Volume 2
Capítulo 169: O fim
Após três horas de viagem, a caravana liderada por Masao já havia deixado a capital e seguia a toda velocidade rumo à Falésia. Os mais jovens, que não estavam acostumados com a visão daquela parte do império, logo perceberam que a jornada seria completamente diferente da que experimentaram para a ida à Reluzente.
A estrada era plana, na maior parte, sem buracos ou desvios grosseiros que obrigavam o grupo a fugir de uma região perigosa. Existiam indícios de tráfego frequente por todos os lados, tanto é que em pouco tempo eles cruzaram com duas carruagens solitárias transportando pessoas.
Diferente da Cidade da Fronteira do Caos e a área em volta, aquela região, assim como as demais do império, era bastante “pacífica”. O número de Bestas Demoníacas era consideravelmente menor, tanto que era possível vagar por dias sem encontrar ou ouvir o barulho de um monstro tentando aterrorizar suas vítimas.
Outra distinção notável estava na paisagem. Assim que deixou a capital, o grupo foi confrontado pela visão de campos extensos de plantações dos mais diversos tipos. De um lado da estrada era possível encontrar grãos, como milho e trigo. Do outro, os olhos se perdiam sobre amplos pomares de You Ze (pomelo), Longan (olho de dragão) e nespeira.
Nesse meio tempo, dentro da espaçosa carruagem em que Ning e os outros estavam ― que por sinal possuía assentos acolchoados e até mesmo almofadas para apoiar a lombar, além de armários abaixo dos bancos os quais eram usados para guardar comidas e petiscos ―, o clima era de deslumbre total. Xiao Shui se encontrava grudada em uma das janelas, admirando as mudanças com grande interesse E ali perto, sentada ao lado do Ancião Qiao, Xu Xia demonstrava um semblante curioso. Enquanto Ning, logo à sua frente, comentava que essa era a sua primeira vez vendo aquela parte do império.
A cena dos enormes campos de plantações, que para as garotas era uma visão nova ― pois jamais haviam visto lavouras e coisas do tipo ―, continuou sendo o destaque por algum tempo. Mas depois que elas se acostumaram e o encanto diminuiu, Xu Xia, a integrante mais recente, resolveu perguntar:
― Sei que é meio tarde para isso, mas qual vai ser o meu trabalho? ― Ela ficou tão empolgada e esperançosa por ter um motivo e uma desculpa para voltar a Cidade da Fronteira do Caos, que esqueceu de esclarecer certos detalhes importantes. Porém, como teriam muito tempo até chegar na próxima parada, parecia um bom momento para esclarecer esse e outros assuntos.
― Não sei! ― Entretanto, a resposta que recebeu do novo chefe não foi a que ela esperava. Ning abriu um meio sorriso desavergonhado e acrescentou: ― A gente descobre isso depois.
― Como assim? ― A jovem de olhos verdes olhou bem para o rapaz à sua frente com certa expressividade duvidosa, como se estivesse tentando entender se tinha sido alvo de uma brincadeira. Mas depois de alguns segundos o encarando, percebeu que talvez esse não fosse o caso. ― Você me convidou sem saber o que faria?
― Ele é assim ― resmungou Shui, que apesar de ter se sentado próxima ao preguiçoso, continuava encarando a janela. ― Faz alguns meses que eu “trabalho” para ele, só que até agora eu não sei que “trabalho” é esse. Pelo menos o salário é bom ― esboçou um sorriso divertido.
― Paga mesmo! ― Xu Xia exibiu duas moedas de ouro que tinha guardado no bolso da calça que estava usando. ― Eu achei que era brincadeira essa coisa de pagamento adiantado.
Pela primeira vez, Xiao Shui tirou os olhos da janela e encarou as duas peças douradas sobre a palma da mão de sua rival com espanto e dúvida. Quando enfim entendeu o que aquilo significava, virou-se para o Grã-alquimista ao seu lado e grunhiu em voz alta:
― Você deu dinheiro para ela?! Mas eu achei que tinha pego tudo ontem? Onde você conseguiu isso?
― É... bem... ― de repente, o Ancião Qiao, que havia permanecido calado até então, abriu a boca e, bastante constrangido, anunciou: ― Ele falou que era mais seguro deixar todo o dinheiro com a pessoa mais fraca, já que assim ninguém ia desconfiar. Então eu... eu entreguei.
― Você deu todo o nosso dinheiro para ele?! ― Apesar de ser sempre respeitosa ao se dirigir aos líderes da Família, Shui não se aguentou e se viu na obrigação de dar uma bronca no Espirituoso, que encolheu os ombros e escutou sem retrucar. ― Ficou louco?! Esse idiota fugiu e gastou mais de duzentas moedas de ouro em uma noite. Esqueceu disso?
Xiao Qiao não tinha se esquecido, é óbvio. Mas o futuro conselheiro tinha sido tão persuasivo antes de deixarem a capital que não viu problema em passar a responsabilidade adiante. Até porque, ele já estava se sentindo sufocado de ter de carregar tamanha responsabilidade. Era um valor muito alto para uma pessoa só cuidar. E se perdesse sem querer as moedas? Afinal, elas são pequenas e fáceis de serem perdidas.
― Parecia lógico ― murmurou o Ancião de cabeça baixa.
― Mas não é! ― ralhou Shui. Em seguida, ela se virou para o lado, esticou a mão e exigiu: ― Devolve!
― Achei que o dinheiro era meu ― resmungou Ning, negando-se a entregar os ganhos do leilão.
― Achou errado! ― retrucou a rígida filha de Xiao Chang. ― Agora, me entregue! Eu vou me assegurar de que não faça nenhuma burrada.
Ning hesitou bastante, mas sabia que caso se recusasse a entregar as quase cinco mil moedas, encararia uma longa discussão. Então, com o nariz torcido, ele tirou uma Bolsa de Armazenamento comum que guardava pendurada na cintura e entregou para a garota autoritária.
Desconfiada, ao receber o item, a primeira coisa que Shui fez foi sondar o conteúdo usando seu Sentido Espiritual. E quando ficou satisfeita, guardou a Bolsa junto às outras que carregava e falou:
― Eu vou ficar com ela a partir de agora. ― Não deixaria mais o aproveitador gastar um único centavo.
Nesse meio tempo, Xu Xia, que ficou assistindo a discussão acontecer sem interferir, colocou o salário antecipado de volta no bolso e, agindo como se não tivesse acontecido nada, retomou o assunto anterior.
― Como eu vou trabalhar, sem um trabalho para fazer? Você ao menos pensou, antes de me convidar?
― Antes de tomar qualquer decisão, preciso entender quais são suas melhores qualidades para saber onde vai se encaixar melhor. ― Notava-se pela expressão carrancuda, que Ning estava insatisfeito por ter sido obrigado a abrir mão de sua pequena fortuna. Mesmo assim, respondeu à pergunta de maneira séria, tentando esclarecer qualquer dúvida. ― E agora que tenho quatro pessoas trabalhando para mim, há mais opções.
― Faz sentido ― comentou Shui, avaliando o que tinha escutado. ― Camila é muito boa em preparar os ingredientes. Por isso sempre pede a ajuda dela.
― Sem falar que sua enorme curiosidade é extraordinária ― acrescentou Ning. De certa forma, queria tê-la trazido nessa viagem, ainda mais agora que estava indo curar uma doença misteriosa. ― Ela tem um ótimo potencial para se tornar uma Alquimista.
A declaração final pegou tanto a jovem de cabelo azul, quanto o Ancião Qiao de surpresa. Ele havia ouvido falar na empregada que se tornou assistente do prodígio da Família, mas não imaginou que a própria teria um talento tão excepcional. E, talvez, o mais curioso de tudo isso seja o de que o Grã-alquimista irresponsável já tenha percebido as qualidades da garota há muito tempo e esteja, provavelmente, planejando algo desde então.
Por outro lado, Xu Xia ficou mais curiosa com outra coisa.
― E você, no que é boa? ― Sabia que que Shui não possuía apreço por sua pessoa, mas se iam passar um tempo juntas, seria melhor esquecer as diferenças ou ignorá-las da melhor maneira possível.
― Mandar em mim! ― Porém, quem respondeu foi Ning, que viu a oportunidade de descontar parte de sua frustração.
E embora isso tenha provocado um sorriso discreto na antiga integrante dos Xu, como era de se esperar, teve a reação oposta em Xiao Shui, que franziu a testa e exibiu uma expressão severa.
― Isso não é verdade! ― protestou ela. ― Eu só... espera ― de repente percebeu algo. ― Você disse que tem quatro pessoas trabalhando para você? ― pareceu confusa. ― Eu, ela ― apontou para Xia ― e Camila. Quem é a quarta?
― Ah! Eu não te contei? É o seu irmão. Quando a gente estava no bar, eu pedi para ele ser meu espião dentro da Seita Waidanshu. Achei que seria inteligente ter alguém lá dentro agora que eles estão vindo nos visitar.
Naquele segundo, Xiao Shui se calou. O espanto foi tão grande que seus pensamentos pararam. Mas então, após alguns segundos com os olhos esbugalhados e a boca aberta, ela surtou!
― Você fez o meu Gege de espião da Seita com mais cultivadores do Continente?! ― O medo e anseio das consequências tomaram conta de seu coração. ― Eles checam tudo. Se acontecer alguma coisa com o meu Gege, eu vou te estrangular!
A partir desse momento, uma discussão acalorada começou. Se já não estivessem tão longe da capital, ela teria feito a caravana dar meia volta apenas para falar ao irmão que essa coisa de ser espião era brincadeira, uma brincadeira muito sem graça.
Porém, apesar do receio que tomou conta do coração da nova integrante, a jornada não parou.
Nos próximos dias, a caravana seguiu fazendo o mínimo de paradas possível. E a luxuosa carruagem alugada para servir aos habitantes da distante Cidade da Fronteira do Caos ajudou nisso, já que o conforto excessivo dos assentos os permitiam ficar sentados por horas. E quando precisavam se mover, esticar as pernas e alongar a coluna, eles não tinham problema em fazer isso, já que o veículo era alto e comprido o bastante.
Diferente da ida à capital, Ning passou a jornada acordado. À noite, ia dormir tarde e acordava cedo, graças a Shui que o forçava a despertar logo que o sol saía. Entretanto, mesmo que ela não interferisse, ele já tinha a pretensão de ficar sempre alerta.
Entretanto, por causa disso, as discussões se tornaram mais presentes e frequentes ao passar dos dias, muito diferente do que aconteceu quando deixaram a Floresta das Mil Perdições. E foi assim que Shui percebeu que o vagabundo era o grande motivo da dor de cabeça do grupo. Talvez fosse pelo tédio, mas ele sempre tentava começar algo fazendo piadas ou acusações diretas.
A vantagem de sua personalidade conflituosa é que as desavenças e brincadeiras ajudaram os dias a passar mais rápido. Além do mais, outro ponto importante que favoreceu a progressão do bando foram as estradas pouco acidentadas, que sempre avançavam pelo trajeto mais curto ou menos dificultoso.
As ruas largas de terra seguiam retas, cortando longos trechos planos, fazendo, assim, o mínimo de curva. Quando precisava contornar ou subir um trecho muito alto, ela optava por aquele que trazia menos riscos e menos desgaste. Houve até mesmo uma ocasião em que a estrada cortou uma montanha por meio de um túnel comprido e húmido. O lugar era tão escuro que por uns dez minutos os cavalos foram guiados por tochas, enquanto as pessoas dentro do veículo permaneceram no mais puro breu.
Da mesma forma que aconteceu durante a ida para a capital, Xu Xia pensou que a paisagem que encontraria seria apenas de muita vegetação densa, alguns lagos em campos abertos e diversos animais selvagens correndo e se escondendo por suas vidas. Entretanto, percebeu que estava errada logo no primeiro dia após deixarem a capital, quando, algumas horas antes de anoitecer, a caravana passou por uma vila bastante movimentada.
Na ocasião, os convidados de Masao pensaram que passariam a noite naquele lugar. Sendo sincero, eles estavam empolgados para conhecer outro povoado. Mas como o tema da viagem era “urgência”, o comandante optou por fazer o máximo de progresso enquanto ainda havia sol.
Algo parecido aconteceu no terceiro dia quando, ainda pela manhã, eles passaram por uma cidadezinha ancorada às margens de um rio pequeno. E da mesma forma que aconteceu da primeira vez, a viagem seguiu ininterrupta.
Xiao Shui e os demais estavam preparados para passar ao menos uma semana dentro da carruagem. Entretanto, para a surpresa e o entusiasmo do grupo, a principal mudança aconteceu na tarde do quarto dia.
Logo depois do horário do almoço, por volta do meio-dia, a caravana deixou a estrada principal que continuava atravessando o império para se aventurar em um caminho desgastado e maltratado por pedras grandes, cascalhos e buracos. Eles seguiram em direção a uma trilha sinuosa que cortava o meio de uma serra extensa, tomada por verde e morros irregulares.
Assim que entraram no grande conjunto de picos, o grupo foi confrontado por um barulho estrondoso de origem desconhecida e uma visão dramática, pois a estrada era apertada ― de modo que seria difícil dois veículos passarem ao mesmo tempo ― e não existia barreira ou muretas protegendo as bordas.
De um lado ficava o barranco, cortado por algum instrumento pesado. E apesar da solidez aparente do barro duro e das rochas divididas, a imagem não passava nenhum tipo de segurança, dando a impressão de que toneladas de terra poderiam desabar a qualquer instante. Uma visão reforçada pelas inúmeras rachaduras e buracos inexplicáveis.
Do outro lado, à esquerda de quem estava indo, ficava um abismo tão fundo que mesmo a copa das árvores se perdiam em meio a uma escuridão densa.
A visão, embora assustadora, encantou as passageiras mais jovens que sempre passaram a vida isoladas em um canto do grande império, pois apesar de já terem ouvido histórias, nunca haviam visto nada tão belo. E nesse ponto, mesmo Ning se viu confessado a admitir que se achava diante de uma paisagem encantadora.
E o que despertou o sentimento de admiração nas meninas não foi o abismo opressor ou as toneladas de terra ameaçadora. A visão hipnotizante começou a partir do momento em que a caravana fez uma curva acentuada na serra e, naquele momento, uma cachoeira gigante pôde ser vista despencando do alto de um pico que ficava de frente para a colina da estrada. Centenas de milhares de litros caiam sem parar, provocando um estrondoso som torrencial que ecoava por toda a região serrana.
Xiao Shui ficou pendurada em uma janela, admirando a imponente paisagem. E Xu Xia ficou na outra, igualmente comovida pela visão. E embora o abismo tivesse feito ambas temerem por uma possível queda fatal, a água torrencial abafou o medo, deixando apenas a admiração.
Entretanto, o que elas acreditaram ser a coisa mais bela do mundo, logo foi substituída por outra visão estonteante.
A caravana seguiu e outra vez fez uma curva para a direita. E naquele segundo uma criação perfeita tomou conta do horizonte. As vastas terras e matas densas foram substituídas por algo que as garotas julgaram ser, à princípio, o maior lago que já viram na vida.
Uma extensão de águas azuis tão grande que os olhos se perdiam tomou conta da paisagem. Mesmo a distância foi possível ver ondas gigantes avançando contra a encosta e desaparecendo após bater em algum rochedo. A luz do sol refletia sobre o mar, provocando as mais loucas e fantásticas fantasias nas garotas. E lá no fim, onde os olhos quase não podiam alcançar, ficava um cenário distópico, onde a luz era derrotada pela mais profunda escuridão e o azul do oceano desaparecia sem poder lutar contra o monstro que o devorava.
No mais longínquo horizonte, o que se via não eram as nuvens ou o azul indistinguível do céu e do mar. Lá, onde os olhos nus tinham dificuldade para alcançar, existia uma parede de puro breu que cortava o espaço, marcando o fim do mundo.
Xu Xia e Xiao Shui já haviam escutado falar sobre aqui, mas testemunhar pela primeira vez o abismo mais profundo conhecido pela humanidade era assustador e, porque não, desesperador.
A visão do “fim do mundo” deixou as garotas tão hipnotizadas quanto perplexas. Elas ficaram tão atraídas que por um segundo se esqueceram do mar e da bela paisagem que o compunha. Nos minutos seguintes, ambas permaneceram penduradas nas janelas, contemplando a escuridão e lutando contra o medo e profundo respeito primordial que as invadiam.
Elas ficaram tão entretidas com a concepção fantasiosa do fim que não notaram quando a carruagem começou a descer e, no fim da serra, próxima ao mar, uma cidade surgiu.
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