Vida em Folhas Brasileira

Autor(a): Lucas Porto


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 17

 

Floresta da Morte.

Aposentos do Lorde Hakuro.

— Hakuro!

Olhando devagar, Hakuro viu Gazel entrando enfurecido em seus aposentos. Aquele Golias extremamente alto, de pele morena e músculos a mostra se tornara um monstro descontrolado cheio de fúria. 

— Bom dia, Gazel.

— Eu ouvi os relatórios, como assim Sinsha foi derrotada?! E ainda por cima quase morta?! É algum tipo de piada? — O homem fechou os punhos e rangeu os dentes esperando uma explicação.

— Foi exatamente o que você viu nos relatórios. Sinsha encontrou e enfrentou o Noredan, o mesmo se mostrou um difícil adversário e por pouco não a matou. Você pode questionar os subordinados dela, se preferir.

— Está claro que isso é uma mentira! Minha irmã nunca seria derrotada tão facilmente. — Ele passou do lado de Hakuro e foi até a janela, apoiando suas mãos ali, ele olhou para o céu sem acreditar naquilo que tinha ouvido. 

— Sinsha não é uma criança, Gazel e você sabe disso. Eu a avisei para tomar cuidado, mas como sempre ela subestimou o adversário e por pouco não...

— Não termine essa frase — vociferou.

— O que importa é que ela está bem. Eu pedi para que ela e o esquadrão retornassem à base. Isso foi há dois dias, eles devem chegar hoje pela tarde. — Ele tocou o ombro de seu amigo, e continuou. — Eu sei que está preocupada com ela, também estou, mas não adianta agir dessa forma.

— Devia ter me enviado com ela.

— Talvez, mas quem iria treinar os cadetes? Gazel, você sabe como é a Sinsha, ela nunca foi a mais cuidadosa, tenho certeza que estará rindo quando chegar, pronta para lutar novamente com o Noredan. 

— Mesmo assim...

— Mesmo assim você irá ajudá-la, conversar com ela e quem sabe, talvez ela te escute. — Gazel relaxou os ombros, agora já mais aliviado.

— Desculpe Hakuro, quando o assunto é Sinsha eu perco as estribeiras.

— Eu entendo amigo, meu irmão mais velho agia da mesma forma comigo quando eu era mais novo. Tire o resto do dia para descansar, você vem fazendo um ótimo trabalho.

— Agradeço, mas prefiro continuar treinando os cadetes. Com sua licença — respondeu, já se dirigindo para fora dali, mas antes de sair totalmente, ele se virou e perguntou. — Você disse que tinha um irmão? O que houve com ele?

Hakuro não respondeu.

— Entendi, me desculpe. 

Gazel saiu e caminhou pelo longo corredor daquele edifício. Estava visivelmente preocupado com Sinsha, era de se esperar que ela se machucasse, agora quase morrer em um confronto? Isso era impensável.

Desde que conheceu Sinsha soubera que ela era especial. Uma guerreira nata, com habilidades nunca antes vistas por eles. O próprio Hakuro admitiu que suas habilidades eram e continuam sendo inferiores às dela. Se esse Noredan conseguiu dar tanto trabalho, então ele não era um inimigo qualquer.

Gazel fechou os punhos. Ele iria cumprir o acordo que fez consigo mesmo a anos atrás: proteger Sinsha, esse era seu papel como irmão mais velho. E não seria um Noredan qualquer que iria o parar.

 

 

Sete anos atrás.

Bosque Lā huna.

As folhas serenas balançavam junto ao vento. Pássaros exibiam suas canções magníficas para todos aqueles que pudessem ouvir. Dentre esses, Gazel se via encantado com a beleza da natureza em sua volta, assobiando tranquilamente enquanto voltava para casa.

Sua roupa suja de terra já não mais o incomodava. Com a enxada apoiada no ombro, ele esquecia de todo o cansaço que aquele dia o proporcionou. Trabalhar nos campos de algum nobre era a única maneira de se sustentar. Receber uma miséria de pagamento e nas melhores das hipóteses algo para comer durante o dia.

Nesse sentido Gazel era avantajado. Mesmo sendo mais novo do que os homens que trabalhavam na fazenda ele já possuía uma resistência e força acima da média. Sozinho fazia o mesmo trabalho que seis empregados e por conta disso, sempre recebia um pedaço de pão ou um pouco de água do dono da fazenda.

Mas aquilo não era uma vida reconfortante, muito pelo contrário, ele sentia a necessidade de mudança, ele sabia que a vida era muito mais que apenas arar campos e mais campos. Mesmo gostando de seu trabalho na fazenda, aceitar que ele nasceu apenas para isso entristecia seu coração.

Se perguntou o que sua mãe e seu pai diriam caso o ouvissem falar aquilo. Eles eram pessoas antigas, que seguiam as tradições passadas a eles. Mudança era uma palavra constantemente rejeitada por eles.

"Que Deus os tenha." — Pensou enquanto abaixava a cabeça.

Seu leve caminhar parou quando um esquilo saiu da moita e parou em sua frente. Ele segurava uma noz em seus pequenos bracinhos. Sua cor é um vermelho escuro, similar às madeiras daquele bosque. Gazel achou o pequeno animal fofo.

Seus olhos redondos ficaram presos em Gazel. Por mais que quisesse o esquilo não conseguia tirar os olhos dele, aquele homem bondoso passava uma tranquilidade e harmonia que nenhum outro transmitia.

Gazel sentiu uma pequena vibração no solo.

O esquilo saiu correndo.

Sem qualquer tipo de apresentação, uma criatura monstruosa surgiu pegando Gazel desprevenido. Por puro reflexo o rapaz saltou para o lado rodando seu corpo no chão impedindo assim que se ferisse muito.

A criatura que havia causado tal susto foi reconhecida por ele; coberta de lama, terra e pedras. Possuía um único chifre capaz de rasgar as árvores como se fossem um pedaço de papel. Um Hipo llyn, uma criatura muitas vezes associada a lendas terríveis de revirar o estômago.

Ele não conseguia acreditar no que estava vendo, pensava que a criatura fosse uma lenda, um verdadeiro monstro do pântano. Sem perder tempo, ele se levantou e correu na direção oposta, aquela criatura o mataria sem quaisquer remorsos.

Correndo o mais rápido que pode, ele deu uma olhada para trás e notou que a criatura não o estava seguindo. Se sentiu mais aliviado. Mesmo assim, precisava pegar mais distância para não correr qualquer risco.

Quando voltou a olhar para frente notou que um vulto passou por ele.

Sem entender direito ele apenas sentiu um leve peso sair de seus ombros. Sua enxada foi roubada dele. Olhando mais uma vez para trás ele viu que alguém segurava seu instrumento de trabalho. Uma mulher um pouco mais jovem que ele, de cabelos marrons e corpo esbelto. 

Ela estava indo na direção do Hipo llyn.

Seus olhos não conseguiam acreditar no que estava vendo. A mulher saltou de árvore em árvore e atingiu o chifre da criatura com a enxada que se despedaçou. Um golpe inútil. O monstro tentou atingir a jovem que sem dificuldade saltou sobre sua cabeça ficando do outro lado.

Com a parte de madeira da enxada, a mulher a fincou no olho da criatura o fazendo gritar em um alto som de pavor. Em seguida, a mulher pegou alguma coisa, uma pequena esfera vermelha e a jogou dentro da boca da criatura e correu para longe.

A criatura explodiu de dentro para fora.

Boa parte de seu estômago foi espalhado pelo chão. A mulher gritou em alegria erguendo ambos os braços o mais alto que pode, comemorando assim a vitória. Tudo aconteceu tão rápido que Gazel ainda estava chocado tentando entender alguma coisa.

E assim como o Hipo llyn caiu no chão sem vida, o corpo da mulher também sucumbiu aos danos que havia recebido anteriormente.

— Que porra foi essa?! — Ele deu um tapa em si mesmo quando notou que havia usado uma palavra suja. Pediu perdão.

Com cuidado, Gazel se aproximou lentamente do corpo da mulher estirada no chão. Agora olhando mais de perto, ele viu que aquela mulher estava cheia de cortes e hematomas. Seu pé também parecia torcido. Era um milagre ela estar viva e ainda conseguir lutar com um monstro daqueles.

Ele perguntou para si mesmo o que deveria fazer, caso a deixasse ali ela podia acabar sendo atacada por algum animal, alguém também poderia parecer e raptá-la. Não, Gazel logo tirou esse pensamento da cabeça, é impossível para qualquer humano competir com a força absurda dessa mulher.

— Ei! Ou! — Gazel balançou o corpo da mulher com a maior delicadeza do mundo, sentia um pouco de medo dela, receio. Independentemente do que ele fizesse ela não acordava, ele então desistiu.

 

 

— Hum...? Onde eu estou? — perguntou se levantando devagar. Sua cabeça doía muito e seu corpo formigava, ela reparou que estava toda enfaixada.

Ela estava sobre uma cama simples, em sua volta, reparou que aquela moradia pertencia a alguém bem organizado. Mesmo tendo poucas coisas, tudo estava em seu devido lugar. Alguém abriu a porta da casa.

Um rapaz um pouco mais velho que ela, alto e musculoso. Era Gazel, em suas mãos ele segurava um balde com água. Por algum motivo ele parecia feliz em vê-la.

— Ah, bom dia! Você está bem? — perguntou colocando o balde do lado da cama. — Fiquei preocupado que você não fosse acordar, seus ferimentos eram bastante sérios, mas eu os tratei da melhor forma que pude, desculpe não sou um médico.

— Quem é você? 

— Sou Gazel. — Ele pegou um pano e o colocou na água. — Você me deu um baita susto quando estava enfrentando o Hipo llyn, mesmo com o pé torcido você se movia com extrema velocidade e precisão.

— Hipo llyn...?

— A criatura... Espera, você não é uma caçadora?

— Não.

— Então o que você tinha na cabeça?! Quase se matou enfrentando aquele monstro! 

— Eu ouvi os boatos dessa criatura então a procurei, estavam a chamando de Monstro do bosque. Foi um combate divertido. — Ela sorriu de canto. — E eu levei a melhor.

— O que você tem na cabeça… — disse inconformado com as atitudes daquela mulher, se colocar em risco só para se divertir em um combate? Onde isso é divertido? Ele tirou o pano da água e o torceu.

— Deite-se.

— Não precisa tratar dos meus ferimentos, não gosto de dever nada aos outros. 

Ela tentou se levantar, mas assim que seus pés tocaram no chão ela sentiu uma forte tontura. O restante do seu corpo também doía em toda parte, parecia que seus músculos estavam rasgados. Ela não conseguiu disfarçar a dor.

Preocupado ele a ajudou a se deitar e colocou o pano sobre sua testa. Ela fechou o rosto para ele, agora sabia que estaria em dívida com o mesmo até se recuperar. Por um momento ela quase se arrependeu de ter enfrentado aquela criatura do bosque.

Após colocar o pano na testa dela, Gazel se afastou da cama e foi até uma mesa do outro lado do cômodo. Usando uma lamparina para iluminar o local, ele se sentou em uma cadeira e começou a escrever algo em uma folha de papel.

A mulher que olhava para o teto reclamava para si mesma sobre tudo. Ela ficou entediada rapidamente e voltou seu olhar para Gazel que escrevia. Ele dava constantes sorrisos conforme escrevia e isso a incomodou. Como pode ele estar se divertindo enquanto olha para um pedaço de papel? E ela ali, deitada sem conseguir nem andar direito.

— O que você está fazendo? — perguntou, mas sem resposta. — Ei!

— Ah? — Ele se virou para ela. — Precisa de algo?

— O que você está fazendo?

— Fala disso? — apontou para o papel. — Eu estou escrevendo uma canção.

— Você é um bardo? — Ela levantou a sobrancelha.

— Não, é apenas um passatempo. Quando eu era menor adorava ficar cantando para minha mãe, mesmo que minha voz não fosse das melhores — sorriu. — Acabei tomando gosto pela coisa, então escrevo até hoje no meu tempo livre.

— Ah, legal…

Gazel continuou olhando para ela, esperando que sua curiosidade a fizesse perguntar sobre o que era a canção. Entretanto ela apenas ficou quieta por mais algum tempo antes de finalmente sucumbir ao sono. 

Ele ficou feliz em vê-la bem. Depois que seus pais morreram ele viveu sozinho por vários e vários anos. Na fazendo onde trabalhava os empregados como ele não podiam ficar conversando, apenas trocavam algumas palavras nos intervalos curtos. Ele se sentia bem com a presença dela ali.

Depois de mais um tempo escrevendo, ele caiu no sono.

...

...

...

A mulher abriu um dos olhos.

Ela esperou um pouco para ter certeza de que Gazel havia dormido. Ela realmente agradecia do fundo de seu coração por ele ter a ajudado, mas tanta bondade era algo raro nos dias de hoje. Sem dúvidas, ele possuía segundas intenções que provavelmente causariam grandes problemas para ela.

Se movendo devagar e com a maior sutileza que conseguia, ela saiu da cama em que estava. Seu corpo ainda doía, combates estariam fora de cogitação por alguns meses, felizmente ela se acostumou a sentir dor e então forçou seus músculos ao limite para que conseguisse andar.

Com o máximo de esforço ela andou até a porta, se apoiou na parede e com a mão direita abriu a mesma devagar. Foi nesse momento que um forte vento entrou na casa e fez um dos papéis sair voando por toda a casa.

Ela pegou o papel.

Foi automático, ela apenas saiu de perto da porta e foi até a folha. Internamente ela se perguntou por que havia feito aquilo. Não achou uma resposta satisfatória. Sua curiosidade aflorou, ela deu uma olhada no que estava escrito naquele pedaço de papel.

 

"Em um grito horrendo, a criatura se mostrou extremamente forte,
Infelizmente para ele, a moça não tinha medo da morte.
Levada pelo vento ela o atacou,
e com um golpe o monstro derrotou!"

 

Ela soltou uma risada contida ao ler aqueles versos. "Grito horrendo? Levada pelo vento? Da onde ele tirou essas coisas?"Ela olhou para Gazel que dormia profundamente, depois olhou mais uma vez para a porta que estava entreaberta e caminhou até ela.

A mulher fechou a porta e voltou a se deitar na cama. Ainda não havia abaixado sua guarda, mas decidiu que ao menos por essa noite ela descansaria ali. Gazel não parecia ser um homem ruim, pelo contrário, ele parecia ser alguém muito amável e doce.

"Ele parece ser bem idiota também. Eu poderia matá-lo facilmente se quisesse. Quem traz uma estranha para a própria casa?" — pensou. — "Boa noite, Gazel..."

E se livrando de qualquer pensamento, ela se deixou levar e adormeceu.

 

 

Uma semana depois.

Gazel estava do lado de fora da casa cuidando de algumas flores vermelhas, ele constantemente trocava palavras com aquela mulher. Ela ainda não confiava nele, por isso nem seu nome quis revelar.

A mulher observou Gazel cuidadosamente retirar uma das flores vermelhas do chão. Ela não sabia o nome daquelas flores, mas percebeu que elas tinham alguma relação com as árvores daquele bosque. Ela estava sentada na frente da casa. Novamente o tédio da vida cotidiana a cutucava, e sem poder fazer mais nada ela começou a falar.

— Qual o nome dessa flor?

— É Filha-do-Sol. Elas nascem sempre perto dessas árvores com folhas vermelhas chamadas Alvorecer Carmesim. Preciso tomar bastante cuidado, elas podem morrer a qualquer deslize.

— Você tem gostos estranhos. — Ela virou a cabeça para o lado, observando uma borboleta que havia acabado de pousar.

— Por que acha isso? 

— Você tem todos esses músculos e os usa para brincar com flores? Para arar terra em uma fazenda? Não consigo te entender.

— Você diz como se a vida de um fazendeiro fosse algo ruim. Eu aprendi muitas coisas nesses tempos: como cuidar dos cavalos, tipos de inseto, notar se irá chover ou não.

— Isso é tão entediante! — resmungava. — Você não sente vontade de fazer nada?

— Claro que sinto. — Essa resposta a pegou de surpresa. — Eu tenho vontade de mudar muitas coisas na minha vida, mas não depende só de mim. As coisas são como são e pronto. Não há nada que eu possa fazer. Tudo o que me resta é ser como as flores, teimoso, e resistir a todos os problemas que surgiram. — Ele voltou sua atenção para as flores. — Tenho certeza que alguma vez você quis mudar algo na sua vida e não conseguiu.

A mulher abaixou a cabeça por um instante se lembrando de alguma coisa.

— A quanto tempo faz que seus pais morreram? — Gazel e ela se entreolharam. Ele não esperava essa pergunta tão repentinamente.

— Há cinco anos. 

— Você não tem irmãos? Amigos?

— Não.

— E como consegue agir de forma tão alegre? Ajudando os outros e sempre sorrindo?

— É uma boa pergunta — disse virando sua cabeça para a flor em sua frente. — Com o passar do tempo suas raízes vão ficando mais fortes, os insetos não te incomodam mais e alguns beijas flores surgem. Pitadas de alegria em forma de pólen.  

Ela ergueu uma sobrancelha sem entender nada do que ele tinha falado. Odiava respostas que deixavam a interpretação para os outros, metáforas eram coisas chatas. Mas pensando bem, parece combinar com ele. Ela se deitou no chão, fazendo uma careta.

— Você não fala coisa com coisa — resmungou novamente. — E, aliás, eu me chamo Sinsha.

— É um prazer te conhecer Sinsha. — O sorriso no rosto de Gazel se intensificou. Parece que ele conquistou a confiança dela de alguma forma.

“Um novo beija-flor chegou ao seu jardim” — pensou.

O tempo passou rápido. As feridas de Sinsha já não eram mais visíveis depois de um mês sendo tratada por Gazel. Mesmo assim ela continuou vivendo com ele, ele não foi contra a ideia, pelo contrário, ele finalmente tinha alguém para dividir seus pensamentos que não fossem folhas de papel.

Nesse meio tempo, Sinsha aprendeu a como cuidar de flores, cozinhar pratos simples e até mesmo a saber quando iria ou não chover. Suas deduções são sempre precisas. Já Gazel, aprendeu a como caçar, diferente de Sinsha que aprendia tudo rapidamente Gazel levou quase um mês inteiro para conseguir caçar seu primeiro coelho. E quando o fez, ficou com dó de matar o animal.

A vivência em conjunto passou a ser favorável aos dois. Eles aprenderam a compartilhar suas emoções e a se importar um com o outro. Gazel não era muito diferente de seus irmãozinhos do orfanato, mesmo sendo mais velho, sua humildade quase boba o fazia se meter em diversos problemas, desde de ser enganado por mercadores até a dar dinheiro demais para as pessoas de rua. Sempre que algum problema surgia, Sinsha estava ao seu lado para resolver.

Sinsha também mudou muito com o passar do tempo. Se tornou mais calma e paciente, aprendeu a olhar por outras perspectivas e principalmente a apreciar as flores e canções que Gazel tão cuidadosamente fazia. Ele ainda sim se recusava a cantar, mas Sinsha sempre insistia. Ainda sem sucesso.

Uma família se formou ali.

 

 

Seis meses depois.

— Estou indo Sinsha — dizia para ela que estava agachada cuidando de algumas flores.

— Cuidado por onde anda. Se você...

— Já sei. Não vou me meter em problemas. — Ele caminhou a passos lentos até a fazenda na qual trabalhava.

Sinsha estava cuidando de um girassol. Ela tinha ficado surpresa do quão bom sua habilidade tinha se tornado, muitas vezes, até Gazel se surpreendia. Ela olhou para os céus e reparou como as nuvens estavam próximas.

"Vai chover. Uma chuva forte." 

Ela se levantou e ergueu os braços o mais alto que podia. Tendo o restante do dia livre ela decidiu que iria passar na vila que havia ali perto, não tinha a pretensão de comprar nada em específico, apenas queria fazer algo para não se entediar. 

Ela entrou dentro de casa e notou um chapéu de palha em cima da cama. Aquele chapéu pertencia a Gazel, o dia estava bem quente e forte. A chuva apenas chegaria no fim de tarde e até lá, Gazel seria torrado pelo calor escaldante.

Sinsha pegou o chapéu de palha e saiu de casa. Se corresse, conseguiria chegar até ele e devolver o chapéu. Felizmente ela era rápida o bastante para tal ato. Quando começou a correr notou um pequeno galho quebrado no chão.

E parou.

Silêncio...

O vento empurrava as folhas das árvores fazendo algumas delas caírem no chão. Sinsha controlou a respiração e se concentrando. Havia alguém por ali. Não tinha certeza de quem era, mas aquela sensação lhe causava um grande incômodo.

Uma moita se mexeu.

Ela jogou o chapéu de pala para trás e correu naquela direção. Com o braço erguido e a mão fechada, ela estava prestes a atingir quem quer que fosse...

Um coelho ficou paralisado de medo.

Sinsha relaxou quando viu aquele pequeno animal. Soltando o ar de seus pulmões, ela viu que não havia nada com que se preocupar. De fato, seus instintos estavam piorando com o tempo, já fazia muito tempo desde que ela treinou para valer. Talvez o calor a estivesse fazendo ter alucinações.

O coelho já percebendo que não havia mais perigo por parte de Sinsha saiu pulando o mais rápido que podia. Ela suspirou e se lembrou do que iria fazer, levar o chapéu de palha para Gazel. Ela se virou de costas para a moita-

Uma estocada de uma espada.

Com seus reflexos incríveis, ela virou a cabeça junto do corpo para o lado antes daquele ataque mortal a atingir. Um homem com roupas negras e rosto coberto deixando apenas os olhos à mostra ficou realmente surpreso com a velocidade de Sinsha.

Sem hesitar, ela atingiu seu pulso esquerdo com as costas da mão, fazendo-o largar a arma. E em uma investida, usando a ponta de seus dedos ela tentou atingir os olhos daquele homem que saltou para trás. Ele quase perdeu seus olhos.

Ficou apavorado.

— Eu sabia, meus instintos não mentem. — Ela se abaixou e pegou a espada do ninja que estava caída perto de seus pés. — Quem é você?

— Eu... Eu... Sou um dos ninjas da Lótus Negra! Estamos investigando um grupo criminoso que opera nessa-

Sinsha apontou a espada para ele.

— Lótus Negra? Certo. — Sem ao menos tentar um diálogo, ela correu na direção daquele ninja assustado e desferiu um golpe horizontal em sua face.

Ele desviou por sorte mais uma vez. Quando tentou sacar sua kunai que estava em sua cintura ele sentiu seu pescoço sendo cortado pela lâmina fria da sua própria espada. Sinsha não teve piedade nem misericórdia.

— Fraco. Isso é por ter me atacado. 

Um ataque por trás.

Sinsha se defendeu de duas shurikens que foram lançadas contra ela com maestria. E então um segundo ninja saiu dentre as árvores e parou na frente dela. Alguma coisa nele era diferente se comparado ao outro, mas Sinsha não sabia dizer o que.

— Outro? Parece que tenho uma infestação aqui. — debochou.

— Se largar a arma e se render, poderemos conversar sem que ninguém saia machucado. — Ele respondeu, não se importou com a provocação dela.

— Não. É mais divertido quando machuca.

— Como quiser. — Ele retirou a máscara.

Sinsha deu um passo para trás.

De cabelos negros e olhos brilhantes. Aquele homem só podia ser definido como um caçador. Pela primeira vez as penas de Sinsha tremeram, nem ela mesma podia acreditar. Ainda assim, não fugiria do combate, ela apenas hesitou por alguns instantes.

Com a coragem reunida, ela saltou correndo na direção dele e desferiu uma série de golpes velozes. O ninja apenas se esquivou, estando bem atento a cada movimento. Ele estava se segurando. Isso a deixou mais irritada.

A velocidade dos ataques aumentou. O ninja surpreso teve que saltar para trás e colocar seus pés sobre a madeira de uma árvore. Pegando impulso ele saltou para cima de Sinsha e jogou inúmeras shurikens que foram facilmente defendidas.

"Ela é mais rápida e mais resistente do que eu. Impressionante." 

No meio de seus ataques Sinsha cortou algo estranho. Ela notou por conta do peso e da facilidade do corte. O ninja havia jogado junto das chuvas de shurikens uma pequena bomba que quando foi cortada por Sinsha espalhou uma fumaça verde sobre a área.

— Mas que merda — Tossia.

Não houve tempo de reagir. Camuflado na fumaça uma série de golpes desferidos pelo ninja atingiu o corpo de Sinsha que inalou o gás. Ela perdeu a arma e foi jogada de frente ao chão, já sendo imobilizada. O ninja a segurou a tempo o suficiente para que o gás fizesse efeito, também segurou a própria respiração para não inalar o gás por três minutos. Não demorou muito para que esse mesmo gás se dissipasse.

Sinsha era uma excêntrica guerreira, uma verdadeira prodígio. Entretanto suas incríveis habilidades físicas de nada adiantaram contra a supremacia das técnicas do ninja que agora respirava mais aliviado, sem fazer uso de Ry.

— Perdi um dos meus companheiros... — Ele voltou a olhar para Sinsha, ainda não podia acreditar que uma simples mulher conseguiu dar tanto prejuízo. — Eu preciso informar isso para o Lorde-

A pata de um urso pardo surgiu do seu lado.

Aquela não era de fato a pata de um urso, mas sim, o punho de Gazel que veio do nada, surpreendendo o tão perceptível ninja. Ele colocou ambos os braços na frente do ataque em uma tentativa inútil de se defender. O ninja se arrependeu dessa escolha.

Ele foi arremessado e teve um braço quebrado. Atravessou completamente uma árvore e quase perdeu a consciência. Se levantando com dificuldade ele viu aquele rapaz de idade próxima a sua, se curvando para conferir o estado de Sinsha.

Sua altura parecia abismal vista daquele ponto de vista. Seus músculos enormes podiam ser facilmente confundidos com o de um urso selvagem. Uma verdadeira fera em forma humana. O ninja não conseguia entender da onde aquele inimigo havia vindo.

Gazel ficou mais aliviado ao ver que Sinsha estava apenas inconsciente. Durante o seu trajeto até a fazenda ele se lembrou do chapéu de palha que havia esquecido, quando retornou e viu aquela cena ficou irado.

Um instinto protetor se despertou em Gazel que apenas se focou em salvar Sinsha. Entretanto agora ele via aquele ninja se levantar com dificuldade. Pelos seus ferimentos sabia que o ninja mal se aguentava de pé, reconheceu os trajes da Lótus Negra, os famosos ninjas que servem diretamente ao rei.

"Ele está bem machucado, não vai conseguir me acompanhar em velocidade. Tenho que pegar Sinsha-"

O ninja sumiu.

Inúmeros outros ninjas apareceram, réplicas idênticas às do original. Gazel não conseguiu processar a informação, ele foi atingido com um golpe por trás, precisamente em sua nuca que o fez cair derrotado.

 

 

Com o olhar fraco e um zumbindo em seus ouvidos, Sinsha acordou com extrema dor de cabeça. Ela não reconheceu onde estava, paredes feitas de tijolos, uma grade, e um corpo de alguém inconsciente preso na parede. 

Ela demorou para reconhecer aquele corpo. Era Gazel. Desesperadamente ela correu até o corpo do seu irmão e o balançou para que ele acordasse. Notou que o mesmo estava com alguns ferimentos, nada grave, mas o suficiente para que ela se preocupasse.

— Gazel! Gazel!

— Então você acordou. 

Sinsha olhou e viu que do outro lado da cela estava aquele ninja que lutou contra ela mais cedo. Ele estava de braços cruzados e encostado na parede, a olhando com um olhar de inferioridade. Sinsha rangeu os dentes.

— Desgraçado! Você atacou o meu irmão! — Ela correu até as grades da cela e as apertou com força.

— Foi difícil conter ele, mesmo desmaiado ele se levantava e me ataca. Provavelmente queria proteger você.

 — Não diga como se fosse uma coisa qualquer! Venha aqui seu desgraçado eu vou te matar! — Ela batia a cabeça nas barras de ferro tentando se libertar.

Em um susto ela caiu para trás.

O ninja a olhou ferozmente. Naquele momento os olhos do caçador prenderam Sinsha no chão que não conseguia fazer nada. O pavor de ser escolhida como pressa por alguém mais forte e letal que ela. Sinsha conhecia bem aquele olhar, ela mesma já tinha intimidado vários homens mais fracos que ela daquele jeito.

Mas dessa vez, ela tinha se tornado a presa machucada, que se debatia de dor na frente do predador.

— Pare com isso, Hakuro. 

Um homem surgiu, com tatuagens por todo o braço e um cabelo em dread, ele era muito mais forte que aquele ninja chamado Hakuro, Sinsha notou isso. Mesmo assim seu olhar não era de um predador, e sim, de um pai triste que olhava para seus filhos com pena.

Hakuro se curvou para aquele homem. Em um quesito de hierarquia, ele estava abaixo desse homem. O homem olhou para Sinsha.

— Há vários assuntos que desejo tratar com vocês, o primeiro, no entanto, é a vida de um dos meus subordinados que foi morto por você. — Sinsha se levantou devagar.

— Se vai me matar como forma de punição, deixe o meu irmão fora disso. Ele não matou ninguém, só queria me proteger.

— Eu sei. Fico admirado em ver a determinação de um homem tentando proteger sua família. Não se preocupe quanto a ele, irei conversar com o mesmo mais tarde. Agora sobre você. — Sinsha engoliu em seco. — Você teria interesse em ingressar na Lótus Negra?

Sinsha e Hakuro ficaram surpresos.

— Mas... Eu matei um dos seus homens.

— Sim, e receberá a punição adequada. Entretanto, não posso deixar alguém com tanto potencial escapar pelos meus dedos, conheço pessoas como vocês, feras indomáveis. Não lhe peço lealdade, mas sim, que me empreste seu poder.

Sinsha não respondeu nada.

— Você tem até amanhã para me dar uma resposta. — O homem foi embora.

Hakuro também se preparou para partir, foi parado, no entanto, por Sinsha que o chamou. Ele se virou lentamente para ela que segurava as barras de ferro.

— Quem era aquele homem? — questionou.

— Aquele era o meu lorde.

— Seu lorde?

— Sim. O Lorde Kiri.

 

 

Atualmente.

Floresta da Morte.

Sinsha abriu os olhos. Estava deitada sobre uma cama, ao seu lado, Gazel estava sentado em uma cadeira lendo alguma coisa. Ela sorriu, aquela cena era familiar.

— O que é isso? — falou o assustando.

— Que susto. Isso é um papel antigo, com uma das canções que escrevi. É sobre aquele dia em que nos conhecemos, lembra? 

— Lembro. Gazel, eu...

— Não precisa falar, eu entendo. Sua luta foi mais difícil que o esperado, mas não pense sobre isso, já estamos resolvendo.

— Hakuro está pensando em algum plano? 

— Sim, ele saiu agora, deve voltar a noite. Foi para o mesmo lugar de sempre.

— Entendi... — Ela fechou os olhos.

— Os soldados nos relatórios disseram que receberam ordens para apenas atacar a distância, sem interferir muito. — Gazel falou mais sério.

— E daí? — Ela respondeu ainda de olhos fechados.

— Mesmo quando notou que estava em desvantagem, você não recorreu à ajuda deles.

— Talvez eu seja orgulhosa.

— Ou talvez ficou com medo que o Noredan matasse algum deles.

Sinsha não respondeu.

— Quando viemos para cá, você se mostrou incomodada com algo. Por conta das tarefas, não conseguimos conversar direito, você estava sempre saindo para alguma missão. — Sinsha abriu os olhos. Eles se encararam. — Você começou a fazer todas as missões sozinha, não permitia que nenhum dos soldados entrasse em um combate direto, principalmente quando tinham que enfrentar algum soldado das Grandes Famílias. Porquê?

Sinsha... Chorou.

Em meio a soluços e lágrimas, Sinsha pela primeira vez contou sobre seu passado para alguém. Até aquele dia ela teve medo de falar sobre isso com Gazel, medo que ele a olhasse de maneira diferente.

O dia em que vinte pessoas morreram por um suposto ataque da Família Iona contra uma vila regida pela Família Nyune. Era assim que todos conheciam aquele incidente. Mas na verdade, foi o dia em que uma garota, transtornada após ver seus irmãos mortos, mudou drasticamente sua maneira de agir.
Aquele foi o dia em que Sinsha havia se tornado outra...

Coisa.



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