Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.

Revisão: Dante


Volume 1

Capítulo 61: Lugar para morar

Xiao Ning deixou os arredores da casa do tio Chang e vagou em direção a cidade. Em outras ocasiões, teria se apressado para comprar os Frascos de Jade e voltar, a fim de fazer a Composição Alquímica o quanto antes, mas a Cocção que faria exigia certas condições, portanto, de nada adiantaria se apressar.

Assim, ele desceu com passadas curtas, espiando a paisagem ao redor. Enquanto caminhava deslumbrando as ocasionais construções, percebeu o quanto era vasto o território da Família Xiao, algo que nunca tinha parado para observar.

Durante a reunião marcada pelo Patriarca, milhares de pessoas compareceram. Um número muito maior do que esperava. E isso fez um pensamento surgir na cabeça de Xiao Ning: “Onde diabos todas essas pessoas moravam?”

Apesar de sua memória ser debilitada em relação a época que passou junto a Família, Xiao Ning se lembrava bem que existiam pequenos povoados dentro do território. Eram vilas resididas por jovens cultivadores e seus familiares. Mas isso era tudo que sabia.

Desde sua volta, ele já havia passado em frente a alguns desses lugarejos. Existia um logo após as Arenas de Combates e Treinamento, composto por poucas dezenas de casas comuns, muito parecidas em sua constituição, como se tivessem sido construídas não para ostentar riquezas e sim, unicamente, abrigar as pessoas que precisavam de moradia.

Ele nunca tinha parado para pensar a respeito desses vilarejos que encontrava em suas caminhadas eventuais. Mas agora, tendo tempo de sobra, refletindo sobre o assunto, ficou se perguntando se as pessoas residentes daquele lugar eram na verdade famílias vindas de ramos secundários, alocadas de improviso após se mudarem de seus lugares de origem. Isso explicaria as casas padronizadas, que pareciam ter sido construídas há poucos anos e não demonstravam qualquer sinal de envelhecimento.

Da mesma forma, essa teoria elucidaria as diferenças existentes entre aquele pequeno lugarejo e o outro povoado que conhecia muito bem.

No caminho para o seu antigo, e agora explodido, casebre, existia uma trilha que ficava a centenas de metros antes do bosque que circundava a cabana na qual morou. Seguindo essa trilha, ficava uma vila de tamanho considerável, se comparado àquela localizada próxima às Arenas de Combate e Treinamento. O tamanho não era a única diferença perceptível. As residências ali eram todas possuidoras de um charme próprio; algumas possuíam dois andares inteiros, outras exibiam fachadas decoradas a gosto do morador.

Além de casas, na vila também existia um armazém disponível para todos os moradores, bem como alguns comércios focados principalmente em produtos comuns do dia a dia, por exemplo, alimentos, especiarias, ferramentas básicas e roupas, no geral, simples. Todos os preços estavam abaixo do mercado da cidade, visto que era um mercado interno voltado para as necessidades essenciais dos habitantes da Família.

Lá morava a maioria dos cultivadores pertencentes aos Xiaos, seja ele do Reino Mundano ou Virtuoso, não existia uma regra para separar os níveis. Era ali que os membros originários do ramo principal residiam e devido aos benefícios era exigido uma pequena taxa mensal para continuar sendo um dos residentes.

Xiao Ning sabia muito bem de tudo isso porque quando tinha por volta dos quatro anos morou lá com o seu pai antes de seu falecimento. Eles possuíam uma casa própria que, segundo seu pai, pertenceu à falecida mãe de Ning. Após sua morte, ele ficou sem ter como pagar os tributos mensais e acabou tendo de morar naquela cabana caindo aos pedaços.

Na época, o tio Chang, assim como os responsáveis por chefiar a vila, deram-lhe a opção de continuar morando na casa e começar a pagar a taxa de moradia apenas quando se tornasse um cultivador, afinal, ele ainda era apenas uma criança. No entanto, por escolha própria, Xiao Ning recusou a oferta. Não se sentia bem morando naquele lugar sozinho após a morte de seu pai.

A casa ainda estava lá e agora era inteiramente dele, uma herança deixada pelos pais. Porém, a sensação de desconforto permanecia, mesmo após cinco mil anos, o que foi responsável por apagar a maioria das lembranças de seu pai. Era estranho pensar em viver na casa em que passou a infância e não tinha a menor intenção de voltar, muito menos pagar os impostos acumulados.

Entretanto, justamente por saber da existência desses dois povoados dentro do território da Família Xiao e de alguns outros, que Ning podia afirmar: Não era possível acomodar todas aquelas pessoas que compareceram na reunião com tão pouco.

E chegar a este fato fez ele ficar se perguntando, onde as outras pessoas estariam morando?

Enquanto descia um caminho um tanto inclinado, Xiao Ning ergueu a cabeça para o alto e com os olhos semicerrados estudou a posição do sol. O gigante incandescente havia passado há pouco de seu zênite e isso indicava que ainda faltava um longo tempo até o anoitecer.

Xiao Ning não tinha pressa em comprar os Frascos de Jade. Poderia fazer isso mais tarde. Dessa forma, decidiu, primeiro, saciar sua curiosidade. Ao invés de seguir em frente e descer para a cidade, ele virou em uma trilha qualquer, que nunca havia passado, ou ao menos não se recordava, e avançou, sem um destino certo para seguir.

Enquanto arrastava os pés pela estradinha de lajota, vez ou outra vislumbrava a figura de um edifício, escondido atrás de um declínio, ou algum prédio de tamanho considerável que ficava ao fim de uma bifurcação e era guardado por cultivadores no Reino do Despertar e, às vezes, por um Virtuoso. Algumas das construções possuíam fachadas indicando coisas do tipo: Biblioteca Xiao; Salão de Eventos; Tratamento de Acupuntura; Almoxarifado de Ervas Medicinais; entre outros.

No entanto, nenhum desses edifícios chamou a atenção de Xiao Ning, exceto pelo Almoxarifado de Ervas Medicinais; talvez, passe por lá em outra ocasião. Mas não era por isso que estava procurando. Dessa forma, continuou seguindo pela trilha principal, que avançava cada vez mais para o norte e aos poucos se distanciou das partes mais movimentadas.

As construções começaram a ficar mais esparsas entre si e o campo, antes, vasto e gramado, deu lugar a pequenos grupos de arbustos e arvoretas que foram gradualmente crescendo em tamanho e volume, assumindo a vegetação típica encontrada nas partes mais densas da Montanha Ancestral de Jade.

Em dado momento, o caminho se acentuou, seguindo para noroeste e o terreno aos poucos começou a ficar mais elevado, até que a estradinha de lajotas deu lugar a uma escadaria íngreme, ladeada por um bosque denso. A opressão das árvores, abafando os sons externos, deu a impressão de isolamento, como se ele estivesse se afastando de tudo e entrando numa região remota, cujo ambiente ao mesmo tempo em que parecia libertador possuía certa parcela de solidão.

No entanto, muito embora o lugar parecesse estar isolado de todo o resto, era possível notar que pessoas passavam ali com determinada frequência, dado que, apesar de se encontrar cercado por árvores, os degraus da escada não estavam cobertos por folhas, como se alguém os varresse todos os dias.

A escada era inclinada e o respaldo curto, de forma que se fazia preciso subir nas pontas dos pés, mas os degraus não somavam mais do que cinquenta. E foi apenas por esse motivo que Xiao Ning não deu meia volta e retornou, pois se a escadaria fosse mais longa, não se aventuraria a subi-la.

Após terminar de subir a construção, ele se viu entre dois caminhos diferentes: O da direita continuava subindo, rumo à montanha; e o da esquerda era uma ligeira inclinação, que mais a frente fazia outra curva para a esquerda e ia ainda mais fundo no bosque.

Xiao Ning estudou as duas passagens, ponderando sobre qual deveria tomar. Não tinha a intenção de ir para a Montanha Ancestral de Jade, mas a possibilidade de existir algo morro acima o fez hesitar quanto a qual rumo tomar. Por outro lado, a trilha da esquerda parecia levar ainda mais fundo para o oeste e se continuasse seguindo essa direção, poderia acabar deixando as imediações da cidade e entrar numa parte perigosa da Floresta das Mil Perdições. Obviamente, para esse último acontecer, seria necessário percorrer uma longa distância, porém não havia motivos para correr tal risco.

Ainda indeciso, ele olhou de um lado para o outro, enquanto coçava a cabeça. Foi quando avistou, saindo da trilha da esquerda, um homem do Reino do Despertar (3° Camada), que trazia em suas costas um fardo de bambu.

Ao avistar Xiao Ning, o homem deu um leve aceno de cabeça, em forma de cumprimento, e virou, descendo a escada, enquanto manobrava as varas de bambus de uma maneira que chegava a ser quase uma demonstração de malabarismo, em vista do caminho fechado, cujas laterais eram bloqueadas pelo bosque denso.

Depois que o homem partiu, Xiao Ning olhou para a esquerda com um olhar de quem havia chegado a uma decisão. Aquela foi a única das duas que demonstrou um sinal claro de atividade recente, portanto, daria continuidade em sua exploração através dela.

Enquanto descia a rampa ligeiramente inclinada, que se curvava para a esquerda, Xiao Ning conseguia ouvir o chilrear dos pássaros à distância; alguns cantos eram harmoniosos e se repetia vindos de lugares diferentes, como se uma comunicação estivesse sendo estabelecida de maneira nada discreta, igual a vizinhos que se penduram nos muros de suas casas para falar da vida alheia sem se importar com o tom da voz. Mas também havia canções horrendas e estridulante, que pareciam vir de uma criatura asquerosa e ameaçadora, tipo uma Besta Demoníaca.

A trilha cercada pelo bosque fez outra curva para a esquerda e desceu por mais alguns metros até que o terreno tornou a ficar nivelado quando passou por uma segunda curva, porém, desta vez, seguindo na direção oposta. Xiao Ning continuou andando em frente, contornou uma Lichia sem frutas, visto que estava fora da estação, e atravessou uma pequena ponte que cortava um ribeiro cristalino.

Conforme avançava, a vegetação aos poucos foi se transformando. O bosque perdeu volume e a estradinha de lajota foi substituída por tábuas de madeira devidamente encaixadas, formando uma ponte plana sobre a terra. Nas laterais, longas varas de bambus serviam de corrimão, presos por suportes com um pouco mais de um metro e meio de altura.

Então, de repente, o bosque deu lugar a uma peculiar floresta, que muito embora se diferenciava das convencionais, era detentora de uma beleza exuberante e única, capaz de produzir sua própria canção movida pelos rangidos e resmungos causados pelo ir e vir das estátuas verdes que não conseguiam se manter firmes em seus lugares, balançando feito às ondas de um lago aberto, sempre que era atingido por uma lufada intensa e acentuada.

Em frente à Xiao Ning se encontrava uma floresta de bambu cujas hastes se alongavam de uma maneira exótica tentando alcançar o céu. A copa era de uma maleabilidade harmônica, elegante; quando um bambu pendia para o lado, oprimido pelas rajadas mais violentas de vento, os outros ao redor seguiam seu exemplo, inclinando-se em uníssono.

No entanto, as varas possuíam bases sólidas ― pois quanto mais perto do solo, mais robustas elas eram ―, de modo que, por mais castigadas e obrigadas a se curvar que fossem, mesmo quando uma tempestade caía sobre elas, sempre voltavam a se erguer, mirando o céu.

A floresta de bambu possuía uma vastidão considerável. Mesmo tentando ver além, os olhos de Xiao Ning eram incapazes de alcançar o fim daquele amontoado resiliente. Ali, a luz do dia parecia ganhar um estranho tom esverdeado. Naquele estreito corredor, cujo teto deixava escapar nada mais do que uma nesga de luz, o ambiente era moldado à sua própria maneira, com um ar refrescante e pacífico, diferente da Floresta das Mil Perdições, abafada, húmida e opressora.

Xiao Ning passeou devagar, admirando seus entornos e deixando seus ouvidos gozarem dos rangidos ecoantes dos bambus se chocando uns contra os outros. Essa era uma visão que ele não tinha há muito tempo, naquele instante, sentiu uma paz interior inexplicável. E a despeito de não ter encontrado nenhuma das aldeias que procurava, considerou aquilo uma recompensa mais do que justa pelos seus esforços.

Enquanto caminhava, deixando os pulmões se encherem do ar refrescante e único que circundava o local, desfrutou de uma vontade genuína de querer se encostar em um canto e tirar um longo e merecido cochilo. O tédio que havia sentido estava aos poucos dando lugar a velha e boa preguiça, do tipo que se tem após aproveitar um bom almoço depois de uma manhã cansativa de trabalho duro.

Uma letargia, de súbito, tomou conta dele, fazendo-o soltar um longo e prazeroso bocejo enquanto esticava os braços para o alto, alongando todo o corpo. Xiao Ning inspirou profundamente, prendendo o ar dentro dos pulmões por alguns segundos e quando expirou, deixou escapar um gemido agradável e muito bem-humorado.

Ele estudou os arredores, procurando um lugar aberto entre os bambus, para poder se acomodar e tirar um cochilo.

Foi então que sentiu... Algo, ou melhor, alguém, o estava seguindo.

Xiao Ning lançou um olhar de esguelha, mas não viu qualquer vestígio de um ser humano. Não havia ninguém à vista. Quem quer que fosse, estava tentando se esconder.

Naquele lugar isolado, não era estranho até mesmo os mais sutis dos passos ecoar feito uma pedra sendo jogada numa gruta e se chocando contra a parede rochosa. No entanto, esta pessoa era muito bem treinada, visto que não deixava escapar sequer um leve ruído.

Se não fosse o Sentido Espiritual, não teria sequer notado sua presença. O perseguidor estava, de alguma forma, tentando ocultar até mesmo a Energia Espiritual, muito provável, através de uma técnica, apesar de deixar a desejar quanto a eficiência.

Quando se trata de técnicas de ocultação de Energia Espiritual, existe uma grande diferença entre cultivadores e Bestas Demoníacas.

Algumas bestas são tão boas em esconder sua presença que passariam despercebidas por qualquer coisa, incluindo cultivadores do mais alto nível. Ela poderia estar ali, a um palmo de distância, que não seria possível localizá-la através do Sentido Espiritual. Esse ardil sorrateiro é algo que faz parte delas, de sua natureza. A sobrevivência dessas criaturas muitas vezes depende de tal habilidade.

Contudo, para humanos é um pouco diferente. Existem muitas habilidades e artimanhas capazes de disfarçar a Energia Espiritual de um cultivador, mas não há técnicas que consigam apagar completamente os vestígios deixados por esse artifício. O que um praticante consegue fazer é mascarar algumas camadas de seu cultivo ― no máximo, um Reino ― e distorcer a Energia Espiritual para tornar mais difícil a detecção, e mesmo nesses casos, perto de alguém hábil no uso do Sentido Espiritual, o disfarce se torna inútil.

Xiao Ning estava longe de ser considerado um excelente usuário do Sentido Espiritual nesta vida, por isso demorou para perceber a presença do estranho, mas assim que tomou conhecimento de sua existência, pôde afirmar sem qualquer vestígio de dúvida: 7° Camada do Reino do Despertar.

Mas, de repente, uma segunda presença surgiu e se juntou à primeira. A pessoa que apareceu por último era ainda mais discreta e competente no uso da técnica de ocultação, pois Ning não conseguiu julgar ao certo em qual camada se encontrava, apenas que estava no Reino Virtuoso.

Tentando não chamar atenção e denunciar que já havia descoberto os dois indivíduos, ele continuou andando, deixando escapar um bocejo falso, conforme lançava olhares discretos sobre os ombros, buscando conseguir uma visualização direta. Enquanto caminhava, ponderou sobre quem poderia estar o seguindo. Num primeiro momento, considerou ser alguém enviado pelo tio Chang, de novo, pois ele parecia estar preocupado com as saídas do afilhado e também não seria estranho querer garantir a segurança dele, dado que era o único Alquimista na Família.

No entanto, logo desconsiderou essa possibilidade. Afinal, o tio Chang havia sim falado que designaria alguém para resguardá-lo,  mas nada tinha sido acertado, a única coisa que ficou confirmada é que o Patriarca também estava preocupado com sua proteção.

E uma vez que a iniciativa parecia não ter vindo do Patriarca, restava apenas uma possibilidade: O 1° Ancião Dong.

Após o pronunciamento feito, não seria estranho que Xiao Dong enviasse alguém para confrontá-lo. A questão era, estavam ali para tentar “persuadi-lo” ou matá-lo?

Enquanto estudava a floresta de bambu ao redor, Xiao Ning ponderou a respeito de diversas possibilidades, mas no fim, chegou à conclusão de que nada adiantaria ficar especulando. Assim sendo, parou, virou-se e proferiu bem alto, fazendo sua voz reboar em um tom grave:

― Vão ficar escondidos até quando? Andem logo e apareçam! Estão atrapalhando minha soneca!

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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