Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 1

Capítulo 93: Um poder nefasto

O Supremo-Ancião da Família Zhan, Yanlin, apesar de ser o responsável pelo acontecimento que levou a todos presentes no palanque redobrar a guarda, estava descontraído assistindo as disputas. Não era um homem de ficar pensando muito nas coisas e lançar olhares tortos para o agrupamento de outra Família não resolveria o enigma pautado.

Achava as batalhas dos jovens refrescantes. Mesmo se saíssem um pouco machucados, os riscos de morte se faziam quase inexistentes. Diferente deles, adultos, cujos combates eram travados colocando suas vidas em risco. Não lembra da última vez que teve um embate tão descontraído, focado apenas no espírito esportivo e na vontade de ganhar alguns prêmios por méritos.

Porém, quando viu camadas de fumaça desprendendo do corpo de Zhan Hu, caindo em terra feito pesadas nuvens e se espalhando pelo ambiente, seguido pelas luzes esverdeadas surgindo no meio da neblina a qual ocultava suas verdadeiras formas, não pôde deixar de se sentir desconfortável. Algo naquilo tudo o fazia lembrar da morte, do mais profundo desespero que se manifesta em terras cadavéricas.

― Eu não consigo gostar desta técnica que o pai de Zhan Hu encontrou nas Terras Sem Dono. ― bufou, assoprando pelo nariz e exprimindo uma carranca de desgosto.

― Ela também me causa calafrios. ― concordou o Patriarca Tengfei, que havia permanecido ao lado do Supremo-Ancião para impedi-lo de cometer outro ato impulsivo. ― Dar algo tão poderoso ao filho... Quanta imprudência. Está tentando matá-lo? ― acrescentou, em um tom de reprimenda.

A poucos metros de distância, quando viu os brilhos verdes ganharem vida por trás da fumaça, Xiao Shui estremeceu da cabeça aos pés, sentindo um mal-estar momentâneo. Após começar a praticar o Sentido Espiritual tinha ficado mais sensível a certas coisas e, embora não conseguisse distinguir a origem daquilo, sabia, de alguma forma, tratar-se de algo horrendo.

― Aquela técnica... ― murmurou Xiao Ning, esticando o pescoço e apertando os olhos, tentando encontrar uma vista melhor.

― Nunca vi algo igual aquilo, mas é medonho. ― comentou Xiao Chan, que sentiu os pelos do corpo eriçarem.

― Você conhece? ― indagou Xiao Shui.

― Não, eu nunca a vi. ― respondeu Xiao Ning, balançando a cabeça. ― Apenas... você lembra o que eu falei sobre usar Técnicas de Combate de nível mais elevado do que o cultivo do praticante pode acabar sendo prejudicial ao invés de ajudar?

Xiao Shui abanou a cabeça, dizendo que sim.

― Meu Sentido Espiritual ainda está muito fraco, mas se eu não estiver enganado, pela Energia Espiritual que aquela técnica emana, deve estar pelo menos no Reino Espirituoso.

― Reino Espirituoso? ― espantou-se Xiao Shui.

― Eu já vi o papai usando uma técnica do Reino Espirituoso uma vez e o poder é bastante opressor. ― disse Xiao Chan, lembrando-se da primeira vez em que deixou a Cidade da Fronteira do Caos e seu pai o guiou para fora da Floresta das Mil Perdições. No caminho encontram uma Besta Demoníaca poderosa e ele foi obrigado a usar suas melhores habilidades para se safar junto do filho. ― Mas a sensação era diferente disso. Talvez, cada uma cause emoções diferentes. ― concluiu.

― Algo do tipo. ― disse Xiao Ning. ― Além do mais, aquilo pode estar acima do Reino Espirituoso. Aquele pirralho tem que ser muito corajoso para usá-la ou muito burro. Usar uma habilidade desse nível ainda estando no Reino Mundano gera graves consequências. É por isso que, Técnicas de Cultivação está tudo bem, o cultivador pode praticá-la sem problemas independente do grau de força, apenas é preciso ter um conhecimento prévio. Mas Técnicas de Combate são diferentes. Não é impossível ativá-las, mas é preciso estar preparado para pagar um preço alto.

― Agora que você falou, depois de invocar essas luzes verdes no ano passado, Zhan Hu desmaiou no meio da batalha. ― informou Xiao Shui, que estava presente no festival anterior. ― Dizem que ele ficou inconsciente por um mês.

― Essa técnica passa uma sensação horrível. ― grunhiu Xiao Ning, balançando os ombros, como se um calafrio tivesse atravessado seu corpo. ― No atual estado, aquele garoto não consegue nem sequer extrair um décimo de seu poder. Uhu! ― estremeceu de novo. ― Não gosto nem de imaginar o poder máximo. Detesto este Elemento.

Chen Bohai já havia presenciado tal ocorrência no passado, mas na ocasião, seu corpo não tremeu tanto quanto agora. Talvez, seja porque, na época, Zhan Hu não foi capaz de manter aquela fumaça por muito tempo ou por estar distante quando a técnica fora ativada. Contudo, estando frente a frente contra aquilo, não conseguia parar de tremer. Era como se a fumaça estivesse penetrando através de seus poros, enregelando os ossos, despertando temores que não sabia ter. E para piorar tudo, as malditas bolas diáfanas esverdeadas com seu tremeluzir fraco parecia dançar uma coreografia saída de catacumbas infernais.

Ele não era de sentir medo. De fato, foram diversas as vezes que se arriscou aventurando em lugares proibidos, visitando sozinho regiões inóspitas da Florestas das Mil Perdições e tendo que fugir logo em seguida de monstros medonhos. Mas, nunca em toda a sua vida, sentiu tamanha sensação de pavor, capaz de acelerar tanto seu coração que tornava possível escutar o barulho do palpitar a despeito de toda a baderna acontecendo logo ao lado.

Forçando um sorriso enquanto gotas de suor começavam a escorrer de sua testa, Chen Bohai brincou:

Ei, ei! Se continuar fazendo isso eu terei pesadelos essa noite. ― Apesar de algo naquilo tudo estar despertando um medo primitivo nele, não estava disposto a se render por tão pouco. Seu irmão mais novo sempre o chamou de imprudente e idiota, mas a verdade é que, sabia exatamente o que precisava para superar o pavor e sair vitorioso.

Esboçando seu melhor sorriso de triunfo, ele flexionou ambos os braços expondo os bíceps que pouco tinha (afinal, era um jovem um tanto magricelo), fazendo a mesma pose que elaborava quando sua irmã começava a chorar sem parar. E, por fim, dando uma gargalhada alta, desafiou:

― Venha, eu vou mostrar a força dos meus músculos e das minhas técnicas.

Por trás da cortina de fumaça que se erguia ao seu redor, apenas traços da figura de Zhan Hu podiam ser vistos, refletido pelas esquálidas luzes verdes. Porém, ao receber tal provocação, expeliu um audível som de arquejo, rosnando feito uma besta feroz.

― O que técnicas doadas por caridade poderiam fazer contra um poder inigualável? ― retrucou, usando um tom autoritário.

Ao seu redor, as luzes piscaram, exibindo uma tonalidade vibrante e ameaçadora, mas tudo durou por apenas um instante, voltando ao brilho diáfano, oculto pela neblina esfumaçada que se erguia.

Em resposta, Chen borrai deixou escapar um meio sorriso, conforme mudava a posição do corpo.

― Errado, errado. ― disse ele. ― O que importa não é o poder da técnica, mas sim a dedicação ao usá-la. E... ― Abrindo os braços e flexionando os músculos miúdos das costas, jogou as mãos para trás com as palmas abertas. ― A pose de campeão. Lança... ― rugiu, elevando a voz até adquirir um timbre rouco e serrilhado. ― Chamas.

Duas labaredas ardentes, desenhando espirais no ar, foram atiradas em direção a figura de Zhan Hu, que se tornava cada vez menos visível no meio da fumaça.

A técnica atravessou a arena em alta velocidade, causando agitação e deslocamento na pesada nuvem cinzenta que espalhava tentáculos em todas as direções, mergulhando o perímetro num mundo descolorido.

Devido as fagulhas de calor sendo liberadas e o brilho exaltado das chamas, mais uma vez a imagem de Zhan Hu se fez visível, expondo a expressão de desgosto que amarrava sua face. E, por algum motivo, naquele momento de luz, os lumes bruxuleantes desapareceram, como se nunca tivessem existido; apenas uma miragem criada por uma mente desorientada.

Entretanto, antes que o fogo inimigo fosse capaz de lhe causar qualquer dano, pesados nacos de fumaça descamaram de seus braços, caindo no chão e se espalhando pelo piso, criando a impressão de um baque sólido. Uma cortina densa tornou a ganhar forma, sussurrando um silvo agourento. E então, as labaredas foram abafadas, perdendo seu fulgor, até desaparecerem sem deixar nada para trás, sequer uma única faísca de vida.

Nesse instante, as luzes verdes tornaram a se acender, fracas e trêmulas, espalhadas em locais distintos. A nuvem de fumaça ao redor ficou mais forte, agravando a obscuridade, mas elas permaneceram as mesmas, quase inabaláveis, imutáveis.

O que antes não passava de uma fina camada nebulosa para Chen Bohai, transformou-se gradualmente em escuridão, profunda e profana. O brilho das lanternas já não surtiam qualquer efeito de modo que o mais simples passo adiante parecia uma marcha rumo ao abismo. Porém, o mais perturbador de tudo foi perceber que as vozes das pessoas deixaram de alcançar seus ouvidos, nem mesmo os gritos de incentivos de sua família podia escutar; era uma sensação estranha, como se existisse tampões bloqueando suas orelhas ― a única coisa captada por seu sentido eram gemidos moribundos fracos e distantes e perceber isso fez seu corpo estremecer.

Sabia que estava errado, não tinha maneiras disto acontecer, mas a conclusão que chegou foi a de ter sido levado para outro mundo, um maldito e ominoso mundo.

A fumaça havia se espalhado por toda a arena, cobrindo cada canto, formando um domo denso e impenetrável. Ao redor do palco, todos os juízes, não apenas o responsável por monitorar a partida, aguçaram seus Sentidos Espirituais, buscando acompanhar o que acontecia além. Ainda assim, permaneciam calmos, demonstrando ter o controle do estranho fenômeno.

Pela primeira vez, desde o início das disputas, as pessoas que se encontravam na linha dianteira, detendo a melhor visão das batalhas, afastaram-se do palco sem a necessidade das ordens de alguém para lhes manter distantes, forçando o pessoal atrás a recuar. Temiam a demonstração que estavam testemunhando, mas, nem por isso, deixaram de comemorar e vibrar. Estavam bastantes empolgados, eufóricos pela manifestação que ansiavam por ver.

Embora demonstrassem um medo primevo da fumaça e das luzes verdes, que até mesmo dali se faziam visíveis, talvez, devido ao espírito aventureiro que os permitiam continuar vivendo ao lado de uma floresta infestada por monstros, não podiam deixar de se animar com o desconhecido.

Envolto por um enevoamento cada vez mais denso que parecia ser palpável, quase ao ponto de poder agarrar um pedaço, Chen Bohai mantinha o ânimo pela luta, mas temia dar um passo em falso e cair para fora da arena. Em meio àquela escuridão, seus sentidos se tornaram confusos, perdendo o senso de direção e equilíbrio, tendo a impressão de que poderia tombar para o lado mesmo estando parado. Porém, no fim, aquilo ainda era fumaça e sabia como se livrar dela.

Diferente de antes, precisaria mostrar uma disposição maior junto de uma irrefutável Super-Pose. Flexionando os joelhos e abaixando os quadris, de modo a quase tocar as nádegas no chão, ele posicionou os braços e apertou os punhos.

Uhhooo! ― rugiu, inflando a coragem. ― Isso não é nada. Espiral Caótica!

Deu o seu melhor salto e desferiu um pesado soco contra o ar, dando origem a uma coluna ascendente que girava feito um tornado.

Chen Bohai pôde sentir o ar ao seu redor deslocando, lançando rajadas ferozes que se chocavam contra ele, agitando sua roupa e quase o empurrando para trás. Porém, para seu espanto, o domo permaneceu intacto, sem nenhuma falha na sua estrutura, tão nebuloso e obscuro quanto a segundos antes. Da mesma maneira que aconteceu com o seu Lança Chamas, teve a ligeira impressão de sua técnica ter desaparecido, incapaz de revelar todo o seu potencial. E, em seu campo de visão, a única coisa visível permanecia sendo os esquálidos tons esverdeados, tremeluzindo feito uma maldita flama dançante, e uma fraca imagem de silhueta refletida na escuridão.

― Essa técnica vulgar não detém qualquer efeito aqui dentro. ― A voz de Zhan Hu ergueu mais à frente.

Ao seu redor, as luzes verdes cintilaram, voltando a emitir um brilho intimidador, capaz de acionar os instintos de preservação mais básicos do ser humano. Entretanto, desta vez, elas não desapareceram no mesmo instante e aumentou sua luminosidade. De repente, um forte lampejo piscou, evidenciando um tom vibrante e a mudança aconteceu logo após.

A cor esverdeada da luz incandescente mudou para um azul pálido, quase apagado, que subia e descia, como se estivesse flutuando na superfície de um lago, sendo afetada pelas marolas, seguindo o ondear.

Tomando cuidado para não se mover muito e acabar caindo do abismo ou da borda da arena, Chen Bohai se espantou ao testemunhar a mudança. Apertou os olhos, tentando forçar a vista a encontrar uma melhor visão, mas a escuridão repelia seu sentido, obstruindo a origem da coisa.

Mas, diferente de seus olhos, seus ouvidos captaram algo aterrador. Um gemido cadavérico se propagou pela nuvem de fumaça, acompanhado de outros sons singulares; um grito medonho, estridente, que aparentava vir de um lugar tão distante quanto o próprio submundo. De todos os cantos, ruídos abafados se levantavam feito um atropelo de vozes angustiadas implorando pelo alívio do sofrimento e a morte libertadora.

Chen Bohai ficou tão confuso com tudo aquilo que começou a olhar de um lado para o outro, procurando a origem das vozes, mas era tudo tão ambíguo que sequer sabia dizer ao certo se estava ouvindo coisas ou se existia alguém chamando por seu nome. Foi quando viu, ao virar de costas, um dos lumes azulados se mover.

Não era como os outros, subindo e descendo, sem apresentar deslocamentos significativos. A coisa estava indo em sua direção, tremeluzindo feito o fogo de uma vela sendo assaltada por brisas suaves, incapaz de lhe extinguir a vida.

A velocidade que a luz detinha ao rumar em sua direção não era nada impressionante, mas, nem por isso, deixava de ser rápida. Vibrando pelo ar, serpejando enquanto se deslocava, a coisa se aproximou, evidenciando seu alvo.

Naquele recinto tomado pela escuridão, a única forma que Chen Bohai enxergava dispensando grandes esforços eram os focos de luz que aparentavam não serem afetados pela fumaça. E ao ver uma daquelas existências estranhas indo em sua direção, não se apavorou; deslizou o pé direito para trás ― sem dar um passo, propriamente dito, como se verificasse se o chão continuava lá ―, firmando a base e posicionou o corpo, enrijecendo todos os músculos, assumindo uma postura de defesa.

Com os braços e as palmas estendidas para frente, vociferou:

― Muro Defensivo!

Mesmo que não pudesse enxergar, sabia que em sua frente um muro de pedra se erguia, bloqueando qualquer artifício que pudesse ameaçar sua integridade. Sentiu a própria Energia Espiritual sendo derramada, dando forma a sua técnica. E a maior prova de ter obtido êxito foi o desaparecimento do lume, uma consequência direta (acreditava) da materialização do muro.

Por um instante, aguardou a colisão decorrente do encontro de sua técnica contra a coisa desconhecida, mas nada aconteceu. Foi então que, novamente, a luz tornou a surgir, aparecendo a poucos centímetros de distância.

Vendo aquilo, Chen Bohai não pôde deixar de estranhar. Teria a maldita besta de luz contornado o Muro Defensivo? Mas isso não fazia sentido, pois o lume continuava seguindo em linha reta. Ou, quem sabe, a coisa apenas atravessou sua técnica, como se fosse algo intangível?

Ele não era bom em ficar pensando demais e mesmo que fosse, não tinha tempo. O lume já se encontrava a instantes de atingi-lo. Num movimento rápido, Chen Bohai cruzou os braços na frente do corpo e travou os dentes. Receberia o ataque de frente e aguentaria.

Porém, o evento mais estranho aconteceu em seguida. Quando a luz azulada tocou seu braço, não teve qualquer sensação de dor ou impacto esperado de uma colisão, nem mesmo o calor de algo que hora bruxuleava feito fogo. Pelo contrário, o lume atravessou sua pele como se não existissem obstáculos no caminho, provocando um frio auspicioso que se espalhou por seus ossos, diferente de tudo já presenciado. Não era igual a uma típica queda de temperatura. Algo nefasto, ominoso, despertava-lhe um pressentimento de desolação e agonia.

Mas o pior aconteceu quando a estranha existência adentrou em seu peito, perdendo-se em seu interior. Chen Bohai caiu de joelhos, os olhos lacrimejando e o corpo todo tremendo. Num movimento convulsivo de repulsão, seu estômago se revirou aflorando uma ânsia pungente e, incapaz de se controlar, começou a vomitar, jorrando jatos de comida pré-digerida e suco gástrico, que sujou o chão e espirrou em suas roupas surradas.

E quando parecia não ter mais o que colocar para fora, sentiu o gosto fraco de ferro atiçar suas papilas, indicando a evacuação de sangue e outra coisa, cujo sabor amargo não podia distinguir.

Caído no chão, apoiado pelas mãos feito um animal quadrúpede, Chen Bohai experimentou seus órgãos se remexendo, forçando a expulsão de líquidos que não podia diferenciar devido a visão obstruída e odiou cada contração, que naquele instante pareceu o prelúdio de sua morte precoce.

Quando enfim parou de vomitar, arquejava pesadamente, tendo dificuldades para respirar e temendo se engasgar durante as golfadas. Seus olhos lacrimejavam tanto que era semelhante a estar chorando, à media que as lágrimas molhavam seu rosto.

Ele usou de todo esforço para conseguir se erguer. As pernas tremiam de uma maneira que os joelhos chegavam a se chocar e os olhos estavam anuviados, tão pesados que a escuridão ao redor parecia estar girando. A sensação em todo o corpo era horrível, em particular o esôfago, cuja queimação dava a impressão de ter engolido um pedaço de carvão em brasa.

Contudo, tão logo conseguiu se colocar de pé, algo denso enrolou-se em seu corpo, feito o abraço de uma cobra, enlaçando e apertando sua presa. Pôde sentir uma entidade envolvendo seus membros, serpenteando ao longo de suas pernas e subindo por sua cintura.

Ele tentou golpear, mas seus braços, enfraquecidos, rasgaram o vazio, como se não existisse nada sufocando sua pele, apenas um aglomerado de massa volúvel que se deformava e se transformava a seu bel-prazer. Quando socava e esbravejava, podia sentir a densa cortina se moldando e o envolvendo.

Mesmo não conseguindo enxergar, sabia que era aquela maldita fumaça se enroscando em seu corpo. Debilitado, Chen Bohai tentou se libertar usando a força física, a qual parecia ter lhe abandonado. Para sua sorte, a besta volátil, ao que tudo indicava, não tinha poder o suficiente para esmagar seus ossos, pois em seu estado atual, não oferecia qualquer resistência.

No entanto, percebeu tarde demais que o objetivo nunca foi esmagá-lo. Conforme se debatia tentando se soltar da melhor maneira possível, de repente sentiu a firmeza do chão renegando seus pés. A fumaça girava em torno de seu corpo, elevando-o a novas alturas sobre a arena. A escuridão profunda tornava impossível saber o quanto havia sido erguido do solo, entretanto, o mais assustador era pensar em qual seria o objetivo final daquilo tudo.

Chen Bohai se lembrava bem do último ano, quando Zhan Hu usou essa mesma técnica e por alguns segundos o palco foi tomado por um domo feito de fumaça. Na época, a batalha não durou sequer um minuto e no instante em que a cortina cinzenta desapareceu, o adversário já se encontrava inconsciente e permaneceu assim por dois dias, recobrando os sentidos apenas após um intensivo tratamento médico.

Não querendo ter o mesmo fim, embora sentisse a mente flutuando e os pensamentos dispersos, falhando em ter um raciocínio claro, ativou sua técnica: Espiral Caótica.

O ar ao redor se agitou e uma coluna desenfreada de vento soprou, lançando rajadas em todas as direções. Aos poucos, a densa massa que o abraçava perdeu vigor, sendo dissipada pelas lufadas que se espalhavam, movimentando a nuvem ao redor e abrindo espaço.

E então, quando o aperto gerado pela densa massa se transformou em nada mais do que um leve toque, ele caiu.

Embora a liberdade fosse seu objetivo, Chen Bohai se viu surpreendido pela queda repentina. Não sabia a quantos metros de distância estava do chão e por isso se debateu descontrolado, mexendo os braços e pernas, tentando encontrar um ponto de equilíbrio. No entanto, antes de conseguir esboçar qualquer reação significativa, colidiu contra o piso de madeira.

Ele se estatelou contra o chão, caindo de braços abertos e batendo os joelhos no piso, o que gerou uma dor instantânea que se espalhou em forma de fincadas ao longo de suas pernas. Porém, a pior parte foi colidir a têmpora direita contra o solo duro. Não sentiu qualquer dor, pois por um breve instante ― um segundo, talvez ― teve a certeza de ter perdido a consciência, quando não somente seus olhos, mas todos os sentidos afundaram na escuridão.

Ao voltar a si, sentia-se desorientado, a cabeça rodando e a lucidez vacilante, apresentado dificuldades para retornar ao normal. Chen Bohai se escorou usando os cotovelos e buscou uma posição sentada em que pudesse recuperar o fôlego e reorganizar as ideias. Porém, seu senso de equilíbrio estava afetado e antes de perceber tornou a cair de lado, batendo a cabeça.

Desfalecido no chão, ele se debatia sem entender ao certo o que estava fazendo. No fundo, tinha consciência de que precisava se levantar, mas, naquele momento, sua mente se provou insuficiente para gerar qualquer tipo de pensamento lógico ou o mais simples dos raciocínios. Sua percepção havia sido tomada por um zumbido insistente que atravessava seu ouvido direito e assaltava seu cérebro, mantendo-o num estado de torpor.

Foi então que sentiu algo agarrando uma de suas pernas. Não foi como antes, quando a fumaça havia envolvido seu corpo. A criatura parecia ter mão e dedos, além de um aperto forte que prensava seu tornozelo. Ao menos julgava ser o aperto de uma mão, pois em sua condição atual não se arriscava a tomar decisões precipitadas.

De repente, a mão agarrando seu pé começou a puxá-lo, arrastando-o palco afora. Chen Bohai tentou segurar em algo, mas seus dedos deslizaram pelo piso de madeira conforme farpas penetravam sua pele ― afinal, aquelas tábuas compondo a construção não eram das mais polidas. Falhando em se prender a algo, ele girou o corpo e começou a chutar a mão com o pé livre. E ao fazer isso, a direção que estava sendo puxado mudou de maneira brusca, fazendo-o rolar de lado e lançando-o a mais agonia.

Exercendo toda sua dominância, a mão, que detinha uma força impressionante, o arremessou para o alto, ainda segurando sua perna. E então, como se seu corpo fosse o de uma boneca de pano refém de uma criança tirana, ele foi lançado de volta ao chão.

Numa tentativa de se defender de alguma forma, cobriu a cabeça usando os braços, mas mesmo isso se provou inútil, dado que ao se chocar contra o piso, gerando um baque terrível, seus membros cederam e sua testa acertou a madeira. No mesmo instante, seus pensamentos balançaram e um clarão branco piscou diante de seus olhos.

Confuso, Chen Bohai virou de lado e levou a mão até a testa. Algo quente e visco molhou seus dedos e após uma verificação superficial, pôde distinguir, com toda a certeza, uma fissura na pele dando vazão a um diminuto regato cuja cor julgava ser vermelha, que escorria ao longo de seu rosto, traçando um caminho sinuoso em volta de seu nariz.

Nesse momento, a voz de Zhan Hu, escondido no meio da fumaça de modo que apenas uma parte de sua silhueta podia ser vista, ergueu-se:

― Mesmo para um sem origem igual a você, eu poderia ser desqualificado caso o matasse. Renda-se! ― ordenou. E embora estivesse tentando ser imponente, o tom usado ao falar era fraco, desgastado.

Ouvindo as palavras do oponente ecoarem no meio da escuridão, Chen Bohai, por um breve instante, permitiu-se perder em devaneios.

No ano passado teve a feliz oportunidade de representar a Fundação Quatro Pilares no Festival da Geração do Caos. Na época em que a notícia foi anunciada, seus pais ficaram tão felizes que nos próximos meses guardaram cada moeda que sobrava das despesas mensais apenas para poderem se divertir no dia do festival; um modo de mostrar o quão orgulhos estavam.

É preciso entender que sua família é bastante humilde, não ganham mais do que algumas moedas de bronze no final de todo mês, apesar de ambos, seu pai e mãe, trabalharem até a exaustão. Por isso, aquela “economia” foi um grande feito e sacrifício, levando sua mãe a fazer trabalhos extras apenas para o dia do festival, que para eles sempre representou uma festa além das capacidades.

Todos estavam bastante ansiosos para a chegada do dia aguardado. O irmão tentou ensinar diversas táticas diferentes para enfrentar os membros das quatro Famílias (embora mais novo, ele era o mais inteligente). A irmãzinha não parava de falar sobre como seu Gege era incrível. E os pais viviam se gabando para toda vizinhança.

Porém, quando o evento chegou, Chen Bohai foi derrotado na primeira partida. Mesmo dando tudo de si e rendendo, de certa forma, uma luta digna sem deixar nada a desejar, seu adversário estava na 7ª Camada do Reino Mundano enquanto ele ainda se encontrava na 6ª, sem falar das técnicas mais potentes usadas pela outra parte.

Mesmo assim, seus pais o levaram para festejar após o fim das lutas. Diziam que apenas poder participar já era motivo de orgulho e não existia nada para se arrepender. E até certo ponto, ele concordava com isso e por esse motivo não se privou de gozar da boa comida e diversão.

Entretanto, apesar disso, não podia negar que o sentimento de decepção consigo mesmo existia, bem como a vontade de apresentar um espetáculo melhor aos seus entes queridos.

E desta vez, sua família vinha economizando a mais de seis meses, com sua mãe fazendo diferentes trabalhados, tudo na expectativa de proporcionar aos filhos um dia de diversão por seus méritos conquistados com a própria força.

― Desistir? ― Com o sangue escorrendo em seu rosto e a mente flutuando, Chen Bohai de alguma forma conseguiu se colocar de pé. As pernas tremendo e a respiração acelerada, abriu um sorriso que foi ocultado pela escuridão e declarou. ― Eu tenho meus motivos e não irei desistir por causa de alguns arranhões.

― Não venha me culpar por sua miséria. ― proferiu Zhan Hu, deixando claro seu desprezo no tom de voz.

Seguindo suas palavras, as luzes verdes se agitaram, aumentando o contraste da silhueta de seu invocador e, da mesma forma que aconteceu antes, a cor de um dos lumes se alterou, adquirindo um brilho azulado, quase ofuscado pela densa camada de fumaça.

O brilho começou a se mover, indo em direção ao seu alvo, porém, como se tivesse sido vítima de uma tormenta furiosa, o fulgor tremeu e se extinguiu, sem deixar qualquer vestígio. Não foi apenas esse, as outras luzes começaram a se apagar uma a uma, feito velas sendo assopradas. O gemido ominoso que hora ou outra se espalhava pela escuridão, enfraqueceu, transformando-se em um sussurro distante. E igual ao resto, a cortina cinzenta começou a se dispersar, permitindo, aos poucos, à iluminação das lanternas ganharem espaço.

No começo, Chen Bohai não entendeu o que estava acontecendo e se alarmou, preparando-se para receber um ataque sorrateiro. Foi então que viu Zhan Hu ajoelhado com a mão no peito e a face tão pálida quanto a de um cadáver. No lugar de lágrimas, de seus olhos e ouvidos escorria um líquido preto, que pouco lembrava sangue, a não ser pela viscosidade. Sua respiração se mostrava estranha, dando inalações profundas e aceleradas, como se o ar tivesse escapado dos pulmões.

Vendo aquilo, Bohai demonstrou ter compreendido algo, pois abriu um sorriso triunfante.

― Parece que você também não consegue usar Super-Técnicas, não é mesmo? ― debochou.

Embora a fumaça tenha se dissipado em parte, o palco permanecia enclausurado pela densa cortina cinzenta, impedindo as pessoas de fora de ter uma vista mais límpida. Porém, ao fazer seu comentário, o jovem representante da Fundação pôde ver muito bem a expressão de cólera tomar conta do rosto de seu rival.

Recusando-se a aceitar a derrota pela própria técnica, Zhan Hu tornou a invocar nacos de fumaça que despencaram de seu corpo, espalhando-se pela arena e mais uma vez mergulhando o perímetro em escuridão. As luzes verdes ressurgiram, reluzindo o seu característico tom verde, acompanhadas por um gemido moribundo. Não demorou muito e logo uma delas se transformou em um azul pálido, que disparou em direção ao alvo.

Não querendo ser atingido por aquilo e acabar perdendo o sangue que lhe restava no corpo numa seção de vômitos descontrolados, pois dentro de seu estômago não existia mais nada para ser expelido, Chen Bohai começou a correr tão rápido quanto suas pernas trêmulas e debilitadas o permitiam. Contudo, assim que deu início a uma fuga lateral, ignorando o fato de não poder enxergar nada, o lume mudou de direção, perseguindo-o de perto.

Compreendendo que não poderia escapar apenas fugindo, enquanto corria o risco de cair do palco a qualquer momento, decidiu mudar de estratégia e, sabendo que seus ataques não funcionavam contra aquela coisa de origem abominável, mirou na silhueta caída, cujos traços eram refletidos debilmente pelos focos de luz esquálida ao redor.

― Lança Chamas! ― rugiu, fraco demais para fazer uma de suas poses.

A única labareda em espiral atirada, queimou o ar ao redor, avançando em fúria contra o objetivo. Seu poder não era tão avassalador, mas, de alguma forma, os brilhos espalhados ao redor do palco perderam vigor, quase desaparecendo em sua coloração já apagada, e a cortina de fumaça perdeu densidade, transformando-se em uma névoa rala, expondo a figura pálida e sangrenta de Zhan Hu.

Não apenas isso, como, o mais próximo de todos os lumes, aquele que emitia uma matiz azul, desapareceu, apagando qualquer rastro de sua existência.

No entanto, todo o fenômeno durou apenas um instante, pois mesmo sendo dissipada, a fumaça voltou a se condensar, embrulhando a labareda e extinguindo seu calor. Contudo, isso bastou para os olhos atentos de Chen Bohai compreender algo.

― Entendo, entendo. ― repetiu ele, ressuscitando o espírito da vitória, que aos poucos estava o deixando. ― Essa sua Super-Técnica é fraca contra o meu fogo, não é? ― E ao expressar sua suspeita, foi possível ouvir Zhan Hu estalando a língua em confirmação. ― Então é isso. ― sorriu, triunfante.

Antes de ter tempo para comemorar a descoberta, outro lume se manifestou indo em sua direção. Mas desta vez, estava preparado e apesar de não ter a mesma disposição de antes, ainda tinha fôlego para lançar mais alguns ataques. E assim fez, atirando seu Lança Chamas contra o brilho azul, que se apagou no mesmo instante conforme a névoa ao redor enfraquecia.

O fogo foi sufocado logo após, mas isso deu tempo o bastante para Chen Bohai reagir. Obstinado a pôr fim na disputa, correu em direção a Zhan Hu, vociferando seu melhor grito de guerra. Um após outro, lumes azuis ganharam forma, sendo ofuscados logo após pelo Lança Chamas, que foi usado sem reservas.

Enquanto avançava, mirando a silhueta escondida por trás da fumaça, sentiu algo pesar em seu corpo, prendendo seus movimentos, e não tardou a perceber que se tratava da mesma coisa que o fez voar pela primeira vez. Sem ao menos parar para pensar se funcionaria ou não, usou sua única arma conhecida, capaz de contra-atacar a escuridão e para a sua sorte, a entidade o largou.

Chen Bohai já conseguia ver a silhueta de Zhan Hu parado a poucos passos de distância. Antecipando o ataque, apertou forte o punho e se empenhou a acelerar, apesar do corpo ferido. Entretanto, neste momento, uma sombra ainda mais profunda se manifestou perante o membro da Família Zhan, ocultando seu contorno e apagando as luzes esverdeadas em volta.

Como se tivessem saído de um lugar condenado, gritos agonizantes reverberaram por todo o lugar, tão altos e desesperados que alcançou até mesmo os ouvidos dos Mortais fora do domo cinzento, posicionados nos lugares mais distantes para assistir aos combates do Festival da Geração do Caos.

A miríade de guinchos teve tamanho clamor e horror que não houve sequer uma alma presente que não se estremeceu. Mesmo os poderosos visitantes foram incapazes de controlar o pavor tateando seus medos mais profundos.

Mas, ainda assim, Chen Bohai não se deteve e usando cada gota de sua Energia Espiritual restante, invocou seu mais poderoso Lança Chamas, que irradiou por todo o lugar, colocando um fim instantâneo a escuridão e as nefastas luzes verdes, permitindo a todos testemunhar o que acontecia no palco.

Não restou sequer um pingo de Energia Espiritual em seu corpo, deixando-o inábil para criar as mais efêmeras fagulhas. Porém, ele não se importou com isso e usando seu soco mais forte, exercido apenas por seu poder físico, desferiu o golpe final enquanto vociferava a plenos pulmões.

― Soco no Nariz da Mamãe! ― Golpeou bem no meio do rosto de Zhan Hu, cuja face se fazia coberta por um líquido preto evadindo pelo nariz, ouvidos e olhos.

O soco desferido foi tão poderoso que jogou o inimigo para trás, o qual, enfraquecido, perdeu a consciência antes mesmo de se estatelar de costas contra o chão da arena.

Apresentando dificuldades para se manter de pé, Chen Bohai balançou de uma lado para o outro dando a impressão de que iria tombar. Sua respiração estava ofegante e a coluna curvada, com os ombros caídos. Mas ele bateu o pé e se manteve firme, o corpo todo tremendo, ergueu o braço direito, mantendo o punho fechado e, triunfante, comemorou.

Ahaaaa!

Seguindo seu brado de vitória, aplausos e vivas ecoaram do público que comemorou junto, festejando tão alto quanto podiam.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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