Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 152: Vila na cidade

A caravana contornou a torre alta e avançou por uma larga avenida que se estendia por centenas de metros. Os passageiros do carro do meio não sabiam ao certo para onde estavam indo, mas entendiam que não faltava muito para a última parada.

A carruagem virou em uma rua à direita e logo uma visão que contrastava com os prédios gigantes surgiu. Cercando uma quadra inteira, existia um muro de tijolos que passava dos seis metros de altura. De dentro do veículo não era possível enxergar o interior, mas as luzes refletindo no topo da murada indicavam que não se tratava de um terreno baldio.

― Até que enfim chegamos! ― suspirou Xiao Qiao, que sentiu a tensão nos ombros passarem ao ver a cerca que isolava o resto da cidade.

― É aqui? ― perguntou Shui, curiosa, olhando para o muro.

― Acho que sim. ― Apesar de não ter certeza, afinal a única coisa que lhe foi dita antes de partirem é que ficariam em uma instalação sob a proteção de Heloísa Valentina, o Ancião se sentia seguro em sua suposição. ― Do outro lado tem uma vila que é usada pelos membros da Seita Ebúrnea.

E como foi previsto pelo pai de Xiao Yu, uma das amigas de Shui, a caravana diminuiu de velocidade quando se aproximou de um enorme portão deslizante composto por barras de ferro que possuíam uma pequena brecha de uma para a outra.

Quando o trio de veículos chegou perto, sem precisar receber instruções, o portão foi aberto por alguém no interior e um por um eles atravessaram o muro.

Do lado de dentro, a visão que foi revelada surpreendeu todos os visitantes, incluindo o 5º Ancião, que jamais havia estado ali. Existia uma única estrada principal que seguia reta até o outro lado do quarteirão, no qual comportava uma pequena rotatória. Porém, em paralelo aos muros, era possível notar a presença de passagens feitas de lajotas e cercadas por grama bem aparada.

Entretanto, o que mais chamava a atenção era a presença de casas padronizadas que ficavam uma de frente para a outra dos dois lados da rua. Tratavam-se de casarões duas vezes maior que a mansão do tio Chang, com capacidade de abrigar dezenas de pessoas e que se igualavam em cada detalhes. O telhado de cerâmica mantinha-se oculto na parte debaixo devido a presença de cornijas brancas que cercavam toda a estrutura. Os alpendres, localizados nas portas de entradas e sustentados por colunas, eram idênticos. E até mesmo a posição das janelas era uma cópia.

Ao todo, em um primeiro olhar, notava-se que existiam oito mansões ― quatro de um lado e quatro do outro ― separadas por caminhos de lajota e grama, que funcionavam como uma divisória. Mas enquanto passavam pelas moradias, Shui reparou que as passagens laterais de pedra levavam a novas casas.

Aquela era uma vila muito maior do que parecia à primeira vista.

O lugar não estava abandonado, pois além do porteiro que abriu o caminho para a caravana, também foi possível encontrar dezenas de pessoas paradas em frente às casas, aproveitando uma conversa agradável antes de encerrar o dia.

A carruagem que carregava os guarda-costas pararam logo depois que entraram na vila. As outras duas seguiram até o final, antes de enfim encerrarem a viagem.

No instante em que o veículo parou, Xiao Shui saltou para fora às pressas de uma maneira que parecia que tinha visto uma moeda de ouro no chão. De todos naquela cabine, ela era a menos acostumada a longas viagens. Ning foi o próximo, e a primeira coisa que fez ao sair foi se espichar todo, alongando o corpo que ficou caído no carpete por vários dias.

― Esse lugar é mais bonito do que tinha escutado falar ― admitiu o 5º Ancião Qiao, deslumbrado com o varal de lanternas vermelhas que iluminavam o local. ― A base “Mil Jades” nem mesmo se compara.

― O que é isso? ― quis saber o Alquimista.

― É a instalação dos Xiaos aqui na capital ― informou Chan, que parecia bastante impressionado com a beleza do local. Ele olhava para as casas e depois para a iluminação, e então mirava os caminhos de lajota, imaginando se encontraria algo de divertido ao segui-los.

A revelação despertou o interesse de Ning, que ficou fantasiando a utilidade dessa instalação. Mas antes que realizasse outra pergunta, algo o interrompeu.

― Com licença ― Xu Xia, que acompanhou os guarda-costas no fim, aproximou-se de cabeça baixa, chamando a atenção do grupo para si. ― Eu queria agradecer por ter me deixado vir junto. ― Seu agradecimento não foi apenas para o ex-noivo que tanto criticou. A filha do Ancião dos Xiaos também estava inclusa nisso.

― Vai para algum lugar? ― Mesmo que a menina não fosse sua responsabilidade, Xiao Qiao ainda demonstrava preocupação.

― Eu... eu acho que vou procurar um lugar para ficar. ― Parecendo meio perdida, Xu Xia olhou de um lado para o outro, incerta do próximo passo. Embora já tivesse pensado no assunto, tudo ainda era muito estranho.

― Se você não sabe para onde ir, fica por aqui mesmo. Aposto que tem um monte de quarto vazio nesse lugar. ― Intrometido como sempre, Ning, exibindo seu sorriso descontraído, aproximou-se da garota e deu alguns tapas amigáveis em seu ombro. ― É bom que, assim, você participa do leilão com a gente. Sabe, não é todo dia que aparece a oportunidade de ser o convidado especial num super-leilão luxuoso. Quero dizer, nós somos convidados especiais, certo? ― perguntou, virando o rosto para trás.

― É claro que são. Todos vocês ― afirmou a grã-chanceler, que chegou perto do grupo acompanhada por Noah, mestre da Casa das Relíquias Perdidas. ― E sim. Temos muitos quartos sobrando. Fique à vontade para passar a noite ou quanto tempo precisar aqui.

― Eu não quero me aproveitar da hospitalidade. ― Xu Xia estava relutante. Diferente dos outros que se sentiam animados pela visita na grande capital, ela se mostrava abatida, sem ânimo. A voz era fraca e o semblante esmorecido.

― Essa cidade pode ser muito cruel com garotas bonitas e indefesas. Eu me sentiria responsável se algo lhe acontecesse. Então, não é incômodo nenhum. ― Heloísa Valentina tinha um sorriso receptivo e acolhedor no rosto. Estava sendo sincera.

― Seria ótimo termos um tempo para podermos conversar. ― Com sua voz trovejante, Noah roubou a atenção. ― Contudo, o leilão será amanhã. Felizmente conseguimos chegar a tempo, mas Heloísa e eu ainda precisamos acertar algumas coisas. E por isso ― parou de frente para o Alquimista. ― Você se importaria em me entregar as pílulas que serão leiloadas? Eu gostaria de colocá-las em um recipiente adequado.

Xiao Ning não se importou em abrir mão das pílulas, mas não foi ele que passou os comprimidos adiante. A dedicada funcionária, que ainda não tinha uma função específica, achou que o preguiçoso poderia acabar se esquecendo e por isso se encarregou de cuidar da tarefa.

Contudo, apesar de ter se lembrado de trazer os itens para o leilão, Xiao Shui demorou alguns instantes para passá-los adiante. Sentia-se tão fascinada e constrangida com a presença do homem que acabou se distraindo. E quando percebeu o que estava fazendo, atrapalhada e corada, apressou-se em retirar 50 pílulas de dentro de uma Bolsa de Armazenamento.

― Nós iremos nos retirar agora ― avisou Noah em tom de despedida. ― Vocês poderão passar a noite nesta casa ― indicou a mansão ao lado. ― Ela já foi preparada com antecedência. Podem escolher o quarto que quiserem. ― Ele se virou, preparando-se para sair. ― vamos, Heloísa.

A grã-chanceler despediu-se do grupo com um aceno simples e se preparou para acompanhar o companheiro. Mas antes que se afasta-se, Xu Xia chamou sua atenção:

― Senhorita Santa Mística ― ela deu um passo para frente e tentou ser educada. Mas a verdade é que se sentia tão oprimida pela presença daquela mulher que sua postura estava abalada.

― O que foi? ― Heloísa olhou para a garota, esperando pela continuidade.

― Eu queria agradecer por me deixar ficar e... ― nessa parte, ela se atrapalhou. Não sabia se era certo continuar. Mesmo assim, não deixou o constrangimento a impedir. ― Se for abuso da minha parte, por favor me perdoe, mas eu sou uma grande admiradora sua.

Desde o início da viagem, em que ficou sabendo que quem estava liderando a expedição era Heloísa Valentina de Carvalho, grã-chanceler da Seita Ebúrnea, a terceira cultivadora mais poderosa de todo o império e a mulher mais poderosa, Xu Xia quis expressar sua admiração.

Entretanto, como percebeu ao longo dos dias que se passou, era muito difícil se aproximar de uma figura tão proeminente.

― Eu li todos os livros sobre a batalha no Vale Sem Lei e a vitória contra a Seita dos Exilados foi incrível. ― Quanto mais falava, mais empolgada a jovem de cabelo dourado ficava. ― Eu fiz um relatório de suas maiores conquistas. Ainda tenho ele guardado e você... você é tão bonita ― deixou escapar.

― A mais linda dessa cidade ― concordou Ning, abrindo um sorriso galanteador.

― Eu agradeço pelo elogio ― disse a Santa Mística, ignorando o comentário do menino. ― E eu adoraria ler o seu relatório em outro momento. Porém, agora eu preciso ir.

Ah, eu entendo. ― Xu Xia recuou, sentindo-se um tanto sem graça pela maneira que agiu.

― Mas o que acha de conversarmos um pouco mais amanhã, depois do leilão? ― propôs Heloísa ao ver o quão decepcionada a garota ficou.

― Eu posso participar também? ― Apesar do convite não ter sido feito para ela, Xiao Shui percebeu que não poderia deixar essa oportunidade passar.

― É claro. A gente se vê mais tarde. Boa noite, garotas. ― E com essas palavras de despedida, a grã-chanceler partiu, deixando o grupo sozinho para explorar a mansão.

O interior da casa era tão suntuoso quanto o lado de faro. As mobílias exibiam uma decoração nobre e imponente. O dourado predominava nos detalhes e a madeira que compunha a mesa, o armário e a escada que dava acesso ao segundo andar era de um vermelho marcante.

O lugar era tão receptivo e ao mesmo tempo intimidador, que quando Xiao Ning entrou, experimentou uma sensação profunda de desbravamento. A lareira na sala principal, grande e cercada por barras de ferro, estava pedindo por companhia. E as paredes robustas e envelhecidas sussurravam versos misteriosos que clamavam por solução.

Aquele era o tipo de casa que apesar de existir tantas outras iguais, ainda possuía a própria singularidade esperando para ser explorada. Aquele era o tipo de lugar adorado por crianças.

Porém, a despeito da emoção do Alquimista, estavam todos cansados da longa viagem e agora que sabiam que ali perto havia um colchão confortável os esperando, seus corpos se tornaram de repente três vezes mais pesados. Mesmo Chan precisou recusar a proposta do amigo. E assim, exaustos, eles foram à procura do quarto em que passariam a noite.

Xiao Ning pensou em aproveitar a mansão sozinho, mas logo percebeu que era chato escutar o eco dos cômodos vazios e ficar olhando para o fogo sem ter nenhum motivo para isso. Dessa forma, decidiu se retirar também.

Embora tivesse passado a viagem inteira de olhos fechados e se sentisse cheio de disposição, graças a sua técnica, “dormir” não era uma tarefa complicada.

Os quartos começavam no segundo andar e o preguiçoso não sentiu a necessidade de encontrar um com vista melhor no terceiro. Portanto, entrou no que estava vazio e mais próximo.

Como era de se esperar, o aposento era tão luxuoso que, quando viu o interior, Xiao Ning sentiu uma sonolência justificável. Em uma das paredes existia um guarda-roupa que cobria de uma ponta a outra e as portas eram espelhos enormes que iam do chão ao teto. No outro canto ficava uma penteadeira que já vinha acompanhada de todos os adereços essenciais para o embelezamento, feminino ou masculino.

Mas foi a peça principal, que se encontrava localizada no centro do quarto, que de fato conquistou o dorminhoco. A cama era tão grande que poderia abrigar quatro pessoas e ainda sobrar espaço para que o mais agitado fique rolando a noite inteira. A parte mais alta do colchão passava da cintura do Alquimista. E a cabeceira de madeira trazia uma nobreza impecável, com arabescos florais entalhados nas bordas.

Quando viu aquilo, Xiao Ning não conseguiu se conter e se jogou contra o colchão. Seu corpo logo afundou como se tivesse se atirado sobre um amontoado de algodão e do jeito que caiu, adormeceu.

E então, a noite passou e o dia do leilão chegou.

 


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