Volume 1

Capítulo 8: Conhecendo o Campo Inimigo

 

Era uma manhã de sábado ensolarada, com poucas nuvens no resplandecente céu azul. Era um dia perfeito para um passeio, mas devido às últimas ocorrências de monstros rondando a região de Kanto, poucas pessoas se atreveram a sair de casa. Poucos estabelecimentos abriram no dia também.

Zethnniyr comia o café da manhã feito por Mio enquanto assistia anime, que consistia em arroz frito e sopa de missô com alguns legumes e verduras. A garota de maria-chiquinha não fez nada muito elaborado, pois não era uma adepta da cozinha. Ela se desculpou diversas vezes, umas dez no total. Zeth deu um tapa na cabeça dela em todas as vezes.

Mio já havia tomado seu café, ela terminou a refeição antes do demônio porque precisava preparar algumas coisas antes de saírem. Vendo que já faziam um pouco mais de 15 minutos que Kawano não aparecia, Zeth a chamou da sala:

— Eiii, você vai ficar quanto tempo fazendo não sei o que? Estou terminando e precisamos nos apressar! — gritou o maou com a boca cheia. 

— Calma, só mais um instante! — respondeu a garota, ainda na cozinha. Assim que colocou os recipientes dentro da mochila, fechou-a e colocou a bolsa nas costas. Deu alguns passos e se encontrou com Zethnniyr no outro cômodo: — Pronto, está tudo feito!

— Ainda bem, já terminei a comida. — Limpou os lábios suavemente com o guardanapo e empilhou a louça suja. — Apesar de não parecer uma refeição requintada, ela é gostosinha. Não precisava ter pedido desculpas mais cedo.

— B-Bem, eu não sou muito boa em cozinhar. Quer dizer, eu só não cozinho na maioria das vezes… 

— Entendi. — Zethnniyr voltou seu olhar para a televisão e deu um sorriso de canto, continuando: — Acho que vou ter que cozinhar para nós dois. A maioria dos alimentos daqui são iguais aos do meu mundo, com algumas exceções. Só preciso aprender as receitas daqui.

— Oh… Eu não imaginava que um maou como você saberia cozinhar.

— Está de brincadeira com a minha cara? Está duvidando de mim? — Tirando sua atenção do anime, virou seu rosto e deu um olhar afiado para Kawano.

— Não é isso! Eu apenas pensei que você teria “chefes demônios” ou algo assim! Nos animes que assisto, raramente vejo um maou cozinhando…

— Eu tinha serviçais dos mais diversos tipos, aqueles que cozinhavam, eram poucos — explicou, dando um suspiro em seguida. — Fui treinado desde criança a cozinhar pelo meu pai. Ele acreditava que demônios deveriam ser bons em tudo, então aprendi de tudo e mais um pouco.

— Interessante. Pensei que os reis demônios ficassem no castelo o dia inteiro só mandando os servos fazerem tudo, enquanto esperavam o grande herói entrar nas ruínas.

— Você está me ofendendo com essas palavras! Eu não era um indolente!

Zethnniyr olhou para Mio irritadiço, a garota de maria-chiquinha apenas flexionou os braços e deu a língua como resposta. O demônio fez menção de se levantar, porém ele interrompeu a própria ação assim que escutou uma música familiar. Mio também voltou sua atenção para a fonte do som. Sim, era o anúncio de urgência do jornal.

Assim que a vinheta terminou, a mesma jornalista do dia anterior apareceu na tela. Dessa vez, ela parecia um pouco mais tranquila. Assim que percebeu que estava ao vivo, ela começou:

— Interrompemos a programação para dar as últimas notícias sobre o ataque à província de Kanto — começou a jornalista. Ela engoliu o seco, tentando se manter concentrada e não deixar um pouco do seu nervosismo escapar como foi ontem. — As Forças Armadas e demais instituições estão na linha de frente contra essas criaturas misteriosas. Infelizmente, alguns desses monstros são mais trabalhosos que outros, então os militares se concentram nesses.

— Não é surpresa já que eles possuem poderes… — disse Mio, um tanto apreensiva com as imagens dos monstros exibidas na tela.

— De acordo com as ocorrências, o número de monstros é de 29. Até esse momento, as Forças Armadas informaram que conseguiram matar apenas 8 deles. Vamos ver o pronunciamento do Primeiro-Ministro. — A imagem da mulher desapareceu e deu lugar ao homem que governa o país.

— Isso parece ser algo inútil. — Zethnniyr pegou o controle e com certa dificuldade de reconhecer os botões, ele desligou a televisão antes do Primeiro-Ministro se pronunciar. — Ah, consegui desligar.

— O que pensa que está fazendo? Eu queria ver o que ele ia falar…

— Não temos tempo para isso.

O maou se levantou do sofá e jogou o controle em algum lugar do móvel, e vendo isso, Mio entendeu o que ele queria dizer. O homem de cabelos negros encarou a menor, emitindo um rosto sério. Kawano apenas engoliu o seco. 

Vendo que a sua serva estava nervosa, Zethnniyr suspirou e, levando uma de suas mãos até a cabeça dela, acariciou os cabelos castanhos-claro gentilmente.

— Eu sei que ontem você quis parecer forte, mas não precisa me acompanhar. É perigoso para humanos comuns.

— Mas, eu me sinto mal de ficar aqui sem fazer nada… — Mio abaixou o olhar, encarando o chão e pensando em vários cenários ruins. Como forma de espantar os pensamentos negativos, balançou a cabeça para os lados. — E eu quero te ajudar, posso te mostrar os lugares e até mesmo te motivar na batalha!

— Hm… Não é uma ideia ruim. Apesar de ter dado um passeio no começo, eu já esqueci os lugares pelos quais passei. Então, ter você me guiando seria de ajuda.

— Nossa, você tem memória de peixe ou algo assim…?

— Eu estava perdido! E eu apenas não prestei atenção nos locais, apenas isso! — retrucou. Aparentemente a garota de maria-chiquinha pisou no orgulho dele. O maou continuou: — Se eu estivesse com meus poderes completos, poderia facilmente rastrear todos os inimigos em um segundo!

— Convencido…

— Eu gastei boa parte da minha reserva mágica quando aquele goblin te atacou, e usei um pouco da minha magia para criar aquela barreira para o seu amigo. — Zethnniyr levou a mão até a nuca, coçando-a levemente. — Derrotando os monstros e juntando com o nosso contrato, posso recuperar meus poderes mais rápido.

— Entendi, então precisamos nos apressar! Mas por onde começamos…?

No meio da conversa de ambos, o celular de Kawano tocou e vibrou, tirando a atenção dos dois jovens. Mio prontamente pegou o aparelho e, desbloqueando, foi para o aplicativo de conversas que usava. Dos poucos contatos que tinha, um se destacou por estar com uma notificação. Era de Kintarou.

Apertando o ícone, a tela de mensagens apareceu e revelou 6 mensagens do Taniguchi. Mio leu todas rapidamente e arregalou os olhos, Zethnniyr aproximou o rosto perto do celular da jovem garota. Com uma expressão curiosa, ele perguntou:

— O que é isso que você está segurando? O que você está lendo?

— Isso aqui é um celular. Ele faz muitas coisas, como mandar mensagens e telefonar. Uma hora te explico com mais detalhes. — Mio engoliu o seco e decidiu responder à segunda pergunta do maou com as mensagens que Kintarou havia mandado. —  "Mio, já peço desculpas adiantado. Eu não vou poder te acompanhar na busca pelos monstros, aconteceu um imprevisto."

— Ah, esse é aquele seu amigo, certo? — perguntou, erguendo uma sobrancelha. Mio apenas assentiu com a cabeça e continuou. 

— "Como não posso te ajudar pessoalmente, vou te mandar esse link. Nesse fórum, alguns usuários relataram terem visto criaturas parecidas com lobos. Muitos usuários dizem que eles estão escondidos e só aparecem em altas horas da noite…" 

— Hm, isso se parece com os lobos selvagens de Amarek. Mas, não tenho certeza até vê-los pessoalmente.

— "Muitas informações estão nesses posts e também uma notícia do jornal, espero ter ajudado." — E terminando a última mensagem de Kintarou, Mio desligou a tela do celular e o colocou no bolso. — Parece até que ele ouviu a minha dúvida. É bem a cara dele aparecer em momentos como esse…

— Bom, agora que sabemos por onde começar, está na hora de investigarmos o lugar. — Zethnniyr fechou os punhos e sorriu animado com a situação. 

— Então… Vamos!

Mio deu um suspiro pesado, tentando acalmar seu coração. Ela sabia no que estava se metendo, mas queria ajudar de alguma forma. Mesmo que sua forma de ajudar seja mostrando o local para Zeth — algo que ela considera um tanto insignificante. Comparado ao que o demônio já fez por Mio, só conseguia pensar em retribuir o seu salvador.

Ajeitando a mochila nas costas e colocando os sapatos, Kawano abriu a porta da frente e sentiu o ar quente de uma manhã de primavera. “Abrir a porta”, naquele momento, significava um novo começo na vida de Mio — apesar de ter começado assim que o demônio chegou neste mundo —, foi ali que ela sentiu a grande virada de sua vida. Em outras palavras, que a ficha caiu.

Zethnniyr observava as costas de Mio, pensando que, por mais que fosse uma humana comum, ele via a vontade da garota de maria-chiquinha de ajudar. Mesmo sem poderes ou qualquer outra coisa que a protegesse, Mio queria ser útil. 

“Parece que vou ter que cuidar dessa cabeça de vento”, refletindo sobre o quão ingênua e precipitada sua serva era, Zethnniyr deixou uma fraca e baixa risada sair de seus lábios.


 

As ruas estavam em um silêncio que pode até ser considerado perturbador para alguns. Não havia carros, não havia pessoas, não havia nenhuma espécie de movimentação na região. Exceto por dois indivíduos que andavam com passos apressados.

Não fazia muito tempo que ambos haviam saído de casa, fazia um pouco mais de 14 minutos desde que saíram. O local onde a matilha de lobos se encontravam ficava a uma hora do apartamento de Mio. Com os meios de transportes vazios e poucas pessoas circulando, esse tempo foi reduzido.

A garota de maria-chiquinha andava na frente, guiando Zethnniyr, já que o mesmo não sabia onde estava e nem podia usar seu rastreador mágico, pois queria poupar energia. Olhando para o celular e lendo as informações das bestas, Mio, então, quebrou o silêncio:

— Eu estava pensando… Aqui diz que esses lobos apareceram só algumas vezes, poucas pessoas conseguiram registrar o aparecimento deles. E as fotos tiradas estão com uma qualidade péssima também — começou Mio, dando um zoom na imagem dos monstros. — Aparentemente eles não atacaram ninguém.

— Os lobos selvagens de Amarek são diferentes de animais comuns. Além de possuírem magia venenosa em suas presas, são muito inteligentes e não agem sem analisar o entorno. — Zeth colocou as mãos na calça cinzenta que usava, enquanto olhava ao redor com curiosidade.

— Então, eles estão se escondendo?

— É bem provável que sim. Como estão em outro mundo, imagino que estejam se adaptando ao ambiente enquanto observam as ações dos humanos.

— Você acha que eles também estão enfraquecidos por conta do teletransporte? — perguntou, guardando o celular no bolso do moletom desgastado. Conseguiu memorizar a possível base dos lobos.

— Acredito que sim, mas não acho que estejam tão fracos quanto no dia em que chegaram aqui. A reserva mágica de um indivíduo se restaura normalmente com o passar dos dias — falava com um tédio aparente em sua voz, ele preferia estar dormindo nessas horas. 

— Falando nisso…

Kawano parou os passos e, consequentemente, Zethnniyr também, apesar dele não entender o motivo. A razão para isso era porque ambos estavam diante de um cruzamento de veículos, além do semáforo estar vermelho para a passagem de pedestre. Não havia nenhum carro ou semelhante passando naquele momento, então não tinha nenhum problema em atravessar a rua. Porém, isso não é algo que Mio faria.

Depois de três minutos parados, o semáforo piscou para a luz verde, indicando que estava liberado a passagem. E assim, ambos voltaram a andar e atravessaram a rua tranquilamente.

— Como funciona a magia no seu mundo?

— Existem dois tipos de magia: a Elemental e a Espacial. A primeira você já deve imaginar, são magias que usam poderes da natureza, como fogo, água, vento, dentre outros. A magia espacial é aquela que pode alterar tanto o espaço como o corpo de alguém. 

— Incrível, isso parece mesmo com um RPG! — Mio estava com os olhos brilhando, animada com a explicação.

— Me deixe terminar, idiota! — Zeth deu um pequeno “peteleco” na cabeça da garota de maria-chiquinha, fazendo-a tropeçar. — Não tem muito o que dizer da magia Elemental porque a essência dela é simplória, mas quanto a dimensional, ela tem subcategorias: encantamentos, defensiva, conjurações, metamorfose e ilusória. Existem outras mais desconhecidas, mas essas são as principais.

Oh, entendo, entendo! E quanto aquele negócio de “reserva mágica”? Você falou sobre isso no nosso primeiro encontro.

— Reservas Mágicas são a quantidade de mana que um indivíduo consegue guardar dentro de si. Elas podem ser ampliadas ou absorvidas tanto por outros indivíduos quanto por eventos ocultos, como a Quebra Dimensional.

— Ah…

— Enfim, esse é o resumo do resumo sobre magia. Falei aquilo que acho mais importante no momento. Além disso… — Tirando uma das mãos do bolso, levou até a nuca e a coçou suavemente, enquanto um sorriso diabólico se formava em seus lábios. — Agora sim consigo sentir a energia deles… Vamos, estão perto!

— Espera, eu…!

Zethnniyr, sem hesitar, pegou no pulso de Kawano e começou a correr na frente, puxando a garota sem qualquer delicadeza. Ela pouco se importou com isso, tudo o que se passava em sua cabeça era o fato de já estarem perto do local. Perto de onde as bestas se escondiam.

Lembrou-se da sensação de ter parte do torso perfurado pelas garras do goblin. Da sensação do seu próprio sangue jorrando descontroladamente, da insuportável dor… Apesar de Zeth estar ao seu lado, ainda sim, não conseguia esquecer aquele sentimento de quase morte.

Ela percebeu o perigo em que estava se metendo.

Sem aviso, ela forçou a parar os passos, livrando-se da mão que a segurava. O Rei dos Demônios se surpreendeu com a ação repentina, então virou o rosto para encarar Mio. Ela não precisava dizer nada, sua expressão angustiada já dizia tudo.

Zeth abriu a boca por um momento, mas fechou sem emitir qualquer som. Ele não sabia o que falar para a garota, as palavras simplesmente não vinham. Um silêncio se instalou no local.

— Zeth, eu…

As lágrimas ameaçavam cair, mas foram interrompidas quando algo tocou a cabeça de Mio. Ela podia sentir seus cabelos sendo enrolados nos dedos do demônio, sentindo a agradável sensação de suavidade. Esse pequeno gesto acalmou seu coração.

— Não vou deixar nada acontecer com você. Irei te proteger — disse com um sorriso singelo. — Eu planejava usar magia para lutar contra a matilha, mas vendo você assim, vou lançar uma barreira protetiva de rank C. É o máximo que posso fazer.

— Obrigada, Zethnniyr. A-Acho que assim me sinto mais segura. — Mio deu um pequeno sorriso, fazendo com que a expressão assustada de antes desaparecesse.

— Sério, você é muito medrosa… Seria bom se esse mundo tivesse magia, mas vocês, humanos, têm as reservas mágicas bloqueadas. — O demônio suspirou desapontado.

— Magia é uma coisa bem inacreditável mesmo por aqui…

— Não tem muito o que fazer. — Zethnniyr pegou novamente a mão de Kawano e olhou fixamente nos olhos dela, tentando ao máximo transmitir segurança para a jovem adulta. Mostrando os dentes e com uma expressão determinada, disse: — Vamos, não temos tempo a perder!

Mio demorou um pouco para responder, mas logo assentiu a cabeça, o que fez o demônio sorrir. Com essa confirmação de confiança de Zethnniyr, a garota de maria-chiquinha não mediu esforços e acompanhou logo atrás os passos apressados do Rei dos Demônios. Assim, ambos partiram para o campo de batalha.



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