaria de pedra vinha Edran Borgia, o pai de Ellie — um homem de ombros largos, cabelos escuros e um sorriso perigoso de quem viu tudo.
— Mostrando o caminho, é? — disse ele, enquanto cruzava os braços, divertido. — Glenn conhece essa vila como a palma da mão. E, sinceramente, de onde eu estava, parecia mais um encontro diplomático de narizes.
— N-não era… — Ellie tentou falar, mas só saiu um som confuso que a fez gesticular ainda mais, vermelha até a ponta das orelhas. — A gente só tava conversando, pai!
Glenn tentou manter a compostura, a voz falhava miseravelmente:
— B-boa noite, senhor Edran.
Edran ergueu uma sobrancelha, fingindo um ar sério.
— Boa noite, Glenn. — disse, com o tom calmo demais pra ser real. — Espero que essa “conversa” tenha sido produtiva.
Ellie levou as mãos ao rosto, pareceu murmurar algo ininteligível entre os dedos.
Glenn, sem saber pra onde olhar, apenas coçou a nuca, rindo nervoso.
Edran suspirou e se virou para a filha.
— Anda, mocinha. Já está tarde. — Depois olhou para Glenn, tomou a cesta de suas mãos e deixou o sorriso voltar ao rosto. — E você… tenta não se perder com a minha filha da próxima vez, tá bom?
Ellie empurrou o pai com o ombro e bufou, o rosto ainda em chamas.
— Pai!
Edran riu, claramente satisfeito, e seguiu rua abaixo com a cesta nos braços.
Ellie ainda estava ruborizada. O brilho das lanternas desenhava tons quentes sobre o rosto dela, o olhar baixo, perdido entre o chão de pedra e os próprios dedos.
— Me desculpa… — murmurou, a voz trêmula. — Por… por isso.
Glenn balançou a cabeça, o sorriso contido.
— Tá tudo bem. — disse, suave. — Acho que nos despedimos aqui.
Ela assentiu, o rosto ainda meio escondido, e deu um pequeno passo para trás.
Por um instante, pareceu querer dizer algo — mas o silêncio venceu.
Então Ellie se inclinou, rápida, o toque leve como um sopro.
Um beijo na bochecha.
— Boa noite, Glenn. — disse, quase num sussurro.
O tempo parou.
O calor daquele instante ficou preso na pele dele, e se espalhou como se o ar tivesse ficado mais denso, mais vivo.
Ellie recuou e se virou depressa.
O som dos passos ecoou pela rua de pedra enquanto ela corria atrás do pai; a toalha balançava nos braços.
Glenn parou e observou.
— Boa noite, Ellie… — murmurou, tarde demais.
O vento passou, frio, e o barulho da vila pareceu distante demais.
O coração de Glenn batia rápido — como se tentasse alcançar o ritmo dos próprios pensamentos.
“O que eu tô fazendo?”
A pergunta atravessou a mente, pesada.
Ele passou a mão pelos cabelos e soltou o ar com força.
Louis. A lembrança do sorriso dele, animado com o duelo de amanhã, se misturava ao rosto de Ellie.
O peito apertou — uma sensação morna e amarga, um nó que subia devagar e não encontrava saída.
Não era culpa. Nem medo. Era algo entre os dois.
Ficou ali, imóvel, até que o som das risadas se apagou ao longe.
Só então começou a andar, mãos nos bolsos, o olhar preso no chão de pedra — onde os últimos brilhos da noite ainda tentavam resistir.
A casa estava mergulhada em silêncio quando Glenn empurrou a porta. A madeira rangeu baixo, e o som se espalhou pelos cômodos escuros.
Nenhuma vela acesa. Nenhuma lâmpada arcana. Nenhum passo.
Apenas o cheiro da lenha apagada na lareira.
— Devem estar na missa ainda… — murmurou, soltando o ar devagar.
Pegou uma maçã da cesta sobre a mesa, passou a mão pelos cabelos e resmungou:
— Acho que eu devia tomar um banho.
— Estavam até agora lá fora?
A voz veio da escuridão, e Glenn quase derrubou o que tinha na mão.
Virou-se num sobressalto.
— Por Aldebaran, Louis! — exclamou, ofegante. — Quer me matar de susto? Você não devia estar na missa?
O primo estava encostado na parede, meio à sombra, com um pão na mão e a expressão de quem acabara de acordar.
— Ainda não tô morto — respondeu, e mastigou devagar. — Só não tava me sentindo bem. Saí da missa mais cedo.
Glenn levou a mão ao peito. O fôlego ainda fugia.
— Entendi…
Louis mordeu outro pedaço do pão e o olhou com curiosidade.
— E você não respondeu minha pergunta. — disse. — Tava até agora com a Ellie?
Glenn travou por um instante.
O cérebro procurou uma resposta qualquer, desesperado.
— Eu… é… sim. — disse por fim, rápido demais. — A gente tava… alimentando… patos.
Louis piscou.
— Patos?
— É. — respondeu Glenn, sério demais pra soar convincente. — Patos mágicos. Precisavam de… companhia noturna.
Louis o encarou por um segundo e franziu o cenho.
— Às vezes eu acho que você apanha quando dorme, Glenn.
— Pois é — respondeu ele, coçou a nuca e conteve o riso. — A vida é dura.
Virou-se para subir as escadas.
— Bom, vou tomar um banho e ir dormir.
— Glenn. — a voz de Louis o fez parar no primeiro degrau.
Ele se virou. Louis estava parado no meio da sala, o olhar um pouco distante, o pão esquecido na mão.
— Sabe… amanhã, na comemoração… — disse, após hesitar por um segundo. — Eu vou me declarar pra Ellie.
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