Volume 1
Capítulo 3: Dúvidas Divergentes
— Ei! o garoto ainda está vivo? — Uma voz longínqua ecoou.
O homem que estava de pés diante de mim apenas virou suas duas pupilas carmesins na direção da entonação.
Um alívio me consumiu. Seu olhar frívolo desviando-se de mim foi como um predador ignorando sua presa.
A garota que vi massacrar as feras anteriormente vinha correndo em nossa direção, ela carregava consigo um grande sobretudo negro que balançava pelos ventos como se fosse uma capa. Bem descolado eu diria.
— Uh... ufa... parece que ele está bem heim? — perguntou ela um pouco ofegante da pequena corrida que deu até nós.
— Mas e quanto a toda essa sujeira? Você deveria ter pegado mais leve, olha só pra isso! — Reclamou a mulher ao olhar para o cavaleiro de cabelo espetado na minha frente.
— Eu salvei o moleque, era só isso que precisávamos fazer.
Ele a retrucou com um tom de voz emburrado.
A garota desconhecida passou pelos corpos decapitados dos animais que poderiam ter me devorado vivo.
Seus passos dessa vez eram mais suaves e de certa forma calmos. Acolhedores.
Ela não parecia mais carregar aquele grande rifle de cor escarlate consigo.
“Pra onde aquela arma tão bonita foi?”, me perguntei internamente.
Passo. Passo.
Um suave sorriso que veio acompanhado da sua voz.
— Ah tanto faz, só me deixa ver o garoto. — disse a mulher ao empurrar o homem marrento na minha frente.
— Tch! Como quiser. — Ele apenas se afastou com um olhar arrogante.
A mulher trajando um sobretudo negro e um peitoral de metal se agachou diante de mim com um olhar piedoso.
— Como você está? Acabou sendo ferido em algum lugar? — perguntou ela de maneira leve como se estivesse falando com uma criança indefesa.
— A-acho que estou bem. — respondi um pouco desconfiado e sem nem perceber acabei desviando meu olhar.
As suas pupilas cor de âmbar me analisaram de um jeito curioso e parecia até que nunca tinham avistado algo do tipo. — Essas suas roupas são bem diferentes, não é? Você morava em algum país estrangeiro? — indagou ela.
“O que há de errado com minhas roupas? São eles que estão usando um bando de paradas bizarras!”, ponderei meio incomodado.
— Bem, sobre isso... eu não sei, desculpe.
Patético. Eu nem mesmo consegui fazer contato visual com ela sem contar que essa foi a única resposta que consegui dar.
Apenas sua presença me deixou nervoso.
— Tá começando a me irritar já. — O homem mal humorado com uma cicatriz no rosto se aproximou de nós agressivamente.
— Po-por favor Zakio, não vamos começar outra confusão ok?
A mulher de sobretudo o segurou levemente e tentou acalmá-lo.
Ela pareceu um pouco constrangida com a atitude grosseira do tal Zakio.
Essa estranha dupla me deixou inquieto, quem eram eles e por quais motivos me ajudaram?
Talvez isso fosse um evento obrigatório para o início da jornada que o protagonista embarca ou coisa do tipo.
“Pelo jeito essa mulher não parece ser alguém ruim, mas esse cara é bem mal encarado. Merda, sinto que ele poderia me socar até a morte por causa de um simples deslize.”, a insegurança me consumia quanto mais eu pensava.
— Hehe... É... peço perdão pelo meu colega aqui, ele é meio pavio curto, sabe? — se desculpou a mulher de sobretudo e cabelos negros. Ela tinha um sorriso de acolhimento.
— T-tá bom então né. — Ao responde-la eu apenas me levantei do chão batendo a poeira das minhas calças.
Parte do meu fôlego já parecia ter se recuperado, mas minha respiração ainda era meio pesada, não era do meu feitio ser tão atlético desse jeito.
Com isso pude analisar um pouco melhor a mulher vestindo o grande sobretudo. Ela era até que bem alta e o seu físico não parecia ser muito comum pra seu sexo.
“Talvez ela pratique algum exercício físico ou coisa do tipo. É um belo corpo eu diria”, tive um pensamento curioso, mas é claro que eu nunca iria dizer tal coisa em voz alta, isso por motivos óbvios.
Eu facilmente me distraio quando se trata da fisionomia de alguma garota forte, por isso me privei de tentar pensar demais sobre isso nesse momento.
Isso por fim acabou confirmando que sim, eu definitivamente ainda era o mesmo esquisitão de sempre, mas não era minha culpa.
— Enfim, você parece confuso, acho melhor tentarmos começar por algo mais simples e depois partirmos para as perguntas mais difíceis. Que tal nos apresentarmos? — Ela fez uma sugestão para mim de maneira amigável e levantou sua mão.
— Ah s-sim. É um prazer.
Eu apertei a mão dela que em resposta se apresentou de maneira educada.
— O prazer é todo nosso, o meu nome é Incis, Incis Katulis. O meu amigo aqui que partiu aqueles lobos em pedaços se chama Zakio Sperr.
O companheiro que ela me apresentou apenas me observou de braços cruzados sem dizer uma palavra, ele realmente não transpareceu que tinha ido com a minha cara.
O tal de Zakio olhou para Incis e desviou seu olhar logo em seguida de maneira arrogante.
Incis com seus olhos dourados voltou o foco para mim um pouco estressada com seu companheiro.
— Puxa vida... ok. Onde estávamos? Ah sim! As apresentações. Você ainda não nos disse o seu nome né? — Incis indagou abrindo um sorriso sutil.
“Como diabos ela consegue sorrir logo após trocar olhares com um cara desses?!”, essa questão permeou pela minha mente antes da minha resposta.
— O meu nome é Jack, Jack Hartseer... eu tenho dezesseis anos também. Eu sei que você não perguntou minha idade, mas sei lá, achei que fosse importante citar isso. — Minha voz saiu meio tímida e travada, mas eu consegui me apresentar até que bem.
Incis fez uma expressão surpresa ao escutar minha resposta.
— De-dezesseis? Uau, você é bem novo. Eu em compensação já tenho dezoito, envelhecer não é legal. — reclamou ela com um tom de insatisfação fazendo beicinho.
Não me senti surpreso sobre isso, afinal ela já tinha uma aparência até que bem “madura”, entretanto o jeito seu jeito de falar era estranho, não parecia de alguém muito velho pelo menos pra mim.
“Ela tenta imitar uma personalidade fofa ou coisa do tipo? Isso é meio escroto.”, julguei internamente.
— Não reclame atoa Incis, eu sou o mais velho aqui afinal.
Quem disse isso de maneira convencida foi Zakio, o cavaleiro de cabelo ruivo cruzou seus braços me observando da cabeça aos pés.
— Oh! é verdade, você tem vinte e... oito né? — Incis desviou sua atenção para ele com um tom de empolgação.
— Como é? Eu pareço tão velho assim? — Zakio olhou para a sua companheira de maneira furiosa.
— Fo-foi mal, eu só estava zoando Ok? — Se desculpou Incis acuando-se rapidamente.
“Até mesmo ela se sente meio ameaçada as vezes então.”, eu pensei em alivio quando vi essa estranha situação se desenrolar entre os dois.
— Deixando isso de lado, Jack você não parece ser daqui. Poderia nos mostrar os seu Bio Menu?
Ela me fez outra pergunta... e mais uma vez eu não conseguia responder, isso estava ficando até que previsível.
— Bio Menu? — Olhei para ela um pouco confuso com a pergunta.
— Pera, você não sabe o que é o Bio Menu? — Incis piscou seus olhos em confusão.
— Se-seria um problema se eu não soubesse?
A resposta que dei foi outra pergunta, simplesmente vergonhoso. Eu coçava minha bochecha em constrangimento.
— É claro que é um problema cara! — Ela suspirou antes de prosseguir. — Então isso só deve significar uma coisa...
Uma face pensativa era a única expressão que Incis tinha agora, ela ficou em silêncio após terminar suas palavras e então jogou seus olhos dourados para Zakio.
— Será que não estamos sendo precipitados? Talvez esse idiota só está com medo de nos mostrar as suas informações. — sugeriu ele me olhando de canto.
Esse cara realmente não gostou de mim, pensando bem isso até que foi bom, porque ele também não me deu motivo nenhum para gostar dele, puta cara chato.
— Hm, eu não acho que seja isso. Jack, pode me falar como veio pra cá?
Os olhos âmbar da mulher simpática diante mim fixaram-se sobre minha presença com essa rápida pergunta.
“Como eu vim pra cá... como vim... é verdade, eu não consigo me lembrar como vim pra cá. Puta merda! se eu falar isso é capaz de Zakio cortar minha cabeça! Mesmo que eu force minha mente ao máximo só me lembro que vi um tipo de luz branca.”, eu me esforçava pra tentar lembrar de algo útil enquanto o nervosismo crescia.
— F-foi mal, eu não lembro de nada mesmo.
Não tive saída, tinha que ser honesto. Com uma resposta dessas eu me preparei para o pior.
Incis fez um rosto meio abismado em contra partida.
Zakio suspirou e então andou até mim de maneira calma. — Tem certeza disso cara?
Seu tom de voz era calmo, porém seu olhar... era como um tigre faminto.
Foi uma clara ameaça e eu confirmei isso com o leve calafrio que senti.
— Eu juro, não estou mentindo, p-por favor não faça nada comigo Ok?
Eu minuciosamente pedi por misericórdia para o homem de olhos avermelhados chamado Zakio.
“Que merda... por que eu não consigo me opor a esse cara? ele mal me conhece e já está me tratando super mal sem motivo algum, sinto raiva, mas o medo é maior.”, eu suprimia meus sentimentos dentro dos pensamentos.
Incis deu um longo suspiro e olhou para mim de maneira tensa.
— Ok, vamos nos acalmar um pouco. Você não lembra de nada, não sabe o que é o Bio Menu... você é um Lost então? — questionou ela com uma das sobrancelhas levantadas.
“Lost?”, essa palavra estranhamente me parecia familiar.
— Antes de tudo, vamos encontrar um lugar melhor pra conversar sobre isso, esses lobos no chão estão começando a feder. — reclamou Zakio.
— Tudo bem então. Jack, se avistar algum movimento estranho nos avise, por hora apenas nos siga. — E então virando-se de costas para mim, a lindíssima mulher de estatura alta e olhos dourados começou a andar.
A parte de trás de sua capa escura balançava com o leve relevo das suas curvas, seus longos cabelos negros ondulavam junto.
Eu desviei meu olhar tentando não notar os peculiares detalhes que deixaram meu rosto meio abobado.
“Foco cara, foco! Você ainda precisa saber se está dentro de um sonho.”, me incentivei em pensamentos.
Dando um passo a frente eu me prontifiquei para acompanhar Incis.
“As coisas estão realmente ficando interessantes agora, mesmo sem ter tantas respostas eu estou sendo tratado bem por uma garota! Estou emocionado... obrigado deus!”, pensei em emoção.
Eu chorava internamente enquanto caminhava próximo da mulher responsável por esse sentimento.
Tudo estava acontecendo muito rápido e de maneira confusa, mas eu tentei voltar pro foco e quebrar um pouco minha cabeça.
“Bio Menu, esse era o nome do bagulho né? Eles ficaram bem surpresos quando descobriram que eu não sabia nada do Bio Menu.”, tentei encaixar peças em minha mente.
A única coisa que me lembrava um “menu” era aquela estranha tela brilhante que vi flutuar no meio do prédio onde acordei.
Tinha coisas escritas nela também. Juntando tudo isso eu decidi levantar uma hipótese.
— Se-senhorita... — chamei a atenção de Incis com um tom de voz um pouco hesitante.
[Alguém Desconhecido]
Corta!
A lâmina de cristal carmesim deixou seu rastro avermelhado pelo ar.
Quebra!
A madeira partiu-se bruscamente.
O cavaleiro com uma armadura de carvalho teve sua cabeça separada do pescoço.
Meu corpo foi banhado com o sangue que jorrou pelos ares tingindo as paredes e o chão do corredor escuro.
[Você eliminou 1 Mors Musco!]
Um vulto voou na minha direção.
Eu joguei meu corpo levemente para a direita me esquivando das garras de madeira da arvore demoníaca.
Vupt!
Um pulo.
Eu chutei o chão lançando meu corpo como uma bala na direção do tronco com um rosto destorcido.
A lâmina viajou de cima para baixo.
Com um único balançar da espada de cristal o corte na vertical partiu o tronco no meio.
Guooooorgh!
O grito retorcido e agoniado da planta possuída ressoou.
[Você eliminou 1 Daemon Arbor]
Os dois pedaços de madeira caíram para ambos os lados.
[O combate acabou!]
[Você recebeu 45 Ranking Points!]
Em alguns segundos o único som restante no corredor cheio de vinhas e paredes esverdeadas era a minha respiração pesada.
“Pelo jeito subir esse Ranking é bem complicado...”, pensei abaixando a espada de escarlate ao dar um suspiro.
Pelo menos eu já sabia como dominar parte dessa estranha habilidade.
Criar cristais de sangue facilmente e até mesmo moldar eles em armas como a espada que se tornou uma mão na roda.
Qualquer gota de sangue poderia ser usada, tanto minha quanto dos inimigos. Manipular o sangue, bem psicodélico eu diria.
Antes de tudo eu resolvi abrir meu Bio Menu e ver como a situação estava indo.
[Bio Menu]
[Nome: Kyra Zylliun]
[Título atual: Demônio do sangue]
[Raça: Meio-Daemon]
[Perícia em Vitalis: LV1]
[Próximo Ranking exige: 1.000 Pontos de perícia.]
[Ranking: D]
O brilho carmesim do painel repleto de informações me deixou meio zonza.
— Certo... O número de pontos pro próximo Ranking abaixou mesmo. — Minha voz cansada ecoou pelo corredor esverdeado.
Isso era de certa forma fascinante, parecia até um jogo.
De qualquer modo a única informação realmente valiosa que esse menu mostrava era o meu nome e a tal “raça”.
Kyra Zylliun, esse era o meu nome de acordo com o Bio Menu.
Minha raça tinha um nome estranho... Isso me dava um pequeno receio, como diabos eu era? Essa raça influenciava na minha aparência?
Até agora eu mal sabia como era minha face portanto esse era um dos meus principais conflitos.
“Minha idade... Eu queria saber isso também.”, pensei com os olhos revirando o painel.
Meu corpo parecia bem saudável e tinha bastante energia, quando eu passava meus dedos sobre minha cabeça haviam duas protuberâncias pontudas.
Além disso eu tinha uma fisionomia meio robusta, meus músculos eram até que bem desenvolvidos e as articulações eram muito flexíveis.
“Aqui estou eu de novo... Sempre analisando tudo de uma maneira detalhista.”, pensei meio enfadada.
Eu ignorei todas essas dúvidas sobre mim mesma e olhei o cenário ao meu redor.
Esse lugar ainda era confuso demais.
Os painéis mágicos disseram que se tratava de uma “Dungeon”, eu já tinha ouvido falar desse nome muitas vezes, mas só não conseguia saber onde e quando.
— Kyuuu... — dei um suspiro escorando minhas costas na parede cheia de musgo e sangue, — eu já estou presa nessa Dungeon a um bom tempo. — Pensei em voz alta ao observar o fundo do interminável corredor mal iluminado.
Mesmo que já fizessem mais ou menos 3 semanas que eu havia acordado nesse mundo, tudo ainda era muito novo pra mim.
Eu fechei meus olhos respirando fundo e escorregava minhas costas na parede lentamente.
“Por que? Onde estou? Quem eram aquelas pessoas que eu vi serem mortas no vilarejo?”, milhares de perguntas preenchiam minha mente.
A imagem do fogo, os gritos de agonia e o som das armas disparando impiedosamente... Foi horrível.
Pelo visto o lugar onde deveria ser meu lar foi totalmente destruído por um tipo de força militar, todos foram mortos.
Por sorte consegui fugir e me esconder dentro desse templo labiríntico.
Apesar de ser cheio de criaturas e quebra-cabeças era melhor do que ficar naquele caos confuso.