Alma Imaculada
Capítulo 44: Sacrilégio
[Jack Hartseer]
A porta se abriu ao meio no mesmo momento em que terminei de ler o texto no painel brilhante.
[Provação iniciada!]
Zakio franziu as sobrancelhas ao ver a última mensagem.
— Esse sisteminha de merda pensa que manda em nós agora?
— Ca-Capitão Zakio, eu não acho que esse seja o real problema aqui.
Renard disse isso porque a nossa frente, depois da porta dupla que acabava de se abrir havia um gigantesco salão cinzento.
Eu que estava por trás de Zakio não consegui ver muita coisa, mas soube que era um local grande só por causa do eco que a voz de Renard fez, se espalhando para dentro do local e dissipando-se como se tivesse diluído dentro de uma caverna.
Meus olhos se desfocaram do cenário a nossa frente para olhar de modo medroso para os dois outros corredores que nos rodeavam.
“Se é uma provação então pode ter inimigos, certo?”, foi o que pensei olhando para a direita e esquerda com a adaga em minha mão tremendo.
Eu ainda não sabia lutar direito e apesar de ter esses dois comigo, nada garantiria que eu iria sair sem ferimento em algum combate.
O medo de ser acertado, o medo de acertar o inimigo e o medo da morte, tudo isso se misturava dentro de mim fazendo meu estômago embrulhar.
— Renard, aquilo ali dentro é um altar?
— É o que tá parecendo, mas... devíamos mesmo entrar aí dentro?
Os dois trocaram olhares desconfiados antes de virarem pra mim.
“Merda, sobrou pra mim.”, mordi o lábio em nervosismo.
Eu nunca fui bom em decidir as coisas, ainda mais em grupo.
— Analisando melhor a situação, acho que não seja interessante já que estamos com Jack no grupo. — Renard palpitou levando a mão ao queixo.
Zakio me olhou dos pés à cabeça e então respirou fundo, seu cabelo ruivo e espetado balançou levemente. — Hmph. Isso dificulta ainda mais as coisas, se continuar assim vamos ficar parados no mesmo lugar.
— Não tem problema. — Eu interrompi. — De qualquer modo Zakio está certo. P-Precisamos sair daqui e encontrar os outros. — Eu mal consegui fixar o olhar neles enquanto minha voz saiu atrofiada.
Mesmo assim eu não queria ser um infortúnio para os dois, se eu estava envolvido nessa loucura eles não tinham nada haver.
O espadachim de cabelo ruivo e olhos carmesins desviou o olhar com desinteresse antes de dizer: — Não é bem assim que funciona moleque, recebemos ordens de proteger você, ou melhor, eu recebi ordens. Agradeça a capitã Incis depois.
Ele cruzou os braços com uma expressão rabugenta.
“Então era isso mesmo, Incis pediu pra que me escoltassem. Como esperado dela, aquela mulher é estranha pra se importar tanto assim com um cara como eu.”, em meio a tais pensamentos um pequeno sorriso torceu meus lábios de modo discreto.
— Enfim, vamos entrar ou não? — Indagou o lanceiro de olhos prateados e uma franja pontuda.
— Bom, podemos, temos os outros dois corredores pra explorar também, mas acho que será interessante ver do que se trata essa tal provação, afinal estamos em uma Dungeon, há recompensas por passar pelas provações. — Ele deu um passo afrente. — Talvez uma dessas recompensas seja a passagem para algum andar ou pistas sobre quão perigosa seja a Dungeon.
— Que tipo de linha de raciocínio é essa? — Murmurei em descontentamento.
Normalmente em JRPG’s ou até mesmo RPG’s convencionais, explorar certas Dungeons requer cautela, ainda mais se for desconhecida, o que ele disse foi basicamente executar um processo de tentativa e erro arriscadíssimo.
E se entrássemos nessa sala e fosse apenas uma grande armadilha? Dungeons contém muitas salas dedicas apenas para matar quem está explorando.
Passos. Passos. Passos.
Os dois avançaram calmamente para dentro do salão enquanto eu apenas fiquei parado, imerso em pensamentos.
“Pensando melhor, eu ainda contenho muitas memórias sobre essas coisas bobas, talvez minha memória esteja voltando aos poucos? De qualquer forma agora é uma boa hora pra usar desse conhecimento, por mais estúpido que pareça, ter jogado vários JRPG’s foi útil!”
— Ei garoto, vamos!
A voz de Renard ecoou de dentro da sala quebrando meus pensamentos.
Eu engoli a insegurança e o medo, assim erguendo meu rosto no que meu cabelo balançou suavemente. — A única diferença é que aqui eu sou como o avatar do jogador. — Pensei em voz alta dando um passo na direção dos dois.
Era uma analogia interessante e também me fez pensar um pouco sobre esse tal S.I.S que era muito parecido com os menus de jogos do gênero.
“Será que tem alguém por trás desse sistema... nos observando ou até mesmo controlando nossas decisões e movimentos?”, parecia bobo pensar sobre isso, mas diante de tudo o que eu já tinha visto não era nada.
Na medida que eu adentrei a câmara gigante o ar ficou mais denso e grandes pilares de concreto se estendiam em linha reta. A falta de iluminação da sala trazia uma leve névoa branca.
Zakio e Renard que estavam um pouco mais adiante pararam e pareciam observar algo. Eu só rezei pra isso não ser uma armadilha.
[Stamina: 85/100]
Meu olhar desceu de canto para um pequenino texto reluzente no canto da minha visão, eu não havia notado todo esse tempo, mas sempre esteve ali me alertando do quão cansado eu estava.
Me aproximando melhor dos dois a minha frente eu vi um altar redondo com o que se parecia um cálice dourado em cima.
— Capitão, olha isso, parece ser um tipo de mecanismo.
— Entendo... o mais plausível seria tentar preencher o cálice com algo, mas o que? — Segundos depois de se fazer tal pergunta Zakio viajou o olhar para uma grande estátua acoplada ao centro da parede.
Era esculpida entre as pedras a imagem de uma mulher com o corpo coberto por esvoaçantes tecidos enquanto seu cabelo ondulava criando espirais, nas mãos da estátua que quase parecia ter vida estava um tipo de esfera com asas ao seu redor.
— É bem grande. — Comentei meio espantado com o tamanho da estátua.
— Sim, é a deusa do espírito da vida, Afradia. Nas escrituras sagradas é dito que ela deu início ao mundo junto de Gaeon, o deus do vazio.
O lanceiro de olhos prateados, Renard, foi quem disse isso, seu tom de voz sereno e um olhar pacífico percorreu a grande estátua de baixo para cima com uma expressão de inocência e esperança.
Esperança, eu nunca tinha sentido a presença desse sentimento nesse mundo, tudo parecia tão preto e branco sempre.
— Isso é besteira Renard, vamos nos concentrar no que importa, pare de olhar pra essa deusa com seios gigantes. — Zakio seguiu adiante com um tom de voz frio, suas botas negras fazendo um som oco ao tocar o chão.
“S-Seios gigantes?”, franzi as sobrancelhas em confusão no que meu olhar apenas voltou para a estátua da deusa.
— C-Caralho... — Foi a única coisa que consegui dizer em reação quando vi o busto gigante da estátua.
Renard tocou meu ombro de modo amigável.
— Não liga pro capitão, ele não acredita em religião, deve ser por isso que ele é chato assim né? He He! — Cochichou ele sorrindo de modo travesso ao dar um tapinha nas minhas costas e seguir em frente.
Se essa deusa criou esse mundo então provavelmente tinha algo de admirável nela, que com certeza não seriam seus seios.
“Me perdoe, Afradia.”, eu fiz uma reza rápida mentalmente.
Ignorando isso, nós dois seguimos em direção a Zakio que estava parado em frente a uma grande tábula de pedra que continha um livro aberto e apoiado sob os pés da estátua.
As pupilas cor de sangue do espadachim viajavam lentamente por pequenos caracteres escritos nas páginas amareladas.
— Um grimório talvez?
— Não sei, não consigo avaliar o item. — respondeu Zakio ainda fixado na leitura. — Mas pelo que entendi, são instruções sobre a tal provação.
Olhando melhor para a grossura do livro, só tinha duas páginas e a capa era meio azulada.
— Espera, sacrifício coletivo perante o cálice... — Renard deu um passo para trás. — Essa coisa quer que o cálice seja preenchido com o nosso sangue.
— Sim, a página da direita também fala da esfera que a deusa está segurando, se acertamos qualquer objeto nela poderemos abrir uma passagem secreta também.
“Passagem secreta.”, um mar de pensamentos me tomou no que meus olhos se ergueram perante a estátua para no fim se fixarem na esfera alada nas mãos colossais da deusa.
— Não é uma “esfera” capitão, é o nosso planeta, Gale’Hera.
— C-Chega desse papo de religião, eu já disse!
Foi então que eu voltei a atenção para os dois e levantei uma importante questão. — Mas e sobre o cálice, também tem uma recompensa se enchermos ele com sangue ou algo assim?
Ambos olharam para mim percebendo como eu raciocinei rápido provavelmente, talvez isso seja fruto da minha obsessão por explorar e completar Dungeons em jogos.
— Bem... está escrito que seremos recompensados com a chave para o segundo andar da Dungeon. — Zakio deu de ombros de modo arrogante. — Só que não dá pra saber o que vai acontecer quando pingarmos uma gota sequer de sangue nessa coisa, sem contar que não somos idiotas pra dar nossas vidas por algo tão duvidoso. Vamos embora. — Ele passou por mim, seu sobretudo carmesim ondulou levemente.
Renard olhou confuso para seu capitão antes de continuar: — Mas talvez seja a única chance de chegarmos no próximo andar, sem contar que isso já é uma boa informação, se vamos ganhar a chave para o segundo andar provavelmente estamos no primeiro.
O lanceiro realmente tinha razão, mas Zakio também não estava errado, era perigoso demais... sem contar que eu estava no grupo pra atrapalhar ainda mais.
“Droga.”, me praguejei internamente ao abaixar a cabeça deprimido.
No fim não adiantava ter uma adaga estilosa ou um poder... eu ainda era Ranking F e lutar me assustava muito, provavelmente foi por isso que Incis ordenou para que me protegessem.
— Ele tá certo, Renard. Vamos. — Virei as costas para o lanceiro lançando minha voz para ele.
Minha mão direita apertando firmemente o cabo da adaga negra era o reflexo da minha impotência, eu não podia fazer nada perante a realidade.
Passos. Passos. Passos.
Nós caminhamos de volta para a entrada deixando o cálice, o altar, pilares e a deusa Afradia para trás.
Assim estava bom, não era porque eu tinha vindo pra um mundo fantasioso que o gênero da minha vida também iria virar fantasia.
A barra de HP passou a me aterrorizar muito mais do que qualquer coisa.
Passo.
Foi então que um arrepio percorreu pela minha espinha. Justo nesse maldito momento!
Meus ouvidos captaram em um pequeno instante um som abrupto que irrompeu pelos arredores.
A porta dupla se selou em um piscar de olhos enquanto a poeira foi aos ares e um rastro metálico viajou na direção de Zakio.
— Capitão!
Zakio nem mesmo se virou para ver o que veio em sua direção, seu corpo apenas se esquivou para o lado deixando um rastro de névoa junto com vários espectros de sua silhueta.
Vuuush!
Meu coração acelerando, minha respiração pesando e o silencio que pairou depois desse impasse.
“Uma armadilha.”, foi o que pensei logo ao visualizar uma lâmina pontuda fincada no centro da porta dupla a nossa frente.
— Mas que porra foi essa?! — Zakio se levantou virando o olhar para o fim do corredor de pilares.
Lá atrás em cima do altar não era mais o cálice que estava ali.
— Heh?! — Renard fez um som de confusão vislumbrando a estranha figura de pés sob o altar, ela era revestida por grandes placas de metal azuladas e um capuz.
[A desistência perante a provação não será tolerada!]
[Punição evitada com sucesso!]
[Você tem mais 2 chances antes que a sala seja incinerada.]
Um suspiro saiu da minha garganta quando meus olhos arregalaram diante da mensagem brilhante.
No fim, o ser de pés sob o altar se dissolveu como fumaça no ar sumindo por completo, assim dando espaço para o cálice dourado que ressurgiu com um estouro de partículas reluzentes.
[Provação do cálice dos sacrifícios iniciada.]
[Quest adicionada: Sacrilégio]
[Objetivo: Pague pelos seus pecados contra a deusa, dê o sangue para preencher o cálice da punição.]
Essa deusa realmente não iria nos perdoar mais tão cedo.