Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 143: Última vez

O salão de reuniões foi tomado por um clima tenso que banhou as paredes do recinto com uma suspeita palpável e uma repulsa condenável. Todos encaravam Xiao Bai, curiosos para saber o motivo de sua visita.

― Eu tenho um pedido para fazer ― disse ele. ― E uma proposta.

― Que pedido seria? ― indagou Enlai, mantendo a postura digna, livre de julgamentos.

― Eu gostaria que me desse permissão para me mudar para Campo Verde. ― O Jovem Nobre não tinha a menor intenção de prolongar essa conversa.

― Você quer ser enviado para uma Família Secundária? ― estranhou. ― Por que? ― Embora já soubesse a resposta, o líder dos Xiaos sentiu a necessidade de sondar um pouco mais.

― Eu soube que minha mãe ainda vive por lá. ― Xiao Bai foi direto. ― Eu entendo que depois dos últimos acontecimentos não terei nenhum privilégio, mas se o Patriarca concordar, estarei disposto a abrir mão das minas que pertenciam ao meu avô.

― Aquelas minas deixaram de ser do ramo da sua família quando seu avô nos traiu ― retrucou o tio Chang, apresentando um inesperado tom severo.

Xiao Bai franziu o cenho e assumiu um semblante sombrio. Percebeu que tinha perdido sua maior chance de barganhar. Mas para ser franco, não esperava que isso fosse funcionar.

A tentativa de tomada de poder havia gerado consequências terríveis para todos os envolvidos e pior ainda para aqueles que incitaram a rebelião. Os Anciões sobreviventes tinham sido dispostos de seus cargos e presos, o mesmo aconteceu com os demais simpatizantes de seu avô.

Apesar de ele não ter lutado, o fato de saber o que aconteceria e não denunciar o colocou em uma situação delicada. Tinha perdido todos os seus privilégios e só não foi preso porque estava desmaiado na hora do atentado.

De cabeça baixa, postura abalada e orgulho ferido, Xiao Bai pensou por um segundo o que poderia oferecer para ter seu desejo atendido. Sem a aprovação do Patriarca, mesmo que deixasse a Cidade da Fronteira do Caos, não seria aceito dentro da Família Secundário e poderia ser, inclusive, considerado um criminoso em fuga.

Então, depois de algum tempo pensando, ele enfim se decidiu:

― Eu vou deixar a Família Principal para sempre, não vou voltar nunca mais. E todas as heranças que recebi serão dadas à Família.

A conclusão do jovem Despertado surpreendeu a todos os presentes, deixando a maior parte sem reação. O olhar severo do tio Chang foi substituído por dúvida e indecisão. A postura fria de Shui cedeu e se tornou um pouco mais branda. O Patriarca assumiu uma expressão pensativa, como se estivesse avaliando a oferta. Porém...

― E por que você faria tudo isso? ― Ning não estava muito convencido. ― Ao invés de jogar essas coisas fora, traz sua mãe para cá. Aposto que ela iria adorar morar naquele casarão que vocês têm.

A proposta feita pelo preguiçoso gerou um surpresa ainda maior, obrigando as pessoas na sala a desviarem o olhar para encará-lo. A pequena Shui parecia não ter gostado muito da sugestão, pois havia franzido a sobrancelha e feito uma carranca insatisfeita. Depois de tudo que o avô dele tinha aprontado, não era certo continuar lhe dando tantos privilégios. E seu pai concordava, já que a expressão de censura mirando o afilhado era evidente.

Xiao Bai ficou boquiaberto por alguns instantes. Estava sem reação. Decerto não esperava ouvir aquilo da pessoa que tanto desprezou nos últimos meses. Demorou algum tempo para conseguir reagir e quando enfim se deu conta da oportunidade que tinha, olhou para o Patriarca e perguntou:

― Tem certeza? ― A ansiedade em sua voz era tão notável quanto a expectativa em seu rosto. Mesmo assim, seu orgulho preferiu evitar contato com o Alquimista.

― A coisa é um pouco mais complicada. ― Usando de uma voz ríspida, o tio Chang resolveu tomar a iniciativa. ― Não podemos apenas ignorar...

― É claro! Traz todo mundo pra cá. ― No entanto, Xiao Ning resolveu intervir outra vez. ― Se tiver um tio, uma tia por aí, pode trazer também.

― Pequeno Ning, as coisas não são tão simples. ― O tio Chang estava pronto para dar uma bronca no abusado, que agia como se as decisões fossem suas. Mas, de novo, foi interrompido.

― Está tudo bem ― disse o Patriarca, concedendo a tão aguardada permissão. ― Não vejo problema em deixar sua mãe se mudar para o ramo principal. Mesmo não sendo de nossa Família, ela nunca trouxe problemas e se os relatórios que recebo estiverem certo, ela foi muito útil no lugar em que passou os últimos anos.

― Você conhece minha mãe? ― O espanto foi tremendo para o Jovem Nobre que sem perceber avançou um passo para dentro da sala.

― Conhecer, não. Mas recebo cartas periodicamente dos outros ramos. ― O Patriarca foi direto em sua resposta. ― Eu espero que entenda ― continuou ― que a questão das Minas Elementais continuam a mesma. Devido ao atentado incentivado por seu avô, elas serão indefinidamente supervisionadas pela administração da Família. E também, ainda existem remanescentes simpatizantes com os ideais de Xiao Dong. Se algum deles o procurar, espero que se lembre de hoje.

A última declaração de Enlai fizeram o rosto de Xiao Bai endurecer à medida que sua atitude se tornou hostil. Ainda não sabia muito bem o que faria dali em diante, mas sabia qual resposta precisava dar.

― Sim, senhor. Irei me lembrar.

Ele se virou e começou a se afastar. Seus passos, apesar de estarem refreados, eram pesados e um tanto afobados. O orgulhoso neto do 1º Ancião ― um jovem alto e esbelto, cabelo curto e olhos pretos e centrados, feito os de uma águia mirando a presa ― estava ansioso para a próxima jornada.

Xiao Bai partiu e mesmo após sua saída o grupo permaneceu em silêncio por alguns instantes. Enquanto Shui parecia deslocada e Ning tão à vontade quanto de costume, o tio Chang se mostrava descontente.

― Eu respeito a decisão do Patriarca ― por fim o 9º Ancião começou a falar ―, mas dar a ele tanta liberdade é a escolha certa?

― E qual o problema? O menino só quer ver a mãe ― retrucou Ning, disposto a entrar na discussão. ― Não me diga que é um daqueles que tem medo de criança.

― Geralmente, quando um Ancião fala os outros tendem a respeitar. ― O tio Chang se mostrou um tanto rabugento. ― Xiao Bai pode não ser uma ameaça agora, mas ele vai crescer. Ainda existem muitos aliados de Xiao Dong por aí. E Bai é agora o único capaz de assumir seu lugar. A última coisa que precisamos é de outra rebelião daquelas. Veja como eu e Chan terminamos! Tivemos sorte dessa vez, porém as coisas podem mudar no futuro. Além do mais, ele é muito talentoso e um dia pode querer se vingar por causa do avô.

― Mas esse dia pode nunca chegar ― retrucou Ning. ― Atacar um menino por estar com medo do futuro é muito irracional, tio. Entendo sua preocupação, só que Bai pode virar muitas coisas nesse meio tempo. Para ser sincero, ver um bando de homens se borrando por causa de um pirralho é vergonhoso. ― Em tom de despedida, ele se levantou e se preparou para partir.

― Não se trata de medo e sim... ― contudo, a frustração do tio Chang havia apenas aumentado.

― Os dois lados tem pontos interessantes ― o Patriarca de repente ergueu a voz, interrompendo o debate. Diferente de Shui, que preferiu ser discreta, o líder se viu obrigado a intervir. ― Embora Bai não tenha participado do ataque, ele sempre foi ligado ao avô. Mesmo assim, impor proibições apenas contribuirá para que a inimizade e ressentimento cresça entre nós. Por enquanto, vamos ser amigos e esperar que isso gere algum efeito nos remanescentes do ataque.

― Bem, já que vocês chegaram a essa decisão, eu estou saindo. Preciso praticar. ― Agindo como se não tivesse tido influência em nada, Ning se despediu de qualquer forma e partiu, com Shui logo atrás.

A situação dentro da Família era delicada mesmo após terem se passado semanas do ataque. A sensação de instabilidade e insegurança era grande, mas também existiam motivos para comemorar. As conquistas e descobertas feitas nos últimos dias deixaram diversas pessoas inspiradas, levando-as a planejar um grandioso futuro.

Entretanto, o responsável por criar a maior parte de tal esperança pouco sabia de seu papel na trama ― ou sendo mais específico, pouco se importava.

Ning mais uma vez se refugiou na câmara onde Genbu, seu Caldeirão Encantado, o esperava. E ali, passou o resto da tarde.

Os Xiaos de fato viviam um momento caótico em sua longa história, mas eles não eram os únicos experimentando a incerteza e a dúvida.

No dia seguinte, algo que traria consequências significativas para o futuro dos Xus estava para acontecer.

A tentativa de tomar o poder por parte de Xiao Dong não havia gerado consequências para a Família que por décadas enfrentava um significativo decaimento. Porém, aquele dia também foi marcado por tragédias para o grupo. A debandada de Bestas Demoníacas causou destruição dentro de seu território, pois algumas conseguiram furar o bloqueio defensivo. Contudo, isso não foi o pior.

Diversos cultivadores acabaram encontrando um fim prematuro no confronto contra os monstros. Praticantes importantes para a sobrevivência deles, como Virtuosos e Despertados de camadas avançadas, estavam entre as vítimas. Mas o pior foi a perda de dois de seus Anciões.

Por causa desses motivos, o clima dentro da administração era de tensão. A parte responsável por controlar toda a administração interna ― tipo o Patriarca, Anciões e outros ―, passaram os últimos dias se organizando, planejando, executando e pensando. Tudo para prevenir um possível descontrole interno.

Em contrapartida, a maior parte dos membros comuns não demonstravam anseios profundos. De fato, eles agiam como se fosse outro dia qualquer. Talvez fosse por estarem acostumados a tragédias, mas as pessoas continuavam vivendo sua vida normalmente. Apenas algumas exceções valem ser citadas.

Nesse momento, Xu Xia achava-se percorrendo as ruas da vila pertencente a sua Família, localizada próxima da Muralha Protetora do Caos. Vestindo uma calça de tecido leve e folgada nas pernas, ela andava com a cabeça abaixada, mirando as pedras no chão. A expressão em seu rosto era de alguém consumido por pensamentos. Seus olhos verde-claros, que tantas vezes passavam uma frieza superficial, estavam agora tomados por solidão e pesar.

Com o cabelo dourado solto e as pontas mais compridas batendo na cintura, ela andava sem firmeza, quase como se desejasse não alcançar o objetivo final. Mesmo sabendo que precisava fazer “isto”.

Xu Xia estava virando a esquecida de uma rua residencial quando algo chamou sua atenção.

Coiina ― grunhiu uma voz infantil de uma garotinha.

A talentosa integrante dos Xus se virou e notou que do outro lado da rua encontrava-se uma menina de quatro anos. A pequena achava-se suja de terra da cabeça aos pés e ofegava de um jeito que deixou claro que estava brincando até poucos segundos. Ela vestia uma camisa desbotada de tamanho adulto, a qual lhe cobria igual um vestido.

Oh, Ji. Bom dia! ― De repente, era como se o dia de Xu Xia tivesse ficado melhor, pois ela abriu um sorriso caloroso e falou com uma empolgação infantil. Naquele instante, qualquer frieza ou severidade que sua presença representava desapareceu e no lugar surgiu uma pessoa amável.

― Bom dia, Corina! ― disse uma voz adulta.

E ali do lado, sentada na varanda de uma casa modesta, escondida do sol morno debaixo de um telhado imperfeito, encontrava-se uma mulher numa cadeira de balanço, segurando um bebê no colo.

Xu Xia olhou para ela e acenou, demonstrando uma grande afetividade.

― Bom dia! ― E então, a garotinha chama Ji enfim respondeu. Seu rosto sujo de poeira tentava esconder um sorriso travesso e espertalhão que não enganava ninguém.

― Cadê seu irmão? ― perguntou Xu Xia desconfiada.

E em resposta, Ji acenou com a mão, pedindo-a para chegar mais perto. A Despertada se aproximou, mas não foi o suficiente. E assim, aproximou-se um pouco mais.

― Mais perto ― pediu Ji, tentando esconder o sorriso travesso. E pareceu funcionar, pois Xia agachou-se bem na sua frente.

Foi nesse momento que um menino saiu correndo de trás de algumas caixas paradas do outro lado da rua e pulou sobre os ombros da desatenta, quase a derrubando.

Ah! Eu peguei! Eu peguei ela! ― comemorou o pequeno que não tinha mais do que oito anos de idade. ― Rápido, me ajuda. Ela vai fugir. Me ajuda.

E, no mesmo instante, outro menino de idade igual, porém cabelo claro, apareceu correndo e se juntou ao amigo na ousada tentativa de derrubar a cultivadora.

Ah, seus pestinhas! ― grunhiu Xu Xia que não se mostrou nem um pouco enfurecida. ― Acham que podem me vencer?! ― Ela agarrou um pela cintura e o tirou do ombro. O outro foi puxado pelo pé e suspenso de cabeça para baixo.

Para o júbilo dos garotos, a Despertada os balançou de um lado para o outro e girou sobre os próprios pés, estendendo a brincadeira. Quando os colocou em terra firme, eles estavam tão zonzos que caíram de bunda no chão e gargalharam alto. E Ji, querendo participar da diversão, saiu correndo enquanto ria e tentava não ser pega.

Xu Xia, por sua vez, perseguiu a menina sem fazer nenhum esforço físico, mas desempenhando um grande papel teatral. E só parou quando a mãe de duas das crianças falou:

― Parem com isso, meninos. Vocês vão sujar a roupa dela.

Os pequenos não param de brincar, mas desistiram de derrubar a talentosa integrante dos Xus.

Exibindo um enorme sorriso, livre da preocupação que a fez andar todo o caminho de cabeça baixa, Xu Xia subiu os degraus que dava acesso à varanda da casa e foi logo fazendo um gesto indicando que receberia o bebê. A mamãe, feliz por poder descansar os braços um pouco, não teve problemas em passar a mais nova adiante.

― Olha só essas bochechonas! Ela engordou tanto.

― Também, não para de comer. Essa menina está acabando comigo. ― Embora estivesse reclamando, a mãe não parecia insatisfeita ou zangada.

― Eu é que queria comer essa fofura. Olha só esses bracinhos. Estão até dando dobras. ― Segurando a bebê no colo, Xu Xia a balançou e beijou sua bochecha diversas vezes enquanto fazia caretas exageradas, o que arrancou boas risadas da neném. ― Faz só uma semana que eu cuidei dela, mas parece que já cresceu tanto.

― Falando nisso, eu ainda não te agradeci por isso, não é? Tom e eu conseguimos ter nossa primeira noite juntos em muito tempo.

― Não precisa agradecer. Os meninos ficaram brincando na rua ― fez referência ao filho mais velho do casal e aos garotos da vizinhança. ― Eu só precisei tomar conta da Ji e dessa fofura aqui. ― Exprimindo uma voz infantil, outra vez encheu a bebê de beijos. ― Ela tem um cheirinho tão bom...

― Mesmo assim, obrigada. ― A mãe das crianças insistiu em agradecer. ― Você está indo aonde? No Salão Ancestral?

A pergunta repentina destruiu o bom-humor de Xu Xia, que parou de sorrir e voltou a ficar cabisbaixa e desencorajada.

― Sim. Preciso me encontrar com os Anciões. ― Sua voz saiu murcha e deprimida.

Em seguida, ela deu um último beijo e uma última fungada na bebê antes de devolvê-la à mãe. Despediu-se da mulher cuja amizade começou por um acaso e não possuía nenhum laço familiar, a não ser o nome de Família “Xu”.

E então, antes de partir, deu um abraço apertado em cada um dos meninos. Lamentou a ausência dos demais pequenos que tornam a vizinhança animada. E, por fim, deu um abraço ainda mais apertado e melancólico em Ji, pois no fundo sabia que aquela podia ser sua última vez naquele lugar, vendo aquelas pessoas. Essa podia ser sua última vez dentro do território dos Xus.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.



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