Ultima Iter Brasileira

Autor(a): Boomer BR


Volume 1

Capítulo 11: Face Oculta

 

— J-jack! — Um grito distante me chamou, mas minha visão e audição deixaram de funcionar como deviam... apenas o silêncio sobrou.

Os arredores foram se escurecendo cada vez mais.

Meus olhos a lacrimejar e essa dor descomunal ardendo.

Meu coração começou a bater mais fraco e a cada batida eu conseguia sentir a lâmina amolada esfregar sobre a carne perfurada que tentava bombear sangue, mas falhava e expelia o líquido carmesim pela minha garganta.

Náuseas, dor de cabeça, a ardência da ferida interna e externa que a adaga cravada fez. Uma dor ardente e latejante em todas as partes.

“Arde... dói muito.”, meus olhos lacrimejantes e arregalados tremiam olhando para baixo, para a lâmina que empalou meu peito.

Gurgh! — Meu estômago embrulhou e eu vomitei tudo que tinha pra fora juntamente do sangue enquanto a dor espinhenta queimava.

Eu tentei erguer a mão para parar o sangue vazando de minha boca, isso apenas formou uma poça vermelha sobre minha palma, que desceu para o solo como uma nascente.

Tum. Tum.

Duas batidas. Após duas últimas e suaves batidas meu coração parou.

“Sangue... tem sangue... sangue pra todo lado, na minha mão, na minha boca, no meu peito, na lâmina...”, minha mente começou a girar em torno da imagem que vislumbrei.

Meu corpo ficou frio e suor começou a descer pela minha pele.

Sim, é verdade que eu já havia visto o sangue diversas vezes ao chegar nesse mundo, mas... o meu sangue era diferente.

Eu sempre me senti desconfortável com esse líquido carmesim que flui dentro dos seres vivos, que de uma hora pra outra jorra se algo ruim acontecer.

Minha mente só não conseguia ficar estável o suficiente quando meus olhos se fixavam no sangue.

Tudo ao meu redor virou trevas, não havia mais a luz avermelhada da grande cúpula ou o som das pessoas em pânico... nada, o silêncio total.

Sangue, apenas o meu sangue era o que podia ser visto e sentido.

Vendo minha mão tingida do fluído vermelho, minha mente começou alucinar.

O sangue escorrendo da minha palma passou a preencher o piso, um círculo escarlate se expandiu abaixo dos meus sapatos, pintando o abismo.

Medo.

Era assustador, o vermelho engolindo a escuridão e a colorindo com memórias que se formavam pouco a pouco.

— Não se preocupe Jack, eu vou te proteger não importa o que aconteça. — Uma voz ecoou pelo vazio avermelhado.

— Ma-mas o que... — Minhas pupilas tremeram.

Uma silhueta surgiu no meio do vazio, um vulto negro que oscilava entre diversas faces e formas.  

 

— Eles vivem dizendo besteiras, até mesmo sobre mim, mas eu não ligo pra isso. Nesse orfanato todas as crianças são como nós, mesmo que tentem nos tratar de forma diferente nada vai mudar isso. — comentou a figura no meio do vazio carmesim.

Sua voz era distorcida e parecia uma mistura de várias pessoas diferentes falando ao mesmo tempo, horrível de se ouvir eu diria.

“Orfanato... d-do que essa coisa tá falando?”, indaguei em minha mente totalmente perturbado com essa imagem.

Passo. Passo. Passo.

A silhueta negra iniciou uma leve caminhada em minha direção, seus passos suaves ecoaram como se estivéssemos em um colossal salão.

— Jack, não chore. Estou aqui com você, contanto que estejamos juntos tudo ficará bem. — disse o ser desconhecido enquanto se aproximava cada vez mais.

“Isso é... uma memória... eu me lembro dessas palavras, eu lembro!”, uma imagem no fundo da minha mente esclareceu por um segundo.

Eu não podia saber quem era aquela coisa andando na minha direção, era assustadora, porém por causa dela algo estava mais claro pra mim, sim, o meu passado.

Uma imagem surgiu na minha cabeça como um pequeno quebra-cabeças sendo montado.

Um casebre rodeado por grandes muros e um portão de ferro enferrujado... meu antigo lar, não, foi apenas um lugar que tive que ficar por um tempo até ser adotado, o tal do orfanato Saylon.

Mas por que eu estava sendo lembrado disso afinal? o que significava tudo isso?

— Jack... você não é fraco, isso não é verdade.

A cada passo a entidade desconhecida falava algo diferente, que sempre me era familiar, eu já tinha ouvido todas essas palavras.

O ser sem forma parou diante de mim com sua face vazia sem olhos ou boca que se assemelhava a um abismo sem fim. Essa coisa aparentava me reconfortar de algo, porém não era essa sensação que me dava.

Perturbador, eu me sentia perturbado.

“Eu... não entendo.”, meus pensamentos congelaram.

Foi então que erguendo seu braço direito, a figura misteriosa encostou sua mão sobre minha bochecha suavemente e assim a acariciou, minha pele começou a arder.

Ghargh! — Eu gritei de dor sentindo minha bochecha queimar com o toque do ser revestido por trevas.

— Você tem raiva de si mesmo? — indagou a voz irreconhecível que pelo jeito, era da figura sem face diante de mim.

A dor latejou em sincronia com as palavras e eu comecei a ver um amontoado de memórias destorcidas, foi tipo uma roleta que girou por diversos cenários e situações e finalmente parou, parou em uma única e solitária memória.

Eu fui envolvido por uma nova realidade, definitivamente um local familiar numa época que eu conseguia me lembrar.

Lá estava eu, com apenas 5 anos no meio do jardim onde diversas outras crianças se divertiam.

Depois de ser acolhido pelo orfanato, todas as noites eu dormia olhando para a luz da lua que passava pela janela de vidro translúcida do meu quarto, na esperança de conseguir uma família.

A primeira impressão que as crianças tiveram de mim não foi das melhores e pra falar a verdade... só foi piorando.

À medida que eu tentava me enturmar e falhava miseravelmente eu recebia respostas não tão acolhedoras.

— O-oi... eu ouvi que v-vocês estavam conversando sobre jogos, eu gosto bastante, de que jogo vocês estão falando?

Heh? Você fala?

— Espera, você não é o irmão da Luma? Por que esse idiota tá escutando nossa conversa?!

— Pois é! Sai fora caladão! Você é muuuito chato, nunca diz nada nem faz nada! Eu até já dei um soco nele só que tudo o que ele fez foi ficar com os olhos lacrimejando.

— Sério? Fufufu! Que fraquinho!

Na visão de alguém mais maduro realmente era coisa boba, só um desentendimento entre crianças, mas o problema é que desde muito novo as pessoas ao meu redor já me rejeitavam e eu tive que me acostumar com isso.

— Jack, eu ouvi que você se meteu em confusão com os meninos hoje de tarde, por que fez isso?

— E-eu não fiz nada... eu só estava tentando ser amigo deles sabe? Eu queria que eles me percebessem, mas não importa o quanto eu me esforçasse eles só me ignoravam... f-foi então que...

— Sim, sim, um deles te obrigou a empurrar uma das meninas de cima do daquele balanço né? a tia Rudy brigou com você por isso, mas eu sei que não foi sua culpa, então pare de chorar por coisas bobas.  

Passei a me odiar por depender tanto assim daquela pessoa, eu queria que me vissem, queria ter amigos que gostassem de mim, queria fazer algo que prestasse pra ser reconhecido, mas eu sempre estava pensando demais em como fazer isso.

Essa pressão era demais pra um pequenino garoto e eu sempre acabava me atrapalhando, no fim eu falhava de novo.

Acabava que eu nunca recebia elogios ou incentivos pelo meu esforço, era tudo em vão.

— Eu não sei qual é o problema do Jack, ele é um garoto tão quieto, será que tem algum problema psicológico? Talvez seja altista... pobrezinho, me pergunto o que ele passou pra ter aquelas cicatrizes no corpo, as crianças vivem implicando com ele por causa delas.

Até mesmo as mulheres que cuidavam de nós conversavam sobre o quão incomum eu era.

Eu me lembro bem do dia em que comecei a ser visto com olhos diferentes, fiquei um pouco nervoso com o comportamento dos meninos e então todas as janelas do orfanato se racharam, pelo que disseram havia uma espécie de aura ao meu redor que se espalhou na direção das janelas... eu passei a ser considerado um caso sobrenatural no orfanato e todos eram cautelosos comigo enquanto as crianças tinham medo.

Eu só não conseguia encontrar o que dizer pros outros, como me expressar diante deles... eu era realmente lerdo ou alguém incomum? Era alguém incapaz de pensar na mesa velocidade dos outros?

Meus punhos se fecharam com minhas unhas afundando nas palmas molhadas de sangue. Eu rangi meus dentes.

— Já deu... eu não quero mais ver isso. — Levantei minha voz tentando disfarçar meu desconforto e frustração misturados ao abaixar minha face engolindo o seco.

Meu corpo estava tremendo e eu não podia evitar de morder meu lábio.

Eu fiquei imerso em uma mistura de sentimentos ruins perante um único fragmento de memória.

“Eu sempre fui assim... agora entendi.”, concluí internamente.

Um arrepio subiu pela minha espinha abruptamente e tudo que eu estava vendo se quebrou como vidro.

Cala a boca. Você só sabe se fazer de vítima sempre, é óbvio que sempre foi assim, você não é nada, sempre será rejeitado apenas por estar existindo. — disse uma voz monstruosa.

— Pare de fugir do passado e continuar negando seus erros assim como o erro que cometeu naquela noite. — Ela continuou ressoando e fazendo minha mente enlouquecer com meus sentimentos desabando.

Tristeza, decepção, raiva, eu tentava conter todos esses sentimentos enquanto afundava minhas unhas na palma do meu punho fechado.

— Quem é você afinal? — Levantei minha face que tinha a pura raiva estampada. Fiquei farto lembrar do meu passado patético.

Foi então que percebi, o ser sem forma que antes estava frente a frente comigo havia sumido e apenas um vapor negro envolvia os meus arredores dessa vez.

A neblina escura subia mais e mais.

Shiahahaha! — Uma risada perturbada e insana me cercou, — Inútil pra caralho! Tá putinho com si mesmo?!

Uma maldita e irritante voz, assim como as que ouvi quando toquei no portal.

— Me deixe em paz! — Eu gritei olhando de um lado pro outro com a respiração ríspida.  

Meu corpo estava de alguma forma diferente, por algum motivo minha frustração estava aos poucos sendo consumida pelo medo.

Eu não sabia onde olhar ou o que fazer, tinha uma sombra estranha girando ao meu redor e exalando uma fumaça preta.

A neblina das trevas consumiu tudo aos poucos.

— Não é óbvio? — respondeu a voz, — Eu sou você. — As sombras se moldaram no mesmo ser que vi antes, porém... agora ele continha dois olhos, dois olhos reluzentes.

Um brilho dourado e frívolo que cobria as duas pupilas da sua face sem cor. As trevas, eu estava diante das trevas dentro de mim.

Vuuush!

Um tornado negro revestia a sombra de olhos brilhantes que continuava ereta na minha frente, observando-me.

Plic. Plac. Ploft.

“Isso não sou eu nem fudendo! Não sou eu!”, minha mente entrou em pânico.

— Sim, eu sou, pode apostar nisso Jack. — Um sorriso também muito brilhante se abriu no rosto vazio da entidade.

O brilho dourado que exalava dos seus olhos deixava um leve rastro pela neblina negra.  

Nojento.

Um sorriso perverso e nojento que me fez querer vomitar, me senti horrível só de olhar, eu nunca poderia ser essa coisa, ainda mais com um sorriso desses.

— Sou o seu Alter Ego. A sua segunda face.



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