Trovão Infinito Brasileira

Autor(a): Halk


Volume 1

Capítulo 1: Antes Do Trovão

ϟ DEPOIS DA EXPLOSÃO ϟ

Acordo assustado com a batida forte do meu coração. Minhas costas ardem como se a carne tivesse sido arrancada por um açougueiro. Passo a mão suja de poeira negra no rosto. Sinto sangue. Porra, eu tô sangrando. 

Decido me levantar com cuidado. Tudo em mim dói, por isso a dificuldade. Quando finalmente fico de pé, em uma posição encurvada e frágil, olho para mim mesmo e vejo que estou só o pó. Camisa rasgada, calças rasgadas e vários cortes na pele, grandes o suficiente para deixar meu sangue escapar.

Olho para os lados. Só tem fumaça e destroços do que antes deveria ser o setor C, o famoso Centro. Pisco com força, não acreditando no que vejo. Checo meu relógio e dele sai uma pequena tela holográfica que me dá algumas informações:

 

[NOME: Kaike]

[IDADE: 20]

[CLASSE: Entregador (E)]

[NACIONALIDADE: Distrito 2, Hydro City.]

[SAÚDE: Laranja.]

[Por favor, procure um curandeiro o mais rápido possível.]

 

Um curandeiro? Onde eu vou achar um curandeiro no meio de toda essa destruição? E prestando bastante atenção, noto algo que me deixa confuso: Estou no meio de uma cratera.

— Puta merda… — sussurro enquanto tremo involuntariamente. — O que aconteceu aqui..?

Tenho algumas lembranças. Meu pai. Uma briga. Minha bicicleta. Uma encomenda… 

— Alvo localizado! — grita uma voz vinda de longe.

Olho em sua direção. Alvo? No instante seguinte uma bala atinge meu peito e eu caio espumando pela boca. Não consigo gritar, estou convulsionando.

Após alguns segundos de tortura, que pensei que nunca acabariam, volto a respirar. Só agora identifico o que me acertou:

— Porra! Um taser?! — digo enquanto retiro, desesperado, o pequeno projétil de cima de mim.

É uma pequena bolinha com um led, agora apagado. Não é feito para perfurar, mas isso foi sorte. A depender da arma, esses tiros podem até atravessar.

Mas não estranho isso. Estranho o fato de que era para estar incapacitado agora. Já vi essas coisinhas reduzirem valentões a pacientes de hospital. Por que comigo foi diferente? Será se usarem uma carga mais leve já pensando em minha situação de semi-morte? Isso não faz o menor sentido.

— Ele não foi neutralizado, capitão — fala uma das figuras que se aproxima.

Olho para o horizonte e além da fumaça, vejo a silhueta de três pessoas se aproximando.

— Afirmativo, capitão — confirma a mesma voz.

Eles se aproximam o suficiente para que eu note algo engraçado: Todos os três estão vestidos do mesmo jeito, uma roupa preta, com proteções completamente pretas. Usam até capacetes com o vidrode proteção escuro; não dá de ver seus rostos.

Além disso, os três usam o mesmo modelo de arma, um rifle enorme. E… Eles estão apontando suas armas para mim.

— E-esperem! — digo, me arrastando para trás.

— Fogo!

Os três atiram em mim de uma só vez. Um acerta minha cabeça, outro, meu braço e perna. Sinto a corrente elétrica me fritar por dentro. Agonizo e tenho mais espasmos.

Mas no instante seguinte todas as sensações param. Minha respiração logo fica calma novamente. Já não sinto mais nenhuma dor no corpo. É como se tivesse tirado uma boa noite de sono.

Os três notam que ainda não fui reduzido a um paciente de hospitalar. Eles apontam as armas para mim mais uma vez. Fala sério

— Parem com isso! — grito, com as mãos em direção a eles em forma de rendição.

E, de alguma forma inexplicável, raios saem dos meus dedos e atingem os três soldados, lançando eles para trás. 

Confuso, levanto rapidamente sem nenhuma dificuldade e me aproximo dos três. Eles estão tremendo no chão, agonizando, do mesmo jeito que era para eu estar agora. Sinto pena, desejaria que não estivessem assim. Mas não sei se posso fazer muito por esses caras agora.

 

 

Na verdade, eu não sei mais de nada. Olho para as minhas mãos. Tremo de nervosismo agora. O que foram esses raios? O que aconteceu aqui? Vamos, Kaike, pensa… Vamos, vamos!

 

ϟ 6 ANOS ANTES DA EXPLOSÃO ϟ
ϟ Distrito 2 - Floresta de Hydro City ϟ

 

— Vem logo, pai! — chamo, enquanto vou pulando até o galhado que eu acabei de abater. Assim que ele ver, vai me achar incrível, com certeza.

— Estou logo atrás — diz ele sorrindo, me acompanhando no mesmo ritmo, sem aparentar nenhum cansaço. Até hoje me impressiono como um homem tão grande pode aguentar caminhar tanto.

Finalmente chego na parte da floresta que está a caça: um galhado. Meu pai chega logo atrás de mim.

— Que grande! — diz. — Como fez para pegar ele, filho?

— Sabe como é, né? — Me encosto em uma árvore e cruzo os braços enquanto olho para a minha caça. — Aqui tem talento.

Ele rir. Sua risada é muito boa de ouvir. Às vezes considero que meu pai tem a melhor voz do mundo inteiro.

— Acertou ele com o bastão? — pergunta, enquanto se abaixa para amarrar as patas do animal. 

Meu pai é gigantesco e muito musculoso. A única coisa que difere de sua aparência ameaçadora é o sorriso gentil, o bigode grosso e o cabelo azulado igual ao meu. Tenho certeza que seria capaz de pegar esse galhado com pouco esforço, então vou esconder o fato de ter conseguido matar esse daí por acaso.

A verdade é que estava aqui na frente quando do nada esse cara apareceu e por reflexo dei uma bastãozada em seu rosto. O impacto foi tão forte que o animal caiu no chão, agonizando. Depois do susto eu tive que acabar com seu sofrimento.

— Mais ou menos — digo, colocando a mão por cima do bastão que agora está na minha mochila. Não é nem uma mentira e nem uma verdade. Ninguém precisa saber sobre eu ter sido pego de surpresa. 

Ele não demonstra nenhuma reação a minha resposta. Seu silêncio me sufoca. Está concentrado apenas em amarrar o animal, mas sei que deve estar pensando sobre.

Antes que eu pudesse me retratar e tentar explicar a verdadeira história, ouço alguém se aproximando por trás de nós. Fico alerta e me viro com rapidez, já posicionando o bastão de metal para um possível ataque. 

O barulho de passos continua a se aproximar. Estamos na floresta, aqui não tem regulamentação. Pode ser qualquer, e esse qualquer um pode querer nossa caça. Embora eu esteja preocupado, meu pai parece não estar ouvindo.

— Pai! — sussuro. — Tem alguém vindo! 

— Ah… — Ele se levanta com leveza, bate as mãos para limpar a sujeira e diz com calma: — É só o Nicolas. 

E é ele mesmo. Dos meios das árvores surge um homem baixo, cara de zangado, meio barrigudo e cabelo cinza. É um velho bem mau-humorado e a única pessoa que eu conheço que não gosta do meu pai.

Estou nervoso agora. Se fosse um bandido ficaria mais tranquilo. Esse cara é um guarda, é ele quem autoriza as pessoas saírem da cidade ou não. E a gente não tem nenhuma licença para estar caçando.

— Nicolas! — fala meu pai, levantando a mão em forma de saudação. — Qual o problema, velho amigo? Mais uma inspeção?

Nicolas cospe no chão e se aproxima do meu pai, ficando os dois apenas a alguns passos de distância. Ele tem um rosto feio, principalmente por conta da careta que está fazendo, tentando intimidar meu pai.

— Você sabe muito bem que é proibido caçar sem licença, Wattson! Quer ser preso?

Esse cara tá bem alterado e já sabe que estamos sem licença, quem será que lhe contou? Na verdade, desde que me lembro ele sempre foi assim com meu pai. Minha mãe diz que é inveja, eu também acho.

— Nicolas, conheço as leis tão bem quanto você — diz. — Mas nós ajudamos os nossos.

Ele citou o velho ditado do nosso setor. Eu tomaria cuidado ao falar isso, poderia ser considerado uma afronta...

Subitamente, Nicolas desprende um bastão de densidade variável de seu cinto e aponta para o pescoço do meu pai. Eu tomo um susto, meu pai faz um sinal para que eu fique parado. Obedeço.

— Isso não vai te ajudar o tempo todo! Você é um irresponsável, Wattson, desde sempre! Essa não é a primeira vez que anda fazendo besteira. Um dia vai pagar por tudo isso, e sobrando para os outros!

— Entendo a preocupação. — Meu pai responde como se não tivesse um bastão elétrico no pescoço — Mas para ajudar o máximo de pessoas que eu puder, tenho que tomar alguns riscos.

Subitamente o homem com o bastão se afasta, chutando o mato.

— Você vai acabar se matando um dia! — diz com o dedo apontado.

Não consigo entender se sua acusação é por raiva do meu pai, ou por pena dele. Vai ver é os dois ao mesmo tempo.

— Até lá continuarei ajudando, seja você ou qualquer outra pessoa — responde meu pai, agora sério.

— Nunca pedi a sua ajuda!

— Nem eu sua permissão.

Silêncio. Os dois homens se encaram com intensidade. Quase consigo ver raios saindo de seus olhos e duelando no ar para ver quem acerta quem. 

No fim, Nicolas guarda seu bastão elétrico e dá para meu pai um pequeno cartão branco. 

— Sua licença — diz emburrado. — Vê se não sai sem isso. 

Meu pai e eu ficamos surpresos, ele dá um grande sorriso e pega a licença, já eu fico com o queixo no chão. 

— Muito obrigado! Haha!

— Não me agradeça. Por mim você estava na cadeia. — Ele olha para o céu. Já estamos quase no fim da tarde. — Agora vamos logo embora, o seu tempo aqui fora já está acabando. —  Depois ele olha para o animal no chão e diz: — Eu não vou te ajudar a levar isso daí.

— Não precisa se incomodar, meu amigo Nicolas.

E mesmo com todo esse ar de mau humor, meu pai continua rindo. Vejo ele se abaixar para pegar o galhado e carregar o bicho nas costas. Nicolas fica um pouco impressionado, mas logo revira os olhos e sai marchando na nossa frente. 

Eu e meu pai seguimos o homem até a cidade. Eu vou pensando sobre tudo que aconteceu e a sorte que tivemos. A licença não foi por acaso, nós realmente não temos licença. O que significa que deve ter sido alguma outra pessoa que nos deu.

O que mais me impressiona não é que alguém tenha dado uma licença para meu pai, ele é muito conhecido e todos gostam dele, mas sim que esse cara aí, o Nicolas, veio até aqui deixar essa licença. Eu pensava que ele faria de tudo para tentar acabar com meu pai, mas parece que não é bem assim. No fim parece que ninguém quebra o ditado, nós ajudamos os nossos.

Enquanto penso sobre o assunto, vejo que meu pai parece estar com a cabeça em outro lugar, algum lugar mais feliz. Olhando para cima e vendo os pássaros dançarem no ar, ele assobia uma canção. 

Dá até a impressão de que os pássaros estão dançando conforme o ritmo da música, ou talvez seja a música que tenha o ritmo deles. Isso não importa. No fim, não importa se meu pai canta ou só assobie, os pássaros sempre ficam quietos para ouvi-lo. 

Conheço a canção. É uma velha cantiga para as crianças conhecerem os sete distritos que existem no nosso continente. A letra é mais ou menos essa:

"Sete irmãozinhos se encontraram um dia 
Para uma grande festa planejar. 
Cada um deles com uma qualidade própria
Nenhum ficaria sem trabalho para dar.
O primeiro era fechado, mas bonito 
O segundo era forte e emotivo. 
O terceiro morava numa floresta densa
O quarto adorava guloseimas.
O quinto era seco como areia, enquanto 
O sexto tinha uma enorme cabeça.
Já o sétimo e último era o mar, que sempre inventava histórias para contar.
E por cada um deles ser brilhante, juntos deram uma festa marcante.”

Existem algumas variações, mas eu particularmente nunca gostei dessa música então nem me interessei em saber das outras. Ela trata a gente, do Distrito 2, como emocionados. Já eu diria que temos uma personalidade forte em comparação a outros distritos. Para nós é tudo preto no branco, ou é, ou não é. Isso não é ser emocionado, é ser sensato.

Nicolas fica resmungando, provavelmente aborrecido com o canto do meu pai. Mesmo assim ele não reclama abertamente. 

Finalmente chegamos a nossa cidade, a Hydro City. O nome é bem sugestivo. Nosso distrito é especializado em energia renovável, logo cada cidade tem uma usina. A usina da nossa é uma hidroelétrica, daí vem o nome. 

Quando era mais novo, eu ficava super irritado com essa falta de criatividade, parece até o nome de uma doença, a doença Hydro City. Mas com o tempo você se acostuma. E podia ser pior, eu podia morar na Hélio City.

Entramos na cidade. Nicolas deixa de nos acompanhar. Ele nem olha para a gente. Meu pai mesmo assim agradece. 

Então vamos para casa, no outro setor, o E, onde a gente mora. Temos que atravessar a cidade inteira; e detalhe, meu pai ainda está com aquele galhado nas costas. 

Assim que chegamos em casa, dou um abraço na minha mãe. Ela fica assustada com o galhado e dessa vez não me manda ir tomar banho, mas não escapo por muito tempo.

— Estou vendo mocinho. Vá tomar um banho e depois venha comer. 

Não sei como ela vai preparar um animal desse tamanho em tão pouco tempo. Quando volto do banho, dito e feito, a janta já está quase pronto. 

Meu irmão mais velho, Caio, chega junto com a minha irmã, Camile, da escola. Eles também se banham e todos começam a comer. Enquanto isso meu pai vai contando a história de hoje, sobre o Nicolas e tudo mais. Minha mãe fica arrasada.

— Ele o quê? — pergunta ela, balançando toda a mesa de jantar.

— Calma, meu bem. Não foi nada de mais. O Nicolas só estava fazendo o trabalho dele como guarda. E eu sei que guardas ganham uma renda a mais quando relatam infrações como essa.

Esse é meu pai, sempre vendo o lado bom dos outros, mesmo que o outro não goste de você de jeito nenhum. Isso é imultavél nele.

— E isso lá significa que ele pode te ameaçar com um bastão, Wattson?! — E essa é minha mãe, sempre questionando a bondade imerecida do meu pai. E isso é imultavél nela.

— É, a mãe tá certa, pai — diz minha irmã. Ela tá vestida como se fosse a reencarnação do preto. Cabelos pretos, maquiagem preta, até o contorno nos olhos são pretos. — O Nicolas é um bocózão.

— Não diga uma coisa assim, docinho. Nós ajudamos os nossos — repete meu pai o ditado. — Criar um menino é coisa complicada. Fora que guarda não é um trabalho fixo, ele está apenas substituindo.

— É um ingrato, isso sim! — ruge minha mãe.

— Ei, deixem de brigar na mesa! — diz meu irmão. — Vamos mesmo ignorar o fato do Kaike ter acabado com um galhado sozinho? — E ele voltou toda a atenção da mesa para mim. Que maravilha. — Diz aí, como foi mesmo? Você cortou a cabeça dele?

— Eu acertei com o taco de metal do pai. 

— Ah, o grande taco de metal salvando vidas! — debocha meu irmão, de boca cheia. Ele tem os cabelos escuros e encaracolados iguais aos da mãe. Sou o único que tem os cabelos azuis e arrepiados do pai. — Acho bom você continuar usando ele, porque quando eu tiver de férias sou eu que vou usar.

— Se os senhores não tirarem notas boas o suficiente, ninguém vai usar nada — resmunga minha mãe.

— Qual é! — reclama meu irmão. — Ele saiu com o pai o ano todo. Vai ser minha vez agora.

— Mas nada impede você de vir comigo nas caçadas, meu filho — afirma meu pai.

— Nada exceto a escola, né — diz meu irmão, meio debochado. — Se não passar nos testes, não vou morar no Setor D. Não sou igual o Kaike que não dá a mínima para o futuro dele.

— Cala a boca — digo, um pouco irritado. — O pai não precisou estudar.

— Hum — murmura a mãe, levantando as sobrancelhas para meu pai. 

Meu pai abre a boca para falar alguma coisa, mas prefere apenas forçar um sorriso e dirigir a atenção para outro canto, dessa vez minha irmã.

— Docinho, decidiu se vestir de gótica?

— Quem dera ela fosse tão culta assim — debocha meu irmão. — Ela tá é imitando a galera do Um.

Distrito 1, especialistas em mineração. Eles vivem em uma região montanhosa, dentro de cavernas. Dizem que não veem a luz do sol e que, como vivem muito perto do carvão e joias preciosas, todos tem cabelos negros, olhos negros e vestes negras de fuligem. Ainda dizem que algumas pessoas tem as peles mais escuras do que a noite. Eu acho isso um exagero.

Virou moda aqui na nossa cidade se vestir assim. Tudo porque recebemos a visita de dois representantes de lá um dia desses. Eles vestiam preto, tinham os cabelos e olhos negros e eram bem elegantes. 

Daí foi questão de tempo para todas as meninas começarem a imitar o visual. É como o meu pai costuma dizer: O que é novo chama a atenção.

— Não me chama de modinha, eu não sou! — resmunga ela. 

— Eu não chamei, mas você é modinha sim.

— Para! — reclama ela.

— Modinha!

— Já chega, os dois! — repreende minha mãe. — Quero que os dois comam calados. Mais um pio e vão se arrepender.

O olhar ameaçador dela fez com que todos se calassem. O erro do meu irmão foi sibilar com a boca, sem emitir nenhum som, a palavra “modinha”. Camile se jogou na garganta dele.

No fim tudo resultou em briga e ela obrigando a gente ir para nosso quarto. Meu pai tentou ajudar, conversando com a gente, mas acabou sobrando para ele também. 

Mesmo no quarto deu de ouvir toda a gritaria dela com meu pai, e acho que os vizinhos também ouviram. Na real, se duvidar, todo o nosso setor ouviu.

— Você é mesmo um irresponsável! Como sai por aí com nosso filho para a floresta? E se não tivesse sido o Nicolas? E se você não tivesse recebido a licença? Os dois estariam presos! 

— É, mas não aconteceu.

— Mas se acontecesse, Wattson?

— Mas não aconteceu, Angela. Nós ajudamos os nossos…

— É do nosso filho que estamos falando e que você está pondo em risco.

A mãe mudou de assunto, claro, foi para mim. Ela sabe que o pai sempre trabalhou do jeito dele e só com isso conseguiu essa casa, com quatro quartos e dois banheiros. É a melhor casa de todo nosso setor. E isso só com o trabalho "arriscado" de ajudar os outros que ele faz.

— O Kaike é livre para fazer que escolhas ele quiser — diz meu pai, sério. — E se ele acredita que me acompanhar é melhor que estudar, ou que se esforçar para fazer os testes para subir de classe é o certo, que ele faça isso.

— O Kaike só tem quatorze anos, Wattson! Ele não tem direito a essa escolha!

— Nunca vou tirar a liberdade de ninguém! — esbraveja meu pai. É uma das poucas vezes que ouço aquele tom vindo dele. — Não me venha com essa historia de cortar as asinhas dos meus filhos, isso nunca funciona.

— Mas e se ele se arrepender? Se mais na frente ele olhar para trás e ver que ajudar os outros do jeito que você faz, se colocando em risco do jeito que você faz, não vale a pena?

— Se ele acreditar que for um erro, que ele aprenda com isso e mude. Nunca é tarde para mudar.

Mas nunca vou me arrepender, sei que vale a pena. Meu pai ajuda os outros, os que não são ajudados por mais ninguém. E isso é bom. 

Se um dia passarmos por alguma necessidade tenho certeza que as amizades do meu pai vão ajudar. Eu tenho certeza…

— É do nosso filho que estamos falando! Você deveria era apoiar o Kaike a seguir os passos do irmão, que graças ao Rei, está se esforçando na escola, e a Camile também!

— Apoio os três a serem o que eles quiserem ser…

— E eu não vou mais permitir o seu mau exemplo para nossos filhos — interrompe minha mãe, com a voz fraca. — Amanhã você vai trabalhar na usina.

Então ela inscreveu ele na usina. Ele vai ter que passar o dia lá, agora. Possivelmente vai acabar sendo contratado, meu pai entende tudo quando o assunto é eletricidade. Foi ele que me ensinou que os trovões não fazem mal, só são barulhentos.

— Angela, eu não posso ir! Amanhã eu tenho de ajudar os…

— Eu já me resolvi com eles! — grita ela a plenos pulmões. — Você vai e ponto final! Nem que seja só por um dia, mas quando te verem lá com certeza vão te contratar e fim de papo! Um emprego decente e seguro!

Aos poucos a gritaria vai ficando distante. O teto, para onde estou olhando agora, começa a ficar borrado. Meu pai quem conseguiu essa casa, do jeito dele. Minha mãe está errada. Eu tenho de ajudar os outros, igual meu pai faz. Sim, igual meu pai.

Então tudo fica escuro.

 

 

Eu acordo pela manhã com os gritos de susto da minha irmã. Ela achou um sapo no banheiro. Depois de algumas risadas, vou para a cozinha tomar o café.

Meu pai está lendo o jornal com uma roupa formal. Minha mãe está mais animada do que nunca, ela fez uma refeição reforçada.

Quando todos terminamos de comer, meu pai se despede com um grande sorriso. Nem parece que andou brigando ontem. Ele é sempre assim, para ele não existe dia ruim.

— Pai, posso acompanhar o senhor até a entrada? — pergunto. Não sei porque perguntei isso, mas deu vontade de ir com ele hoje. 

— Por mim tudo bem — responde com bondade. — E você, Camile, quer ir com a gente?

— Da próxima, pai — diz ela. — Eu vou me encontrar com a Rafaela na casa dela.

Eu olho desconfiado. Sei exatamente o que ela vai fazer com a Rafaela, porém não falo nada e é melhor assim. Não sou de contar as intimidades dos outros.

Entusiasmado, acompanho meu pai, a pé, até a usina. O Caio não vem porque estuda em outra escola, uma no setor B, muito chique e requintada. Ele conseguiu por conta de suas notas. 

Conforme nos aproximamos, todos vão dando saudações para meu pai. Acho que é a primeira vez que o veem com uma roupa formal. No meio do caminho ele canta. E como sempre, todos ficam admirados com a sua voz.

Meu pai finalmente chega em uma barreira gradeada que não posso passar. É aqui que me despeço. Ele me dá um beijo na testa, fico com vergonha. Enquanto o vejo adentrar a usina e cumprimentar cada pessoa como se fossem íntimos, sinto saudades.

Horas se passam e chego da escola. Já é quase o final da tarde quando meu irmão chega para brincar comigo no quintal. Eu fico com o taco, ele fica com a bola. É claro que sempre erro, esse taco de metal é muito pesado.

— Vê se acerta dessa vez — diz ele com tom de deboche.

— Só tô aquecendo.

Ele adota um olhar mais sério. Sei que vai jogar a bola com toda a força e não serei capaz de pegá-la, mas ao menos vou tentar. Tenho de tentar. E se tiver muita sorte o taco vai escorregar de minhas mãos e acertar a cabeça dele com toda a força.

Assim que ele joga a bola, eu consigo vê-la como se estivesse em câmera lenta. Isso é novo. E é por conta disso que consigo manusear o taco e acertar a maldita bola, a arremessando para muito, muito distante, em direção aquela fumaça estranha.

 

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                  M

 

— O que foi isso? — grita minha mãe, indo direto para o quintal. — Vocês estão bem, aconteceu alguma coisa com vocês?

Eu não falo nada. Continuo com os olhos focados naquela fumaça negra no céu.  Aquela fumaça vem do rumo da usina, no setor C. 

É ali que fica a usina.

Eu corro em sua direção, ignorando minha mãe e meu irmão. Corro, corro tanto que meus lábios ficam roxos. Só paro quando chego na frente da multidão parada a alguns metros da entrada da usina. Respiro violentamente, quase desmaiando.

Há muitas pessoas aqui. Muitos guardas também, tentando separar a multidão que tenta invadir o cerco. Subo em uma cerva e consigo ver pessoas sendo socorridas por curandeiros. Eu vi algumas delas hoje de manhã, a maioria estava trabalhando na usina. Estão todas sujas de fuligem.

Entendo. Teve uma explosão na usina e elas conseguiram escapar… Como elas conseguiram escapar?

Observo dali de cima a entrada da usina. De vez em quando alguém sai de lá, quase morto. Mas nenhum deles é quem eu realmente quero.

Depois de muitos minutos ouço a voz histérica da minha mãe aqui de cima:

— Cadê meu marido? Cadê o Wattson?

— Senhora acalme-se, estamos fazendo o possível para…

— Onde ele está?!

— Angela! — diz um dos que estavam sendo socorridos agora a pouco, ainda coberto de fuligem. — O Wattson… Ele tá lá dentro ainda.

Eu desço da cerca e observo minha mãe. Seus olhos estão saltados enquanto diz:

— O que ele tá fazendo lá?

— Ajudando, Angela… Ele que ajudou todo mundo aqui a sair…

Vou para mais perto dos dois. Minha mãe está tão catatônica que nem nota eu fazendo a pergunta:

— Quantas pessoas tem na usina? Ao todo?

— Só faltam duas… O seu pai e o Nicolas.

— O Nicolas não é guarda? — pergunta nervosamente meu irmão. Só noto que ele estava aqui esse tempo todo agora.

— Sim, mas… 

 

B

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                  M

 

A explosão é forte o suficiente para me fazer tampar os ouvidos. Vemos o fogo agora saindo pela única porta de saída, onde espero ansiosamente pela chegada do meu pai.

E para minha alegria vejo a sua silhueta atravessando a fumaça e chegando até a gente. Mas espera, meu pai é alto. Ah, não é ele. É o Nicolas. Ele está todo preto também e com o olhar chocado. Os curandeiros já estão atendendo ele. 

Os guardas estão afastando o círculo mais ainda. Estão me afastando. Mas qual o motivo disso? Ainda falta meu pai. Ainda falta o senhor Wattson.

— Não! — grito, me jogando em direção a abertura. Meu irmão me segura. Eu dou um chute em sua canela e corro em direção à usina. — Não, meu pai ainda tá ali. Meu pai ainda tá ali!

Eu aponto, indicando o lugar que eles têm de ir. Só precisa de uma pessoa para me ajudar, eu não sei se consigo sozinho. Mas eu tenho que tentar ajudar ele. Sinto uma mão me segurando, essa é mais forte. Não, não é meu pai. 

— Me solta! Meu pai ainda tá ali! O Wattson, o senhor Wattson! Ele ainda tá ali dentro. Eu só preciso ajudar ele. Por favor! Só uma ajuda…

Uma ajuda não é pedir de mais. O tanto que ele fez por essas pessoas… Será se não estão dispostas a ajuda ao menos uma vez?

Quanto mais me mexo mais mãos me seguram. Que droga, ele só precisa de uma ajuda. Será que essas pessoas não conseguem entender isso? Ainda dá para ajudar, é só ir lá. Ele tá bem ali. É só ajudar.

Grito, esperneio, mordo e chuto. Mesmo assim, mesmo tentando tanto…

 

B

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ϟ ATUALMENTE ϟ
ϟ Distrito 2 - Setor C ϟ

Ah! Agora eu lembro. Meu nome é Kaike, sou do Distrito 2, Hydro City, Setor E. Sou entregador, rápido e bonitão; nem sempre nessa ordem. Fora isso eu sei que minha marca registrada é meu taco de metal, herança do meu velho. 

Aliás, meu taco, onde será que está? Me viro e começo a correr em direção aonde estava minha bicicleta, meu meio de entrega, soterrada por uns escombros.

Tiro o objeto da minha mochila e o seguro com as duas mãos, firmemente, me virando para o barulho de passos, que não são poucos, vindo em minha direção.

Então vejo algo sendo lançado em mim. Uma pequena bolinha mirada bem na minha cabeça. Sem pensar giro o meu taco e acerto o objeto, jogando ele de volta ao lugar de origem. Um clarão e um enorme barulho vem daquela região, e também alguns gritos.

— Fiquem aí! — ordena uma voz grossa e meio rouca. 

Lentamente, do meio da fumaça, aparece um homem com um tapa-olho, um braço e duas pernas robóticas. Ele tem uma barba negra, cabelos negros e um charuto. Seu único olho está contornado por uma maquiagem negra e suas vestes também são negras. 

— Que cafona — digo para ele batendo a ponta do bastão em minha mão. — O preto saiu de moda há uns anos já.

Fixo meus olhos na espingarda em suas costas. É gigantesca, tanto em largura quanto em comprimento. Entretanto, seu sotaque não me lembra as pessoas do Distrito 1.

— Já chega de conversa, garoto — ri ele, parando a alguns metros de mim, às duas mãos relaxadas no cinto. — Se você se render agora, posso até ver se alívio para você. 

— Hum. Não sei se confio em alguém que me atira balas elétricas e uma granada.

— Está confiante demais, garoto. — Ele cospe no chão, ainda com as mãos no cinto. — Então está bem, vou cortar essas suas asinhas para te ensinar uma lição.

Eu dou uma risada, coloco um pé para frente e outro para trás, enquanto mantenho o taco firme na minha mão. E pela primeira vez sinto uma coisa estranha, uma energia fluindo por mim, me eletrizando. 

— Vai por mim, cortar as asas de alguém nunca é boa ideia.

E então salto em direção a ele tão rápido quanto um…

TROVÃO INFINITO


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