Volume 4
Capítulo 1
Os seis dias de viagem no inverno tinham cobrado seu preço.
Embora tenha sido sorte não haver neve na estrada, ainda fazia muito frio.
Os cobertores que tinha comprado estavam mais próximos de placas semi-macias do que de roupas de cama de fato. Qualquer coisa que pudesse plausivelmente afastar o frio foi colocada sob esses cobertores.
A coisa mais quente de todas, naturalmente, seria outra criatura de corpo quente, de preferência uma com pelo.
Se tal criatura pudesse falar, bom — isso seria um problema.
“Não posso deixar de pensar que sou eu quem sai perdendo nesse acordo.”
O céu estava ficando ligeiramente mais claro e os últimos vestígios da noite ainda acariciavam seu rosto, como se estivessem relutantes em sumir.
Normalmente, depois de ser despertado pelo frio, ele ficava observando o céu empalidecido por um tempo, sem vontade de sair dos cobertores — mas hoje, sua companheira peluda estava, obviamente, de péssimo humor.
“Olha, eu já disse que sinto muito.”
“Oh, sim, se for sobre quem está errado e deve se desculpar, certamente é você. Eu te ajudo a afastar o frio da melhor maneira que posso, e ainda sou generosa o suficiente para não te cobrar o favor.”
O jovem enterrado debaixo dos cobertores, com o rosto exposto e olhando para o céu, era Kraft Lawrence. Ele virou a cabeça para a esquerda.
Lawrence tinha se iniciado como mercador quando tinha dezoito anos — faz sete anos — e ele tinha uma boa dose de confiança em sua capacidade de enrolar na conversa até o cliente mais exigente.
Mas mesmo este mercador experiente se viu sem palavras quando confrontado por sua companheira, que estava à sua direita, direcionando a ele um fluxo descontente de palavras combinadas com um olhar agudo.
A garota com os olhos vermelho rubi e cabelos castanhos se chamava Holo.
Era um nome raro, mas não era a única coisa rara sobre ela.
Afinal, ela tinha um par aguçado de orelhas de lobo no topo da cabeça, e uma esplêndida cauda lupina que brotava de sua cintura.
“E mais! Há coisas que se podem e que não se podem fazer, certo?”
Holo provavelmente não ficaria irritada a este ponto se Lawrence tivesse feito algo tão facilmente compreensível como assediá-la enquanto ela dormia, com ele entorpecido pelo sono.
Ela simplesmente o zombaria sem piedade até que ele mal conseguisse ficar de pé, depois soltaria uma gargalhada e ficaria por isso.
Mas não — o motivo pelo qual Lawrence suportava este fluxo incessante de recriminação era porque ele tinha feito algo imperdoável.
O que ele fez dessa vez? Devido ao frio, ele inconscientemente enrolou seus pés na cauda peluda de Holo. E o pior, quando se virou em seu sono, ele arrancou um pouco do pelo.
Holo, a autointitulada sábia loba, a garota que às vezes era chamada de deusa (embora ela odiasse) soltou um profundo grito feminino — só a dor já deve ter sido insulto suficiente.
No entanto, Lawrence se sentiu um pouco magoado com o seu tratamento posterior. Afinal, ele estava dormindo.
Apesar do fato de que, mesmo agora, Holo continuava a atacá-lo, no instante em que seus pés se enrolaram no pelo dela e ele pisou em sua cauda, ela o socou com força, duas vezes, na cara.
Certamente isso foi castigo suficiente, ele pensava.
“Já é ruim o suficiente vocês humanos pisarem tão facilmente em cima dos pés dos outros quando estão totalmente acordados. E agora quando estão dormindo! Esta cauda é meu orgulho! A única prova que eu sou eu!”
Embora a cauda que Lawrence pisou estivesse ilesa, um pouco de pelo se soltou.
Mais do que qualquer dor, era a desmoralização que enfurecia Holo.
Pior, antes de se virar, seus pés parecem ter amassado uma parte do pelo da cauda enquanto dormiam.
Depois de olhar atordoada para sua cauda por um momento, Holo confrontou Lawrence, que percebeu que a situação estava ficando feia e tentou fugir para debaixo dos cobertores, e começou a agredi-lo verbalmente.
Quando irritadas, a maioria das pessoas seriam frias e cruéis ou exigiriam um duelo de algum tipo. Porém o método de Holo para repreender era muito mais eficaz.
Estava bastante quente debaixo dos cobertores com Holo; faltava pouco para o amanhecer e o corpo de Lawrence sentia o peso de muitos dias de viagem de inverno.
Dificilmente surpreenderia se ele começasse a cochilar diante do abuso implacável.
Se o rosto de Lawrence mostrasse até mesmo um traço de sonolência, sem dúvida ele nunca chegaria ao final disso.
Era como uma tortura.
Holo seria uma excelente xerife.
“Honestamente...”
O interrogatório não cessou até Holo se esgotar e voltar a cochilar.
Lawrence estava bem consciente de que a ira de Holo era algo a ser temido, e que a raiva dela poderia assumir muitas formas. Ele não tinha nenhum desejo especial de descobrir mais uma face dessa ira, mas era o que tinha acontecido — e tendo feito isso, começou a mover a carroça.
Desgastada por seu próprio discurso, Holo roubou os cobertores por completo e se enrolou como uma lagarta, contra o frio.
Mas ela não estava na parte de trás da carroça. Em vez disso, estava deitada de lado no banco do motorista, com a cabeça apoiada no colo de Lawrence.
Certamente parecia adequadamente mansa e adorável, mas dado o tempo...Não, a profundidade de seu cálculo era assustadora.
Se ela mostrasse seus dentes, isso daria a Lawrence uma desculpa para lutar contra ela. Se ela o ignorasse, ele poderia tê-la ignorado.
Mas colocar sua cabeça no colo do mercador agravou ainda mais a posição dele.
Ele não conseguia ficar com raiva; ele não poderia ignorá-la. E se ela fosse implorar para comer alguma coisa, ele seria incapaz de recusar. Suas ações, afinal, deixavam claro que ela tinha se acalmado.
Embora o sol já tivesse subido, expulsando o frio do ar da manhã, o suspiro que saiu da boca de Lawrence foi pesado.
Apesar da advertência que fez a si mesmo de que precisaria ser mais cuidadoso com cauda de Holo, era difícil resistir a tal calor quando se acampava no inverno.
Se houvesse um deus para perguntar, ele teria orado: “O que devo fazer?”
Mas, a muda viagem da manhã chegou ao fim de forma súbita e inesperada.
Como os dois não tinham passado por ninguém até agora naquele dia, Lawrence assumiu que ainda tinham um longo caminho a percorrer. Mas assim que eles chegaram ao topo de uma pequena colina, uma cidade surgiu no seu campo de visão.
Ele nunca esteve nesta região antes e não tinha qualquer noção da disposição do terreno.
Ficava um pouco ao leste da região central de Ploania, uma vasta nação que era o lar de ambos: pagãos e fiéis da igreja. Lawrence não tinha certeza sobre a importância militar da área, mas sabia que para um mercador como ele era de pouco interesse.
A única razão pela qual ele estava aqui era a garota diabólica que dormia em seu colo.
Ele a estava guiando de volta à sua terra natal, Yoitsu.
Por causa dos séculos que se passaram desde que ela tinha deixado sua terra natal, suas memórias e os detalhes sobre o lugar estavam borrados e fracos. Muita coisa mudou no mundo durante esse tempo, e Holo estava ansiosa para aprender até mesmo os rumores mais ínfimos sobre sua terra natal — ainda mais agora que ela havia aprendido sobre a lenda sobre a destruição de Yoitsu.
Seis dias antes, na cidade de Kumersun, eles tinham conhecido Diana, uma cronista que colecionava histórias. Diana lhes tinha contado sobre um monge que se especializou em contos de deuses pagãos.
O monge em questão vivia em um mosteiro remoto, e só o sacerdote da Igreja na cidade de Tereo sabia sua localização.
O caminho para Tereo não era muito conhecido, por isso os dois se dirigiam primeiro para outra cidade, Enberch, para pedir indicações.
Era nessa cidade que finalmente tinham chegado.
“Quero comer pão doce.” Quando eles se aproximaram dos portões da cidade, Holo se agitou e acordou, e estas eram as primeiras palavras saídas de sua boca. “E por pão doce, eu quero dizer — você sabe. Pão de trigo.”
O que ela pediu não era barato, mas Lawrence não tinha o direito de negar.
Ele não sabia o que era vendido na região, então trouxe trigo consigo — trigo que ele comprou do seu amigo Mark, o vendedor de trigo, para quem devia um faor. Mas enquanto Lawrence e Holo viajavam, ele escolhia pão amargo de centeio para que comessem.
Sua decisão miserável o transformou em alvo de grandes reclamações por parte de Holo.
Ele não podia deixar de pensar negativamente sobre a quantidade absurda de pão que Holo iria exigir.
“Em todo caso, primeiro precisamos vender nossas mercadorias.” “Suponho que permitirei isso.”
Na verdade, foi Holo que implorou para que Lawrence a permitisse viajar junto com ele, apesar de se sentir como seu criado a maior parte do tempo.
Ela pareceu notar sua irritação. “Ah, mas minha adorável cauda foi esmagada pelos seus pés. Nada mais justo do que eu te esmagar um pouco de volta,” ela disse de forma maldosa, acariciando sua cauda sob o manto.
Ele esperava que Holo continuasse reclamando por algum tempo, mas parece que ela havia dito o que tinha para dizer.
Lawrence suspirou por dentro, aliviado, e virou a carroça em direção ao moinho.
Embora Enberch fosse remota, ela parecia ser o centro de comércio da região e era bastante movimentada.
Lawrence e Holo apenas tinham se aproximado da cidade por uma direção menos movimentada.
Por toda a praça da cidade haviam carroças carregadas com grãos, frutos e animais que vieram de aldeias vizinhas. Compradores e vendedores negociavam no local.
Havia uma grande igreja que dava para a praça, as suas portas escancaradas para acomodar o comércio movimentado. Através da porta, passava um fluxo constante de pessoas da cidade que vinham rezar ou participar da missa.
Enberch era o tipo de cidade rural que você poderia encontrar em qualquer lugar do mundo.
Quando questionado nos portões da cidade, Lawrence se informou que o maior moleiro na cidade era da Companhia Riendott.
Apesar de não ser algo tão diferente de uma loja de moleiro, a palavra companhia foi acrescentada. Para Lawrence isso era terrivelmente caipira.
No entanto, para além do extremo norte da praça, do lado direito da estrada reta, lá estava ela, a Companhia Riendott — com uma grande vitrine e grande depósito de carregamento. O mercador entendeu por que este negócio queria manter sua reputação.
Ele tinha comprado grãos no valor de cerca de trezentas moedas trenni em Kumersun.
Cerca de metade disso havia sido cuidadosamente peneirado e moído em farinha. O restante havia sido simplesmente debulhado.
Quanto mais ao norte, mais difícil era cultivar o trigo — assim, o preço subia.
Se um mercador tivesse o azar de encontrar alguns dias de chuva em sua viagem, o trigo iria apodrecer rapidamente — e em todo caso, era muito caro para as pessoas que viviam no Norte pagar por algo assim, logo, encontrar compradores poderia ser difícil.
Lawrence levava essencialmente trigo, basicamente porque, como mercador, ele odiava viajar com a carroça vazia.
Também porque, tendo feito um grande lucro em Kumersun, ele decidiu se derviar do caminho da prudência.
Em todo caso, uma cidade do tamanho de Enberch deveria ter alguns nobres Igreja ricos o suficiente para comprar trigo, então Lawrence esperava que a Companhia Riendott estivesse disposta a comprar.
“Ho, isso é trigo?”
Foi o próprio Riendott que surgiu para cumprimentar Lawrence, provavelmente porque sua carroça estava carregada com trigo. Riendott era um homem redondo, dando mais a impressão de um açougueiro do que de um moleiro, e seu rosto parecia um pouco preocupado.
“De fato. Metade como farinha e a outra metade em grãos. Tenho um certificado da qualidade dele.”
“Entendo. Suponho que se bem amassado e cozido daria um bom pão — mas como você pode ver, nós tivemos uma grande colheita de centeio este ano. Simplesmente não temos recursos para lidar com trigo.”
A doca de carregamento da companhia estava, de fato, cheia de sacos de centeio, e na parede ao lado deles, cartazes foram pregados com os destinos de entrega rabiscados em giz.
“Da minha parte, o trigo realmente rende um bom lucro. Nós gostaríamos de comprar de você, dada a oportunidade, mas temos nenhum recurso sobrando em mãos...”
O proprietário estava certamente pensando que centeio — que era lucro garantido — era mais importante para ele do que o trigo, que poderia ou não ser fácil de vender, dependendo dos caprichos dos clientes ricos.
As relações interpessoais eram importantes no mundo dos negócios. Isto era duplamente verdade em áreas remotas como Enberch. O moleiro não podia pagar um único mercador viajante e interromper o seu negócio com agricultores que trariam centeio ano após ano.
“Percebo que você é um mercador viajante — você veio para criar uma nova rota de comércio?”
“Não, este é apenas um negócio paralelo.” “Entendo. Posso perguntar seu destino?”
“Estou indo para Lenos, mas há um lugar próximo que eu gostaria de visitar primeiro.”
Riendott piscou surpreso.
Embora Lenos ainda estivesse mais ao norte, ele tinha certeza de que o mestre de uma companhia de comércio — mesmo uma como esta — a conheceria, pelo menos pela sua reputação.
“Meu Deus, você está indo muito longe... bastante longe, de fato.”
Era óbvio que Riendott assumiu que Enberch era a única cidade da região que valeria o tempo de um mercador.
“Sim, embora eu pretenda parar em Tereo primeiro.”
A surpresa de Riendott era óbvia. “Por Deus, o que te levaria até lá?”
“Tenho negócios com a Igreja de lá. Ah, e deixando o comércio de lado, você por acaso sabe o caminho?”
O olhar de Riendott parou por um momento, como se tivesse sido perguntado o preço da primeira mercadoria que ele já tinha vendido. “A estrada que leva até lá não tem bifurcações, portanto você não precisa se preocupar em se perder no caminho. Eu diria que é cerca de metade de um dia de viagem de carroça. Mas a estrada é ruim.”
Talvez tenha realmente sido uma pergunta estranha de se fazer.
Quem sabe não houvesse nada digno de nota em Lenos.
Riendott hesitou por um momento, olhando para a carroça de Lawrence. “Você vai passar por Enberch na volta?”
“Infelizmente não, estarei tomando um caminho diferente.”
Sem dúvidas, o moleiro estava pensando em comprar a crédito se Lawrence voltasse por de Enberch.
Mas, não — Lawrence não tinha planos para adicionar essa região na sua rota regular.
“Entendo, bem... infelizmente, temo que teremos que ficar por aqui, então.” Disse Riendott, o rosto marcado com o pesar que provavelmente, era pelo menos meio falso.
Comprar trigo caro de um viajante de passagem era uma aposta arriscada.
A farinha de trigo poderia facilmente ter sido misturada com farinha de outros grãos, ou poderia simplesmente parecer de boa qualidade, só mostrando suas verdadeiras cores quando fosse cozinhada.
Se o moleiro pudesse comprar a crédito e adiar o pagamento por um tempo, então mesmo que a qualidade fosse ruim, ele poderia enganar alguns nobres rurais e fazer eles comprarem o trigo.
Mas Lawrence não tinha necessidade de vender seu trigo imediatamente.
Agora não era a hora. Ele apertou a mão de Riendott e preparou para se despedir.
“Acho que é verdade — a forma mais rápida de vender o trigo não é como a farinha, mas como pão,” disse Lawrence.
A qualidade do pão pode ser facilmente determinada com uma única mordida. O sabor era muito mais eficaz do que uma história sobre um saco de farinha de supostamente alta qualidade.
“Ha-ha-ha. Todos nós mercadores pensamos assim. É um ponto sensível com os padeiros da cidade!” Declarou Riendott.
“Ah, então os padeiros aqui são difíceis, não é?”
“Sim, e como. Se alguém além dos padeiros começar a vender pão, eles virão correndo brandindo seus rolos!”
Mercadores compram e vendem, e os padeiros assam — essa divisão do trabalho pode ser encontrada em qualquer lugar do mundo.
Era uma realidade, no entanto, que se um mercador assumisse todo o processo, desde a compra de trigo até a panificação, os lucros seriam substanciais.
Da forma comum, o processo entre a colheita de trigo e a venda do pão era longo e envolvia muitas pessoas diferentes.
“Bem, então — que Deus viaje conosco,” disse Lawrence.
“De fato. Espero ansioso pelos futuros negócios.”
Lawrence deu a Riendott um sorriso e um aceno de cabeça, e então ele e Holo deixaram a loja para trás.
Embora Lawrence estivesse levemente desapontado por não vender o trigo, ele estava mais preocupado com o silêncio sinistro de Holo.
“Você não disse nada desta vez,” ele falou casualmente.
A resposta de Holo foi rápida. “Aquele moleiro disse que é cerca de meio dia de viagem daqui para Tereo, não é?”
“Huh? Ah, sim, ele disse.”
“Então, se sairmos agora, podemos chegar lá pelo cair da noite,” disse Holo, atestando estranhamente.
Lawrence se afastou com o tom de sua voz. “Eu estava pensando que seria bom descansar. Você está cansada, não é?”
“Se você precisa descansar, podemos fazê-lo em Tereo. Se estamos indo, eu prefiro ir logo.”
Lawrence finalmente percebeu a razão para seu tom extraordinariamente obstinado.
Embora ela raramente falasse sobre isso, Holo claramente queria conhecer este monge que colecionava contos de deuses pagãos o mais rápido possível.
Holo era teimosa e podia ser estranhamente orgulhosa.
Ela julgava que estava abaixo da sua dignidade ficar pedindo constantemente para Lawrence se apressar.
Mas com seu destino tão perto, as brasas que ardiam em seu peito se tornavam chamas ardentes.
Sem dúvidas, ela estava cansada. No entanto, o fato de que ela pediu provava o quão desesperada era sua necessidade por conhecimento.
“Tudo bem, então. Mas vamos ter uma refeição quente primeiro?
Certamente você não vai se importar com isso.”
Holo pareceu atordoada com a afirmação de Lawrence. “Você precisa perguntar?”
Lawrence sorriu — no mesmo instante em que o estômago de Holo roncou.
Justamente quando parecia que as colinas suaves nunca iriam acabar, a paisagem mudou — parecia que Deus tinha tomado mais cuidado ao moldar esse terreno.
A geografia ondulante era como a massa de pão, se dobrando descuidadamente sobre si mesma. Um rio corria pelo vale entre os montes, e aqui haviam florestas exuberantes.
A carroça, na qual a dupla andava, rangia enquanto se arrastava ao longo da estrada, seguindo o rio.
Lawrence olhou para Holo, se perguntando se deveria tê-la forçado a descansar enquanto estavam em Enberch.
Entre o anoitecer e o amanhecer, o frio do inverno dificultava o sono profundo. Um deles ficava sempre desperto, em seguida dormia, e depois era acordado mais uma vez. Embora a verdadeira forma de Holo fosse a de um lobo gigante, enquanto estava como uma donzela, sua constituição parecia se adequar à forma.
A longa viagem certamente foi difícil para ela.
Ela se encostou em Lawrence, dormindo, parecendo completamente exausta.
Ele considerou pedir alojamento no mosteiro.
Era possível que as acomodações fossem simples, algo que Holo poderia reclamar — enquanto Lawrence considerava o assunto, ele notou que o rio estava começando a se alargar.
O rio se enrolava ao redor de um declive à frente, então ele não podia ver para onde levava. A bacia certamente iria aumentar, e a correnteza iria enfraquecer.
E então, um certo som inconfundível chegou aos seus ouvidos. Lawrence compreendeu imediatamente o que estava por vir.
As orelhas de lobo aguçadas de Holo também se mexeram. Ela esfregou o sono dos seus olhos e olhou adiante, sob o capuz.
Tereo estava perto.
Exatamente onde o fluxo do rio desacelerava até dar uma parada, formando um pequeno lago, estavam situados uma pequena roda d'água e um moinho.
“Se há uma roda d'água aqui, devemos estar perto.”
Em locais onde a água era limitada, as pessoas a armazenavam em um local elevado e depois usariam a diferença de altura para alimentar a roda d'água.
Devido à falta de água, o método funcionava apenas por algum tempo — e com a colheita finalizada, o momento em que uma fila de moradores esperariam para moer seus grãos na roda d'água já havia passado.
Neste momento, a roda d'água à beira do rio escuro simplesmente estava ali, desamparada.
Assim que Lawrence se aproximou o suficiente do moinho a ponto de que poderia começar a diferenciar os grãos da madeira, uma sombra saltou para fora.
Surpreso, Lawrence puxou as rédeas. Seu cavalo soltou um relincho descontente, balançando a cabeça de um lado para o outro.
Quem surgiu era um jovem. Suas mangas estavam arregaçadas, apesar do tempo frio, e seus braços estavam brancos com farinha.
“Whoa — whoa! Diga, você é um viajante?” perguntou o jovem, dando a volta na frente da carroça antes que Lawrence pudesse ou expressar sua irritação ou continuar ao longo do seu caminho.
“...Suponho que você colocar dessa forma, sim, sou um viajante. E você?”
Embora ele fosse um garoto, o jovem não poderia ser mais diferente de Amati, o rapaz contra quem Lawrence tinha brigado no mercado uma semana antes. O garoto na frente dele era magro, mas tinha uma robustez fruto do trabalho físico. Ele tinha a estatura de Lawrence, com o cabelo preto e olhos que eram comuns em terras do norte. Ele parecia forte o suficiente para que Lawrence o imaginasse empunhando uma canga¹. Seu cabelo negro estava polvilhado com farinha.
Perguntar para este garoto cheio de farinha, que tinha acabado de sair de uma roda d'água, quem ele era, seria como ir à tenda de um padeiro cheia de pão e perguntar o que estava à venda.
“Ha, bem, como você pode ver, eu sou um moleiro. Então, de onde você veio? Você não parece que é de Enberch.”
Lawrence achou o despreocupado sorriso do garoto um pouco infantil.
Ele interiormente adivinhou que o garoto era seis ou sete anos mais jovem e, de repente, foi cauteloso para Holo não pôr os olhos em outro jovem infeliz — criando mais uma bagunça para Lawrence limpar.
“Como você pode imaginar, eu tenho uma pergunta para você,” disse Lawrence. “Quanto tempo vai demorar para chegar na cidade de Tereo?”
“A cidade... de Tereo?” repetiu o jovem, atordoado por um momento. Ele, então, sorriu e continuou. “Se Tereo é uma cidade, então Enberch é a capital real. Eu não sei o que o traz aqui, mas Tereo é uma pequena aldeia. Basta olhar para este moinho lamentável!”
Lawrence estava vagamente surpreso com as palavras do rapaz até que se lembrou que, assim como Holo, Diana (quem deu a informação sobre a cidade) tinha centenas de anos de idade. No seu tempo, Tereo poderia muito bem ter sido a maior e mais movimentada cidade da região. Declínio não era raro.
Lawrence acenou e refez sua pergunta. “Então, o quão longe é?” “É logo adiante. Naturalmente, não é como se houvesse um grande muro que circunde o lugar — você pode até mesmo dizer que você já está em Tereo.”
“Entendo. Bem, obrigado,” Lawrence disse brevemente, supondo que deixasse, o rapaz continuaria falando.
Lawrence sacudiu as rédeas e começou a mover a carroça ao redor do garoto, que ficou nervoso e se moveu rapidamente para bloquear o caminho da carroça. “E-ei, não tenha tanta pressa, hum, senhor viajante?”
Com os braços do jovem bloqueando o caminho, não havia como Lawrence passar.
Teria sido fácil o suficiente forçar seu caminho, mas se o rapaz se ferisse, ele certamente não daria uma boa primeira impressão para o povo de Tereo.
Lawrence suspirou. “O que você quer, então?”
“Ah, er — bem... Ah! Sua companheira... ela é bastante bonita!”
Holo, com a cabeça coberta pelo capuz que usava, suprimiu uma risada, embora sua cauda abanando mostrasse seu divertimento.
Lawrence pôde sentir o calafrio ocasional de superioridade graças à sua encantadora companheira, mas ultimamente suas preocupações sobre os problemas que ela aparentemente atraia superavam esses breves lampejos de prazer.
“Ela é uma freira em peregrinação. Isso é tudo? Apenas um cobrador de impostos pode bloquear o caminho de um mercador, senhor.”
“U-uma freira?” A surpresa do jovem com a palavra inesperada era óbvia.
Dada a grande igreja no centro da Enberch, parecia improvável que a pequena aldeia de Tereo fosse inteiramente pagã.
Mesmo nas regiões do norte de Ploania, uma aldeia pagã precisaria de defesas consideráveis para resistir contra uma fortaleza vizinha como Enberch.
Certamente havia uma igreja em Tereo — então por que o jovem se surpreendeu?
Enquanto Lawrence pensava sobre isso, o jovem percebeu seu estado contemplativo.
Parecia que ele estava mais preocupado com Lawrence do que com Holo.
“Entendido, viajante. Não vou mais impedi-lo. Mas ouça as minhas palavras — é melhor você não levar uma freira para Tereo.”
“Oh?”
Para Lawrence não parecia que o rapaz estava brincando.
Só para ter certeza, ele cutucou Holo debaixo dos cobertores para ela avaliar a veracidade das palavras dele. Ela assentiu com a cabeça rapidamente, confirmando sua avaliação.
“Por que isso? Viemos tratar de negócios com a Igreja em Tereo. Certamente, se há uma igreja, não há nenhuma razão para uma freira não entrar na aldeia. Ou não há —”
“N-não, certamente há uma igreja. Mas a razão... é um conflito, entende? Com o pessoal desagradável da Igreja em Enberch.” A expressão do jovem era aguçada, como de um mercenário recém- formado.
A força inesperada do olhar do jovem deixou Lawrence momentaneamente surpreso, mas depois se lembrou que o moço era apenas um moleiro.
“Então, isso é o que se passa. Como posso explicar? Se uma freira aparecesse agora, as coisas poderiam ficar complicadas. É por isso que eu prefiro que você não vá.” Pondo de parte da sua hostilidade, o jovem agora tinha uma repentina imagem de boa índole e preocupação, mas ainda assim, havia algo estranho com ele.
Levando em conta que ele não parecia ter com Lawrence e Holo qualquer má vontade em particular, Lawrence decidiu não questionar ainda mais.
“Entendo. Bem, seremos cautelosos. Certamente não vamos ser expulsos assim que chegarmos.”
“Bem... não, eu não acho que serão.”
“Meus agradecimentos. Vou manter o seu conselho em mente. Suponho que caso ela não esteja vestida como uma freira — ninguém se importaria, certo?”
O jovem pareceu relaxar. “Isso seria uma bênção, sim.” Sua desconfiança de Lawrence parecia ter virado súplica. “Mas que negócio você tem com a igreja?”
“Precisamos de direções.”
“Direções?” O jovem coçou o rosto, duvidoso. “Então... então você não veio para fazer negócios. Você é um mercador, certo?”
“Sim, e você é um moleiro, não é?”
O menino sorriu como se o seu nariz coçasse, então caiu, derrotado. “E eu estava esperando que pudesse ser de alguma utilidade para você no negócio.”
“Eu vou te chamar, se necessário. Agora, podemos passar?”
O jovem parecia ainda ter algo a dizer, mas foi incapaz de juntar as palavras, ele acenou com a cabeça e cedeu.
O olhar que lançou para Lawrence era profundamente implorante.
Ficou claro que ele não estava pedindo uma taxa sobre a informação.
Lawrence afrouxou o aperto nas rédeas e estendeu a mão para o jovem. Ele olhou diretamente nos olhos do garoto, falando claramente e de maneira uniforme. “Meu nome é Kraft Lawrence. Como você se chama?”
Em um instante, o rosto do rapaz floresceu em um sorriso. “Evan! Eu... eu sou Gyoam Evan.”
“Evan, então. Entendido. Vou me lembrar disso.”
“Por favor — por favor!” O jovem moleiro gritou com a voz alta o suficiente para fazer um cavalo, que se assustava facilmente, entrar em pânico, agarrando a mão de Lawrence com força. “Passe por aqui quando você retornar, se puder,” ele acrescentou, afastou-se da carroça e voltou para a entrada da pequena roda d'água.
Ele ficou ali na frente da roda d'água de madeira preta, o rosto embranquecido com farinha, parecendo distintamente solitário enquanto observava a carroça de Lawrence e Holo.
Então — assim como Lawrence imaginava — Holo virou para olhar por cima do ombro, acenando com a mão timidamente para o jovem. Ele começou como se estivesse surpreso, depois devolveu o aceno grandiosamente com as duas mãos, com um sorriso enorme no rosto.
Ele parecia menos com um rapaz acenando para uma bela donzela e mais com um garoto feliz por ter encontrado um amigo.
O caminho à frente virava para a direita, colocando o moinho de Evan fora de vista.
Holo se virou para a frente.
“Hmph. O garoto parecia olhar para você mais do que para mim,” ela anunciou, descontente.
Lawrence sorriu por um momento, então suspirou e respondeu:
“Bem, ele é um moleiro. Não é uma vida fácil.”
Holo olhou para Lawrence duvidosamente, com a cabeça inclinada.
Deve ter havido uma razão por trás do desejo do rapaz de apertar a mão de Lawrence, o mercador, em vez de Holo, a donzela.
Mas era um motivo agradável? Certamente, a resposta era não.
“Não é muito diferente de ser um pastor. Ambos são trabalhos necessários, mas as pessoas que labutam neles são vistas com desprezo em cidades e aldeias.”
Naturalmente, dependendo da região, isto não era sempre o caso. Mas Lawrence tinha certeza de que o povo de Tereo não levava este moinho em muita consideração.
“Por exemplo,” continuou Lawrence “pense no trigo que está na bolsa em seu pescoço.”
Holo, de fato, usava uma pequena bolsa em volta do pescoço — apesar de estar escondida sob camadas de roupas no momento — que continha o trigo onde a essência dela ficava.
“Se você moesse essa quantidade de trigo, quanta de farinha você acha que daria?”
Holo olhou para seu peito.
Ela podia controlar a qualidade e a quantidade da colheita, mas mesmo ela parecia não estar totalmente segura sobre o quanto de farinha viria de um punhado de grãos.
“Suponha que você tenha grãos em grande quantidade,” disse Lawrence, colocando as rédeas para baixo por um momento e traçando o esboço de um pequeno monte na mão. “Se você o moer, provavelmente ficaria com isso em farinha,” ele continuou, fazendo um círculo muito menor com o dedo indicador e o polegar.
Uma vez moído num moinho, o volume de trigo tornava-se surpreendentemente pequeno.
Então, o que um fazendeiro pensaria, trabalhando dia a dia para aumentar a sua cultura, orando sempre ao deus da colheita, apenas para ver seus meses de chão e trabalho em uma pequena e deprimente quantidade de trigo?
Holo soltou um pequeno som em compreensão após Lawrence fazer a pergunta.
“Eles dizem que os moleiros na roda d'água tem seis dedos e que o sexto cresce a partir da palma da mão — com o intuito de roubar farinha. Além disso, a maioria das rodas d'água são de propriedade do senhorio local, que aplica um imposto sobre todos os que moem seus grãos lá. Mas o senhorio não pode vigiar o moinho durante todo o dia, então quem você acha que recolhe impostos em seu lugar? “
“Eu suponho que seja o moleiro.”
Lawrence balançou a cabeça e continuou. “Sim, e ninguém ficaria feliz com o pagamento de impostos. Mas é necessário. Então, quem você acha que carrega o peso de seu ressentimento?”
Ela pode não ser humana, mas o entendimento de Holo do mundo humano era profundo.
Ela sabia a resposta imediatamente.
“Ah, eu entendi. Portanto, a razão que ele estava abanando a cauda com tal vigor para você, em vez de para mim, era —”
“Mesmo assim,” disse Lawrence com um suspiro e um aceno de cabeça. À frente deles, as casas da vila de Tereo finalmente vindo à tona. “Ele adoraria deixar esta cidade.”
O trabalho no moinho era um trabalho importante que tinha que ser feito.
Mas aqueles que faziam a ingrata tarefa muitas vezes eram ressentidos.
Quanto mais minuciosamente o grão fosse moído, melhor o aumento do pão feito a partir dele.
No entanto, quanto mais fina a moagem, menor seria o volume da farinha resultante.
Fazer um bom trabalho e ainda assim receber o ressentimento daqueles que se beneficiaram dele — Lawrence já tinha ouvido a história em outro lugar. Holo olhou para frente, como se estivesse arrependida de ter perguntado isso.
“Mas é uma tarefa necessária, e há aqueles que apreciam,” disse Lawrence. Ele acariciou suavemente a cabeça de Holo antes de tomar as rédeas novamente. Holo assentiu levemente sob seu toque.
Embora Evan tivesse chamado de uma pequena aldeia, Tereo não era tão ruim quanto Lawrence acreditava.
A única diferença real entre uma cidade e uma aldeia era a presença de um muro.
Havia uma abundância de “cidades” com paredes pouco mais do que uma cerca de madeira frágil, assim, para uma suposta aldeia, Tereo era bastante grande.
Como em outras aldeias, os seus edifícios não eram colocados em conjunto (eles foram erguidos de forma mais dispersa), mas havia uma arquitetura em paredes de pedra no que parecia ser o coração de Tereo. As ruas, embora não pavimentadas, eram limpas e sem buracos. A igreja era grande o suficiente para ser visível a uma distância razoável, tinha uma torre adequada e um sino.
De fato, para que fosse chamada de ‘cidade’, tudo que faltava para
Tereo era um muro.
Atendendo ao aviso do Evan, Holo cobriu a cabeça com o casaco de Lawrence, apertando-o com uma corda em volta do pescoço como se esperasse uma chuva. Ela evitou sua típica roupa de garota de cidade, pois esta era um pouco elegante e poderia atrair a atenção.
Holo já se destacava o suficiente por si só.
Uma vez que ela tinha acabado de se arrumar, Lawrence dirigiu a carroça em direção aos edifícios da vila.
Não ter um muro significava que não havia um portão, o que, por sua vez, garantia que os viajantes que passassem pela aldeia não seriam tributados.
Não havia ninguém para parar a carroça quando entrasse na cidade. Um homem ocupado empacotando feixes de trigo encarou
Lawrence e Holo abertamente; Lawrence acenou com a cabeça em resposta.
A aldeia era empoeirada, as ruas esburacadas e estreitas. Edifícios tanto de pedra, quanto de madeira, eram largos e tinham telhados baixos. Muitas das casas tinham jardins — uma visão rara em cidades maiores.
Aqui e ali, ao longo da estrada, haviam montes de palha, um sinal de que a colheita fo concluída recentemente. Feixes de lenha os intercalavam.
Os pedestres eram poucos; parecia que eles estavam em desvantagem perante os porcos e as galinhas que vagavam em alguns lugares.
A única semelhança da aldeia com outros locais era o costume de encarar — ao avistar os viajantes, cada morador encarava Lawrence e Holo.
Neste sentido, Tereo era exatamente como uma pequena aldeia.
Lawrence sentiu seu status de forasteiro pesar profundamente, de uma forma que não tinha sentido em muitos anos.
Ele cresceu em uma vila pobre. Ele estava bem consciente de que tais lugares ofereciam pouco em termos de diversão e que um viajante era a distração perfeita.
Lawrence pensou sobre isso enquanto guiava. Eles finalmente chegaram a uma grande praça com um grande bloco de pedra colocada no centro.
Parecia ser o centro da aldeia, já que era rodeada por vários edifícios.
Com base nos sinais de ferro forjado que pendiam dos beirais dos edifícios, parecia haver uma taberna, uma hospedaria e uma padaria, junto com o que parecia ser uma oficina de tecelão de lã. Um edifício com uma entrada maior dava para a rua, certamente uma área comum, onde o trigo colhido poderia ser trilhado e peneirado.
Outros edifícios pareciam ser as casas das famílias mais velhas, mais influentes da aldeia — e claro, havia também a igreja.
Havia, sem surpresa, um bom número de pessoas — crianças brincando na praça e adultos em pé conversando. Lawrence e Holo se encontraram mais uma vez sendo o interesse de olhares curiosos.
“É uma pedra bem grande aquela ali. Pra que é utilizada?” Holo perguntou casualmente, despreocupada com o olhar dos aldeões.
“Provavelmente para uso cerimonial em algum festival, ou para a dança, ou talvez para a realização de reuniões, eu suponho.”
A pedra em questão tinha uma superfície lisa, plana e ia até a cintura de Lawrence aproximadamente.
Uma escada de madeira se inclinava contra ela, o que sugeria que a pedra não tinha sido colocada aqui como um mero ponto de referência.
A única maneira de saber com certeza seria perguntando para algum aldeão, mas Holo apenas balançou a cabeça vagamente e se recostou contra o banco da carroça.
Lawrence orientou a carroça ao redor da pedra e em direção à igreja.
Apesar do bombardeio constante de olhares curiosos, ficou claro que este não era um vilarejo isolado de montanha.
A carroça parou na frente da igreja. Nesse momento os moradores pareciam supor que o casal tinha vindo orar por uma viagem segura, e o nível de interesse diminuiu.
“Parece que eles estão quase decepcionados,” murmurou Lawrence para Holo, uma vez que parou a carroça e desceu. Holo sorriu conspiratoriamente.
A igreja era uma construção grande de pedra, a sua grande porta de madeira era enquadrada em ferro.
Ela parecia ter resistido muitos anos. Os cantos dos blocos de pedra que compunham o edifício estavam desgastados pelo tempo, embora a argola de ferro afixada na porta da igreja parecia estranhamente não utilizada.
Era estranho que a porta estivesse fechada. Não era um claustro, nem parecia haver um serviço em andamento. As portas de uma igreja normalmente estariam abertas.
Se ele tivesse que dizer de forma direta, Lawrence teria imaginado que a igreja não era amada pela aldeia.
Mas não havia nenhum tempo para conjecturas. Lawrence agarrou o batente e bateu várias vezes.
Klang, klang — o som seco ecoou estranhamente através da praça.
Não houve resposta por alguns instantes, então, quando Lawrence estava começando a se perguntar se havia alguém, a porta rangeu alto, abrindo apenas uma fresta.
“Quem é?” Uma voz de garota, não muito amigável, se fez audível através da fenda.
“Peço desculpas por chamar sem aviso prévio. Eu sou Lawrence, um mercador viajante,” disse Lawrence com um sorriso atraente. A garota do outro lado da porta estreitou os olhos, desconfiada.
“Um... mercador?”
“Isso mesmo. Eu venho de Kumersun.”
Igrejas tão cautelosas em suas entradas eram raras.
“...E ela?” O olhar da moça se virou para Holo.
“Circunstâncias a levaram a viajar comigo,” disse Lawrence de forma simples.
A garota olhou de Lawrence para Holo antes de suspirar suavemente e, em seguida, abrir a porta lentamente.
Enquanto a grande porta se abria, Lawrence ficou surpreso ao ver que a garota usava um longo manto de sacerdote.
“Qual é o seu negócio aqui?” Ela perguntou.
Embora Lawrence estava confiante de que tinha escondido sua surpresa, a garota tinha uma expressão severa que combinava com seu tom. Seu cabelo castanho escuro estava amarrado com força, e seus olhos cor de mel brilhavam em desafio.
Deixando a atitude dela de lado, esta foi a primeira vez que Lawrence foi questionado sobre qual era seu negócio em uma igreja.
“Ah, sim — eu gostaria de falar com o padre, se isso for possível.”
Normalmente era impossível para mulheres servirem ao sacerdócio da Igreja. A organização era totalmente patriarcal.
Essa tinha sido a suposição de Lawrence quando fez a pergunta, mas as sobrancelhas da garota apenas franziram mais profundamente com suas palavras.
Ela olhou deliberadamente seu próprio manto antes de responder: “Embora eu não seja uma sacerdotisa por completo, eu sou responsável por esta igreja. Meu nome é Elsa Schtingheim.”
Uma mulher no comando de uma igreja — e uma bastante jovem.
Lawrence ficaria menos surpreso se descobrisse que o proprietário de alguma empresa grande e bem-sucedida fosse uma mulher — e isso já seria bastante surpreendente.
Elsa parecia estar acostumada com esta reação. Mais uma vez ela calmamente repetiu a pergunta: “Qual é o seu negócio aqui?”
“Ah, er, gostaríamos de pedir direções...” “Direções?”
“Sim. Precisamos encontrar um determinado mosteiro —
Mosteiro Diendran, sob os cuidados do abade Louis Lana Schtinghilt.”
Quando Lawrence disse em voz alta, a semelhança entre o nome do abade e de Elsa o ocorreu. A surpresa de Elsa ficou imediatamente clara.
Mas antes que Lawrence pudesse sequer perguntar o que estava errado, ela afastou o olhar de surpresa em seu rosto. “Eu não conheço esse lugar,” ela falou.
As palavras de Elsa foram educadas o suficiente, mas seu semblante grave revelou seus verdadeiros sentimentos. Ela começou a fechar a porta sem esperar pela resposta de Lawrence.
No entanto, que tipo de mercador ele seria se deixasse uma porta ser fechada na sua cara?
Lawrence rapidamente enfiou o pé na fenda antes que ela pudesse fechar, sorrindo. “Ouvi dizer que há um padre aqui com o nome de Franz.”
Elsa olhou amargamente para baixo, para o pé de Lawrence antes de olhar tristemente em seus olhos. “Padre Franz faleceu no verão.”
“O qu —?”
Ela aproveitou a sua surpresa para continuar. “Você está satisfeito? Eu não sei sobre o mosteiro que você procura e estou muito ocupada.”
Lawrence sentiu que se persistisse ela poderia gritar por socorro e ele estaria em apuros.
Ele retirou seu pé. Elsa deu um último suspiro irritada, em seguida, fechou a porta.
“...”
“Ela certamente te odeia.”
“Talvez seja porque eu não deixei o dízimo.” Lawrence deu de ombros e olhou para Holo. “É verdade que o padre Franz está morto?”
“Ela não parecia estar mentindo. No entanto —”
“Ela estava mentindo quando disse que não sabia do mosteiro.”
Lawrence poderia estar vendado e ainda teria visto através daquela mentira tão óbvia quanto a surpresa de Elsa ao ouvir sobre o mosteiro mencionado.
Mas era verdade que ela estava no comando da igreja? Parecia algo perigoso demais para ser uma brincadeira.
Talvez Elsa era filha do Padre Franz, se não pelo sangue, então por adoção.
“O que vamos fazer?” Perguntou Lawrence.
A resposta de Holo foi rápida. “Em todo caso, não podemos forçar nosso caminho para dentro. Vamos encontrar uma pousada.”
Ainda sendo o objeto de muitos olhares curiosos, os dois se recolocaram na carroça.
“Ooh... Faz tanto tempo...” disse Holo, se jogando na cama e se esticando.
“Certamente é melhor do que dormir na carroça, mas só um aviso
— pode ter insetos.”
Esta cama não era de lã ou algodão esticado sobre uma moldura de madeira, mas tinha um denso colchão feito de palha. Era bem provável que houvesse insetos hibernando dentro da palha, esperando a época de reprodução no verão.
Ele sabia que não faria diferença ela ser cautelosa ou não. Os insetos amavam a cauda felpuda dela.
“E isso importa? Eu já estou sendo seguida pelo maior inseto de todos.”
Holo sorriu maliciosamente, com o queixo apoiado nas mãos. Lawrence suspirou. Era verdade — ela também atraia esse tipo de inseto.
“Esta é uma aldeia muito pequena. Tente não causar confusão,” disse Lawrence.
“Isso vai depender inteiramente da sua atitude.” Depois de zombar desagradavelmente de Lawrence, Holo rolou na cama, a cauda farfalhava, e deu grande bocejo. “Estou cansada. Posso dormir?”
“E se eu disser não?” Lawrence perguntou com uma risada.
Holo olhou por cima do ombro e estreitou os olhos sugestivamente. “Eu iria cochilar ao seu lado.”
Humilhantemente, Lawrence considerou a possibilidade e não a achou completamente desagradável. Ele tossiu, evitando seu olhar — o que deixou bem claro que ela viu através dele — e decidiu evitar um confronto. “Bem, eu suponho que você realmente esteja cansada, não é? Se descansar agora antes de entrar em colapso por exaustão, seria um benefício para o seu companheiro de viagem.”
“Hmph. Sendo assim, eu vou descansar.” Holo abandonou seu ataque e fechou os olhos.
Sua cauda também parou de balançar. Lawrence sentia que ele poderia ouvi-la roncar a qualquer momento.
“Mas primeiro tire esse seu capuz e manto, e também o meu casaco que você jogou de lado. Deixe-os dobrados e coloque um cobertor sobre o colchão. Honestamente.” Lawrence não podia deixar de pensar nas princesas mimadas que apareciam em peças de teatro.
Holo não fez mais do que mover a cabeça para a reclamação de Lawrence.
“Se as roupas não estiverem dobradas até a hora que eu voltar, você não vai ter um bom jantar.”
Era como se estivesse repreendendo uma criança desobediente. Holo desempenhou o papel enquanto erguia os olhos rapidamente. “Você é muito gentil para realmente fazer isso.”
“...Você vai se dar mal algum dia.”
“Oh, sim, se você conseguir fazer algo sobre isso. Pouco importa
— você vai a algum lugar?”
Os olhos de Holo estavam começando a ficar turvos mesmo enquanto falava. Lawrence não conseguiu deixar de caminhar até ela e a cobrir com um cobertor. “Eu não me incomodaria se estivéssemos
apenas de passagem, mas parece que vamos ficar aqui por um tempo, é melhor eu ver o ancião da aldeia. Ele também pode saber onde o mosteiro está.”
“...Entendo.”
“Certo. Então pode ficar dormindo aqui.”
Holo puxou o cobertor sobre sua boca e assentiu.
“Mas duvido que eu vá encontrar uma lembrancinha para você.”
“...Não me importo.” Os olhos de Holo se abriram um pouco, e ela acrescentou em uma voz doce e suave, parecendo que poderia cair no sono a qualquer momento, “Desde que você volte...”
Ele sabia que era uma armadilha, mas mesmo assim não foi capaz de esconder seu alvoroço.
As orelhas de Holo se mexeram alegremente.
Ela podia não receber uma lembrancinha, mas conseguiu ver o rosto de um tolo.
“Eu já ganhei a minha lembrancinha. Boa noite.”
Holo se aconchegou debaixo do cobertor. “Durma bem,” Lawrence respondeu por como uma forma de rendição.
Lawrence descarregou um pouco de trigo de sua carroça dentro de um saco de tamanho moderado e perguntou ao estalajadeiro onde ficava a casa do ancião da vila, e então deixou a pousada.
As crianças do local pareciam muito preocupadas com o viajante que veio à sua aldeia no auge do inverno. Porém, assim que Lawrence abriu a porta da pousada, eles se dispersaram.
O estalajadeiro disse que as festas realizadas na primavera e no outono, para o plantio e colheita, respectivamente, atraiam algumas pessoas de fora da aldeia, mas desde que Tereo estava bem fora do caminho, os visitantes geralmente eram raros. No momento, Lawrence e Holo eram os únicos hóspedes da pousada.
A casa do ancião da aldeia de Tereo era o edifício mais grandioso de frente para a praça. Suas fundações e piso térreo eram feitos de pedra, enquanto o segundo e terceiro andares do imponente edifício eram de madeira.
A porta da frente tinha o tipo de estrutura de ferro que Lawrence esperava ver em uma porta da igreja, e foi finamente trabalhado com desenhos sutis.
O batente da porta tinha a forma de um lagarto ou cobra, o que aparentava um certo mau gosto.
Provavelmente venerava uma divindade local de algum tipo. Divindades com formato de cobra e sapo eram surpreendentemente comuns.
“Com licença, tem alguém em casa?” Lawrence disse enquanto batia o batente. Depois de um tempo, a porta se abriu e uma mulher de meia-idade apareceu, com o avental e as mãos cobertas com uma camada de farinha. “Olá — quem é o senhor?”
“Peço desculpas pela intromissão. Meu nome é Kraft Lawrence. Sou um mercador viajante. Eu tenho—”
“Oh, Deus. Ancião! Aquele de quem todo mundo está falando — ele está aqui!”
Embora Lawrence tivesse sido pego de surpresa por ter sido cortado de forma tão abrupta, a mulher parecia não se importar enquanto se virava e gritava “Ancião!” novamente e caminhava para dentro da casa.
Tendo sido tão claramente ignorado, Lawrence limpou a garganta para se afirmar.
Por fim, a mulher voltou, escoltando até a porta um homem pequeno e idoso carregando um bastão.
“Veja, aqui está ele!”
“Srt. Kemp, você está sendo rude com nosso convidado.”
Lawrence ouviu toda a conversa, mas não era tão mesquinho a ponto de ficar irritado.
E de qualquer forma, uma mulher alegre da aldeia poderia ser uma poderosa aliada ao fazer negócios.
Lawrence sorriu brilhantemente para os dois.
“Por favor, perdoe nossas maneiras terríveis. Eu sou Sem, o ancião da aldeia de Tereo.” disse o velho.
“Estou muito grato em conhecê-lo. Eu sou Lawrence, um mercador viajante.”
“Bem, agora, Srt. Kemp, volte para dentro e fique com os outros... Meu Deus, as minhas desculpas, senhor. Um visitante que aparece no final da temporada deixa a língua de todas as esposas inquietas.”
“Eu espero que os rumores sejam bons.”
Sem sorriu. “Venha, entre,” ele convidou, trazendo Lawrence para dentro da casa.
Um hall guiava direto da entrada. Lawrence podia ouvir risos a partir de uma grande sala mais distante para dentro da casa.
Enquanto caminhava, o pó da farinha fazia cócegas em seu nariz. Sem dúvida, as mulheres estavam conversando e rindo enquanto amassavam a farinha de trigo recém-moída em massa de pão.
Era algo comum na zona rural.
“Se você for para a sala interior vai acabar branco de farinha! Me siga,” disse Sem, abrindo a porta para um quarto grande. Ele fez um gesto para Lawrence entrar primeiro, depois ele o seguiu.
Lawrence ficou imediatamente atordoado.
Uma cobra gigante estava enrolada em cima da prateleira contra a parede da sala.
“Ha-ha-ha, fique calmo. Ela não está viva.”
Lawrence olhou novamente. Era verdade; as escamas pretas e brilhantes estavam secas e o corpo fora amassado. A pele tinha sido seca, recheada e costurada.
Ele se lembrou da serpente em forma de batente na porta. Talvez a aldeia adorasse uma divindade serpente.
Por sugestão de Sem, Lawrence se sentou, pensando que teria que perguntar a Holo sobre isso mais tarde.
“Então, qual é o negócio que o traz à nossa humilde aldeia?”
“Ah, sim. Primeiro, como vamos ficar na sua aldeia eu gostaria de oferecer os meus cumprimentos. Aqui está uma amostra do trigo que tenho estocado,” ofereceu Lawrence, mostrando o saco de trigo que encheu para a ocasião. Sem piscou rapidamente.
“Meu Deus gracioso! Mercadores viajantes nos dias de hoje começam a falar de negócios desde a primeira palavra que sai de sua boca.”
Este comentário foi um pouco desagradável para Lawrence ouvir, apesar deque isso o descrevia perfeitamente — até recentemente.
“E qual seria o seu outro objetivo aqui?” perguntou Sem.
“Ah, bem. Estamos à procura de um mosteiro e estávamos esperando que você poderia saber a sua localização.”
“Um mosteiro?”
“Sim. Nós perguntamos na igreja primeiro, mas, infelizmente, eles não sabem.” Lawrence tinha uma expressão incomodada, embora seus olhos penetrantes de mercador continuassem a observar Sem cuidadosamente em busca de qualquer reação.
Ele viu o olhar de deriva de Sem por apenas um momento.
“Entendo... Infelizmente eu também não ouvi falar de nenhum mosteiro na região. De onde veio essa informação?”
O instinto de Lawrence o dizia que Sem sabia.
Mas se ele mentisse sobre a sua fonte de informação isso poderia ser problemático mais tarde. Ele decidiu ser honesto.
“Em Kumersun. Uma cronista me disse.” O bigode de Sem contraiu.
Lawrence tinha certeza que ele estava escondendo algo. Não — não só isso, Lawrence pensou.
Sem e Elsa não apenas sabiam onde o mosteiro ficava, eles sabiam o que poderia ser encontrado lá.
Diana havia contaado sobre um monge — um monge que se especializou na coleta de contos de deuses pagãos.
Se Sem e Elsa sabiam sobre isso, eles poderiam estar fingindo ignorância para não se envolverem.
Em todo caso, o padre Franz — o homem que Diana indicou a Lawrence para perguntar sobre este mosteiro — já tinha ido para o céu.
Era surpreendente que aqueles que ele deixou para trás queriam enterrar o assunto.
“A cronista em Kumersun me disse que se eu falasse com o padre Franz, ele seria capaz de me dizer onde é esse mosteiro.”
“Ah, entendo... Infelizmente, neste verão, o padre Franz...” “Sim, eu soube.”
“Sua perda foi difícil. Ele dedicou muitos anos do seu trabalho para a aldeia.” A expressão triste de Sem não parecia ser um ato, mas também não vinha do respeito pela Igreja.
Algo parecia errado.
“E agora a senhorita Elsa tomou o seu lugar?”
“Mesmo assim. Ela é muito jovem — sem dúvida você ficou surpreso.”
“Surpreso, de fato. Então —”
Lawrence estava prestes a continuar quando houve uma batida na porta, e uma voz gritou: “Ancião!”
As perguntas que Lawrence queria perguntar pararam em sua garganta, mas não haveria nenhum ganho com a pressa, ele decidiu.
“Parece que você tem outro visitante. Acho melhor me retirar.
Estou preocupado com minha companheira.”
“Oh, Deus. Estou muito arrependido. Não consegui ser útil em nada.”
As batidas continuaram por um tempo até que a Sra. Kemp foi atender a porta.
“Espero que as notícias sejam boas,” Lawrence ouviu o murmúrio de Sem quando um homem vestindo roupas de viagem, com o rosto vermelho e suado, apesar do frio, entrou na sala rapidamente, passando por Lawrence em seu caminho para Sem.
“Ancião, eu trouxe isso!”
Sem deu um olhar de desculpas para Lawrence, e com um sorriso, Lawrence saiu da casa do ancião.
Ele sentiu que tinha feito uma boa apresentação de si mesmo como um mercador viajante.
Deve ser um pouco mais fácil ficar na aldeia agora, Lawrence pensou. Mas o que o homem tinha levado para Sem?
Ao deixar a casa do ancião, ele imediatamente viu um cavalo cujo corpo estava bastante quente. Ele não tinha sido amarrado em um poste, mas simplesmente deixado lá. Um grupo de crianças olhava para o animal à distância.
Baseado no rumo do cavalo, Lawrence podia dizer que tinha sido montado a uma certa distância; o homem também tinha vestes de viajem.
Por um momento, ele se perguntou o que faria um aldeão ir em uma viagem dessas, mas depois se lembrou que não tinha vindo aqui fazer negócios.
Sua primeira prioridade era fazer Elsa ou Sem lhe dizerem a localização do mosteiro.
Então, como fazer isso?
Lawrence permaneceu imerso em seus pensamentos enquanto voltava para a pousada. Holo estava esparramada tão confortavelmente na cama que Lawrence não pode evitar e se deitou ao lado dela para tirar uma soneca, mas caiu em sono profundo.
Quando ele acordou, o quarto estava escuro.
“Eu teria um jantar ruim a menos se as roupas estivessem dobradas, não?”
Ele abriu os olhos e se sentou, percebendo que agora estava coberto por um cobertor que não se lembrava de ter usado.
“Você é muito gentil para realmente fazer isso,” disse ele, repetindo a fala anterior de Holo para ela através de um bocejo.
Holo riu enquanto limpava sua cauda.
“Parece que eu dormi por algum tempo... não está com fome?” perguntou Lawrence.
“Mesmo se eu estivesse, certamente você sabe que sou muito amável para acordá-lo do sono.”
“E você não teve a oportunidade de pegar algumas moedas da minha bolsa?”
Holo apenas sorriu com seu jeito peculiar, arreganhando os dentes afiados.
Lawrence levantou e abriu a janela de madeira, olhando para fora enquanto esticava as dobras do pescoço.
“A noite cai cedo aqui. Não é tão tarde, mas a praça está deserta.”
“E não há sequer uma tenda para ser encontrada. Será que ainda vamos conseguir jantar?” Holo falou preocupada enquanto olhava para Lawrence, que estava assentado sobre a moldura da janela.
“Nós vamos ficar bem se formos para a taberna. Não é como se a cidade nunca tivesse visto viajantes.”
“Hm. Vamos nos apressar, então.”
“Eu acabei de acordar — oh, tudo bem. Tudo bem!” Lawrence deu de ombros para o olhar que recebeu de Holo, então notou algo enquanto ficava de pé. “O que é isso?”
Uma figura sombria e solitária atravessou o escuro da praça da cidade deserta.
Enquanto ele estreitava os olhos, Lawrence percebeu que era Evan, o moleiro.
“Oh?”
“—!” Lawrence quase gritou de surpresa quando Holo apareceu em seus pés. “Não apareça desse jeito!”
“Nossa, como você é sensível. Tanto faz — o que você viu?”
Qualquer um ficaria assustado se alguém aparecesse diante deles sem o menor indício de roupas farfalhando, mas Lawrence não iria discutir sobre todos os gracejos de Holo. “Nada de importante,” ele disse. “Eu só queria saber onde ele estava indo.”
“Parece que está indo para a igreja.”
Moleiros tinham que ser mais honesto do que qualquer outro profissional.
Em Ruvinheigen, Norah, a pastora provavelmente ficava assistindo aos cultos tão assiduamente como sempre, mesmo que essa mesma Igreja impusesse restrições difíceis a seu trabalho.
Evan devia ir para esses cultos com a mesma frequência.
“Muito suspeito.” disse Holo.
“Nós que somos os suspeitos.”
Enquanto Lawrence e Holo conversavam, Evan bateu de leve na porta da igreja. Suas batidas tinha um ritmo estranho, como se fosse um sinal secreto para comunicar a sua identidade.
Havia uma qualidade furtiva aos seus movimentos, que só pareceu estranho até Lawrence lembrar da vocação de Evan.
E não parecia que a Igreja também era bem vista na aldeia.
Lawrence se afastou da janela com um suspiro de decepção quando Holo o puxou pela manga.
“O quê?”
Em resposta à sua pergunta, Holo apenas apontou o dedo para fora da janela.
Supondo que ela estava apontando para a igreja, Lawrence olhou para o prédio.
Ele ficou surpreso com o que viu lá.
“Oh ho, então é assim que as coisas são,” murmurou Holo se divertindo, sua cauda balançava como se varresse o chão.
Lawrence estava hipnotizado por um momento com o que viu, mas logo voltou a si e fechou a janela.
Holo olhou imediatamente para ele, irritada.
“Só os deuses podem espionar a vida dos outros,” disse.
“... Humpf.” Holo não disse mais nada, só olhando com desagrado a janela agora fechada.
Quando Evan tinha batido na porta da igreja, a única pessoa que poderia responder era, obviamente, Elsa.
Assim que ela saiu, Evan lhe deu um abraço bem apertado, como se ela fosse muito preciosa para ele.
Dada a forma de Elsa quando ela se inclinou para Evan, era difícil entender o abraço como uma mera saudação entre amigos.
“Então você não está interessado?” Holo perguntou.
“Talvez, se eles estivessem secretamente falando de negócios.” “Eles podem muito bem-estar. Meus ouvidos aguçados de loba poderiam ouvir — o que me diz?”
Holo estreitou os olhos e deu um sorriso torto que mostrava uma única presa.
“E pensar que você estaria interessada nesse absurdo,” disse Lawrence com um suspiro longo.
Holo estreitou os olhos ainda mais. “O que há de errado em estar interessada?” ela resmungou.
“Bem, certamente não é algo a ser elogiado.”
Pressionar os ouvidos contra a parede por horas a fim de ouvir segredos de negócios de alguém era um truque de novato — na verdade, era o paradigma da astúcia mercantil. Mas espionar amantes — era uma grosseria.
“Hmph. Não é como se eu estivesse motivada por uma curiosidade vulgar.” Afirmou Holo, cruzando os braços. Ela inclinou a cabeça e fechou os olhos, como se tentasse se lembrar de algo.
Lawrence estava genuinamente interessado em ouvir o que, além de curiosidade, poderia ser sua motivação.
Ela ficou assim por um tempo, e então finalmente falou. “Se eu preciso te dar uma razão, acho que seria um estudo.”
“Estudo?” Foi uma resposta tão comum que Lawrence não podia deixar de se sentir decepcionado.
O que Holo possivelmente precisaria estudar?
Será que ela tem projetos para trapacear o monarca de um reino?
Ele considerou brevemente, exigindo exceções fiscais deste rei hipotético. Seu plano deveria ter sucesso antes de deixar de lado essa ideia ridícula. Ele estendeu a mão para o jarro de água para tomar uma bebida, e Holo continuou.
“De fato, estudar. Para ver nós somos vistos por outras pessoas.” Os dedos de Lawrence bateram desajeitadamente no jarro,
derrubando-o. Ele tentou recuperá-lo, mas não conseguiu.
“Me escuta. Não concorda que é preciso uma perspectiva externa para compreender verdadeiramente a situação? Está me ouvindo?”
Lawrence sabia que Holo estava rindo baixinho e, ainda sem se virar, ele podia adivinhar a expressão dela.
Felizmente, não havia muita água no jarro, por isso não foi um desastre — embora a provocação que ele tinha que suportar já fosse desastre o suficiente.
“Então é assim que eu pareço para os outros quando estou com você...,” disse Holo, ponderando, sua voz séria.
Lawrence tampou os ouvidos em um esforço para não se importar e começou a limpar a água que tinha derramado.
Ele não sabia do que deveria ter raiva. Ele nem sabia por que estava tão irritado.
Talvez fosse pelo fato de estar tão obviamente perturbado.
Holo deu uma risadinha. “Bem, pelo menos eu sei que certamente somos páreo para eles.”
Lawrence não podia adivinhar que tipo de armadilha ele poderia cair se respondesse.
Ele colocou o jarro em seu lugar depois de terminar o pouco que tinha com um gole.
Ele desejou que a água fosse um forte vinho.
“Agora,” Holo disse brevemente.
Lawrence sabia que se a ignorasse, isso só traria a fúria dela. Se travassem uma luta, ele certamente perderia.
Ele suspirou e se virou para Holo, derrotado.
“Estou com fome,” ela disse com um sorriso.
Ela estava sempre um passo — ou dois — na frente dele
Nota:
1 – Canga: peça de madeira que une a junta de bois. Colocada sobre a nuca, prendendo os bois pelo pescoço.