Volume 2
Capítulo 170: Local familiar
A caravana desceu a serra, mas não foi direto para a cidade, localizada à esquerda do lugar em que estavam. Antes de mais nada, eles precisaram atravessar um vale que separava um pico do outro e que era marcado por um riacho proveniente da água torrencial descendo da cachoeira, a qual ia direto para o mar.
Após isso, a caravana seguiu por uma trilha sinuosa, cercada por capim alto e cujo chão se encontrava tomado por pedras irregulares. Então, eles saíram ao lado de uma praia cuja areia cobria uma vasta área. O sol não estava forte naquele dia, mas, apesar disso e dos perigos de se entrar no mar, algumas pessoas, sendo a maioria adolescentes, podiam ser vistas brincando na água, conversando e correndo ao lado de algumas barracas improvisadas onde serviam comidas e bebidas.
Xiao Shui, que obrigou Ning a trocar de lado para conseguir ver melhor a praia, olhou com certa inveja para aquelas pessoas, pois tudo aquilo parecia muito divertido. Entretanto, eles não tinham ido até ali para se divertirem e por isso, apesar da enorme vontade, não pediu para fazer uma pausa ou coisa do tipo.
A caravana continuou avançando, mas, a partir daquele ponto, não demorou muito para eles conseguirem chegar na entrada da cidade. As primeiras casas surgiram muito antes do centro do povoamento e elas eram separadas umas das outras por amplos espaços de terra. Algumas estavam cercadas por arame e tiras de bambu, enquanto outras exibiam pequenas hortas de legumes e verduras.
A estrada ainda era precária naquela região, porém isso mudou quando, após subir um morro íngreme e extenso, um caminho feito de paralelepípedos se destacou, levando direto para uma área mais densa.
Diferente da capital ou até mesmo da Cidade da Fronteira do Caos, as residências dessa cidade não eram coladas umas nas outras. Talvez fosse por se tratar de um município aberto e de poucos perigos, permitindo que a população tivesse menos preocupação diante situações de emergência. Mas os terrenos preservavam certo espaço entre eles, tornando o lugar maior do que parecia.
Contudo, a despeito da aparência interiorana que a região passou a princípio, a atenção do grupo foi despertada quando eles perceberam certos traços de modernismo, como prédios prontos que passavam dos sete andares de altura e outros ainda maiores em construção.
Tal visão chamou a atenção do grupo, que ficou se perguntando que tipo de comércio funcionava ali e quais outras funções eles desempenhavam.
As ruas, largas o suficiente para passar duas grandes carruagens, não eram muito movimentadas, mas notava-se um grande número de crianças correndo de um lado para o outro e gritando alto enquanto idosos podiam ser vistos vigiando-as das varandas de suas casas.
A caravana seguiu por uma avenida comprida, despertando o interesse de alguns curiosos que paravam para olhar. Depois, eles viraram à direita e avançaram na direção em que ficava a maior concentração de prédios altos. Contudo, antes de se aproximar dos edifícios, o grupo fez outra curva e saiu numa área mais fechada e densa.
Os cavalos continuaram trotando, virando aqui e ali conforme os comandos de seus guias. Foi então que eles saíram em uma região que mostrou aos visitantes o quão privilegiados o povo daquela cidade era.
Depois de deixar os bairros mais próximos do centro e seguir rumo às periferias, a caravana saiu em uma estrada larga que ficava na beira de um penhasco. E apesar da visão intimidadora da queda e dos estrondos ensurdecedores da água se chocando contra as pedras, a cena que se abria no horizonte era bela e reveladora.
Ao longe, a imagem do fim do mundo chocava com sua visão grotesca, devorando o céu e a água e a luz, sem deixar que nada passasse por sua impetuosa presença. Mas o mar era tão majestoso e poderoso que mesmo “O Vazio” foi obrigado a ceder em determinadas partes, pois a vastidão azul continuava avançando eternamente, até uma linha em que os olhos não podiam alcançar.
Xiao Shui e Xu Xia não haviam reparado antes, mas a grande “parede” marcando o fim do mundo fazia uma curva no oceano, indicando que talvez o fim não estivesse tão próximo assim.
A caravana continuou avançando pelo penhasco e então, após uma ligeira inclinação, eles começaram a descer um morro que fazia uma curva leve para a esquerda. Após terminar a descida, depois de andar por mais alguns metros, o grupo se viu próximo de outra praia. Mas diferente da anterior, essa não era destinada ao lazer, pois era marcada por um longo cais de madeira e diversos barcos a vela ancorados ao longe, apenas aguardando o momento de zarpar.
Xiao Shui pensou que eles parariam por ali e até mesmo chegou a se preparar para descer. Mas o comboio continuou indo em frente até chegar a um lugar que, desta vez, despertou a atenção de Ning.
Não muito longe da praia ficava um grande mercado de rua, composto por diversas barracas coladas umas nas outras, formando um longo corredor e bloqueando a visão de quem estava apenas de passagem, fazendo com que muitos seus produtos fossem um mistério, já que não era possível ver muita coisa sem antes entrar no varejo. Entretanto, o Alquimista sabia bem o que era vendido ali graças ao cheiro nauseabundo de peixe cru que invadiu a cabine do veículo e os acompanhou ao longo do trajeto, até que eles enfim fizessem a última parada dentro do Império Dourado.
O cheiro de peixe foi tão forte que obrigou as meninas a colocarem a cabeça para fora da carruagem. E talvez elas tivessem pedido para parar, já que não conseguiam respirar direito. E como era de se esperar, xingaram e amaldiçoaram bastante por serem obrigadas a suportar o odor terrível.
No entanto, elas não foram submetidas ao estresse de prender a respiração por muito tempo, pois logo depois de deixar a praia, a caravana enfim chegou ao seu destino final.
Sem surpresa nenhuma, Masao escolheu um hotel perto do Porto de Falésia para passar a noite. Era o mesmo lugar em que ficou quando chegou ao Império Dourado e havia deixado uma reserva para o momento em que voltasse.
O hotel chamado: Beira-Mar; com seis andares de altura, não ficava exatamente na beira do mar. Para os hóspedes que escolhessem o local, ainda seria necessário andar algumas dezenas de metros para sentir a areia entre os dedos. Ainda assim, a rua em frente a sua entrada possuía uma vista espetacular do horizonte azul.
Quando desceu da carruagem, Xiao Shui, que já havia se acostumado um pouco com longas viagens, de fato ficou bastante impressionada ao ver a fúria que as ondas exibiam ao longe. E, embora não fosse ser abusada ao ponto de pedir por isto, desejou ficar em um quarto que pudesse contemplar toda aquela visão.
Foi nesse momento que Masao, o qual passou toda a viagem em outro carro, aproximou-se do grupo.
― Eu mandei o Yuto ir na frente para encontrar um quarto para vocês. Não esperávamos voltar acompanhado, então só fizemos reservas para o nosso pessoal ― justificou o homem que sempre mantinha a mão esquerda sobre o punho de sua espada.
― Quanto a isso, não há necessidade de se preocupar ― disse o 5º Ancião, que apesar de demonstrar gratidão pelo gesto, foi obrigado a dispensar a iniciativa. ― Há um ramo secundário de nossa Família nessa cidade. E seria desrespeitoso ficar em outro lugar sem antes consultá-los.
― Oh, sério? Aqui tem um ramo secundário? ― perguntou Xiao Ning, um tanto surpreso com a informação.
― Sim. Mas não é o da família de seu pai ― acrescentou o praticante grisalho, que acreditou ser esse o motivo da curiosidade do garoto. ― Seja como for ― virou-se para Masao. ― Você e seus homens estão convidados a nos acompanhar, se quiser.
― Não. Nós vamos permanecer aqui. ― O comandante logo tratou de dispensar a oferta. ― A gente se encontra no porto amanhã, pela manhã. Que é quando o nosso barco irá partir.
Após isso, os dois líderes discutiram alguns detalhes e depois de tudo ficar acertado, Xiao Qiao e os demais voltaram a subir na carruagem para poderem percorrer o pouco que faltava até chegar no território pertencente à Família Xiao na cidade de Falésia.
De volta ao veículo, o Ancião decidiu seguir o resto do caminho ao lado do cocheiro, para que assim pudesse orientá-lo com mais precisão quanto o trajeto a seguir.
A carruagem voltou a andar e aos poucos o grupo deixou a área costeira e avançou rumo ao centro da cidade, o qual, apesar de ser mais populoso, ainda era amplo e com poucos comércios, fazendo parecer apenas mais uma área residencial.
Mas a última parada do grupo ainda não era por ali. Os cavalos continuaram puxando o carro, virando em uma rua e subindo um pequeno morro. Até que eles deixaram as regiões principais do distrito e rumaram cada vez mais para a periferia. Depois de pouco mais de dez minutos, o bando deixou o último bairro populoso para trás e continuou seguindo por uma estrada solitária de terra, cercada por uma vegetação densa de capim alto e algumas palmeiras.
A partir desse ponto, o percurso não demorou mais do que três minutos. Foi quando, depois de passar esse tempo, a paisagem mudou e um campo aberto, composto por grama aparada e um lindo canteiro de flores silvestres do lado direito se abriu. O cheiro sufocante da maresia que em certos momentos era substituído pelo odor de peixe cru ― presente na cidade ―, foi enfim trocado por um aroma agradável de hibisco e crisântemo.
E logo à frente, dois muros paralelos de tijolos, com pouco mais de dois metros de altura, ganharam destaque por marcar o fim daquela estrada. As paredes cor de barro cobriam uma área ampla, formando uma fachada considerável. Então, elas faziam duas curvas em pontos distintos, indicando que em algum momento se encontravam, formando, assim, um perímetro demarcado.
No espaço que existia entre as duas cercas de tijolos, na parte frontal, havia um portal que, no momento, estava aberto e não possuía nenhum guarda vigiando, indicando que qualquer um poderia entrar. E foi exatamente o que o grupo de Ning fez.
Quando se aproximaram, eles não se deram o trabalho de parar e avisar que estavam chegando. A carruagem atravessou o portal e logo que fez isso, os passageiros no interior tiveram seus interesses despertados ao perceberem que haviam adentrado em uma pequena comunidade, muito acolhedora.
As casas, pequenas e feitas de bambu e folhas de palmeiras trançadas, não foram construídas de uma forma organizada, formando fileiras uma ao lado da outra como era de se esperar. Algumas ficavam mais para frente, invadindo o que parecia ser a passagem principal. Outras se escoravam no muro, como se os construtores tivessem usado aquele pedaço para facilitar a construção. E tinha aquelas que se destacavam pela sua complexidade, possuindo detalhes impressionantes feitos de tiras de bambu trançado, atribuindo um visual fascinante para a varanda, com réplicas de flores, estátuas e cestos ornamentais.
No interior do terreno marcado não tinha estradas para o tráfego de carruagens, apenas caminhos aleatórios marcados pelo pisar constante de pessoas, denunciado pela grama amassada em algumas partes e trilhas abertas no meio do capim baixo.
No entanto, a despeito da falta de organização do local, notava-se um grande número de casas que cobriam um terreno amplo e protegido pelo longo muro de tijolos, de modo que não era possível ver todas após um simples olhar ou um estudo superficial.
A entrada invasiva da carruagem não passou despercebida pelos locais. As pessoas que transitavam pela área aberta pararam suas atividades para ver quem eram aqueles que vinham de fora. Os curiosos deixaram suas casas ou colocaram suas cabeças para fora da janela à medida que gritavam por seus parentes para verem o que estava acontecendo. Não demorou muito e logo uma pequena multidão começou a se reunir na frente da comunidade.
Tratavam-se de pessoas que traziam simplicidade em suas composições. Todas vestiam roupas muito comuns e sem grandes atrativos. Não existia vaidade, de modo que tanto os homens quanto as mulheres usavam calças, bermudas e camisetas, e traziam em seus corpos sujeira do campo, denunciando o destaque para o trabalho braçal.
Seus rostos curiosos não exibiam o desgaste da miséria, embora fosse perceptível a magreza de certos indivíduos. Ainda assim, não pareciam tristes, acabados ou derrotados.
Quando atravessou o muro e entrou na comunidade, Xiao Qiao deu a ordem para parar o veículo. Assim que o cocheiro puxou a rédea, forçando os cavalos a frearem, o Ancião saltou do carro e, sem perder tempo, anunciou sua presença. Percebeu que o número de curiosos estava aumentando e pensou ser melhor evitar qualquer tipo de desentendimento.
― Não sei se algum de vocês se lembram de mim ― ele começou ―, mas estive aqui há alguns anos. Eu sou...
― 5
º Ancião Qiao! ― No entanto, antes que ele pudesse terminar, uma voz envelhecida e serrilhada o interrompeu.
Do meio da multidão, um homem baixo e de idade avançada surgiu. Seu cabelo, curto e falho em algumas partes, era tão branco que os fios pareciam sintéticos. Ele não tinha barba, o que trazia um grande destaque para as rugas e manchas em seu rosto. Suas costas haviam sofrido o desgaste do tempo, de modo que era obrigado a andar curvado, apoiado em uma bengala de madeira gasta, pois seus joelhos também já não suportavam o fardo que era o próprio peso.
― Ora, se não é o 5º Ancião Qiao!? ― O senhor de idade demonstrava uma surpresa legítima. ― Há quanto tempo não recebemos sua visita.
― Lamento pelo meu sumiço. Mas tenho andado ocupado com as questões externas da Família ― desculpou-se Xiao Qiao que, nesse momento, exibia um tom diplomático, diferente da voz baixa e contida costumeira.
Ao ouvir a troca breve de palavras, uma agitação se espalhou entre os curiosos, que começaram a apontar e cochichar à medida que notas de reconhecimento surgiam aqui e ali. Não era comum para um ramo marginalizado como o deles, localizado tão distante da Cidade da Fronteira do Caos, receber uma visita tão ilustre. Por isso, quando perceberam de quem se tratava, todos ficaram animados enquanto mais pessoas se aproximavam.
― Se o Ancião tivesse avisado que viria, eu teria preparado uma recepção calorosa ― disse o velho.
― Na verdade, eu também não esperava vir aqui ― respondeu Xiao Qiao. ― Mas acabei em uma situação inesperada e agora estou viajando para o Reino da Lua Verde. Então, se não houver problema para você, Sr. Oliver, eu gostaria de passar a noite aqui.
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