Volume 1
Capítulo 1: Os Quatorze Demônios
O castelo se encontrava no topo de uma colina desolada, cercado de todos os lados por uma densa floresta. Ele foi inteiramente construído de pedra maciça e por isso lembrava muito mais uma fortaleza do que um castelo propriamente dito.
Possuía um ar pesado e qualquer um que ficasse mais que noite provavelmente seria assombrado por pesadelos de sufocamento. Seus corredores eram como labirintos e caso alguém se perdesse não seria estranho se morresse de fome antes mesmo de achar o caminho certo. De maneira alguma foi feito com o conforto de seus ocupantes em mente. De fato, parecia rejeitar a ideia de sequer fosse habitado.
Sua cozinha não era diferente. A maneira como foi feita era terrível. Sua atmosfera invocava o sentimento de estar preso em uma masmorra.
Isso tudo sem mencionar a natureza dos ingredientes que ele foi obrigado a fazer uso.
Kaito Sena vestia um uniforme de mordomo com as mangas dobradas e um avental de açougueiro. Seus braços estavam cruzados e ele tinha uma de aborrecimento em seu rosto. Diante dele estava um amontoado de órgãos. A variedade era diversa. Alguns eram macios e brilhosos, com um odor fortemente peculiar.
Ele suspirou, então empunhou uma faca afiada e começou cortando os intestinos. Daí removeu as partes brancas do coração. Enquanto cortava aquela vasta quantidade de carne com um olhar calmo, a cozinha começou a sacudir violentamente. Kaito ignorou, como se nada tivesse acontecendo.
Mesmo que tudo desmoronasse e ele morresse, ele não se importava nenhum pouco.
Ele agarrou uma garrafa que parecia ser bastante cara, a qual ela havia pego aleatoriamente da adega, abriu e despejou em uma bacia de prata, para então colocar os órgãos, acompanhados por algumas ervas desconhecidas.
Franzindo a testa, continuou a cozinhar mesmo com todo o castelo sacudindo, o ignorando de novo. Ainda que metade dele fosse pelos ares, Kaito continuaria bem, afinal seu estado era de paz. Entretanto uma voz perversa quebrou toda aquela relativa tranquilidade.
— Mordomo! Mooordoomoo!
Seu nome era Kaito e não mordomo. Por isso decidiu que aquele assunto não lhe dizia respeito. Sob esta justificativa ele continuou a ignorá-la, até que a maneira como era chamado mudou.
— Kaaaiiito!
— Ok, Ok! Já estou indo, então para de gritar!
Sua vida estava em risco caso continuasse a dar as costas. Ele colocou o fígado que estava preparando no forno e então partiu para o corredor. Por conta dos vitrais das janelas o corredor era menos claustrofóbico que a cozinha. Ao mesmo tempo, a forma da luz que eles refletiam era tão irregular que chegava a ser irritante. Ele caminhou pelas diversas formas, subiu uma escada caracol e finalmente abriu uma porta dupla colossal.
Uma violenta corrente de vento atingiu o rosto de Kaito. Esta era a sala do trono, talvez esse fosse o nome mais apropriado. Ela era adornada por um magnífico trono no topo de um pedestal e o arranjo de tapeçarias serviam para acentuar sua grandiosidade. Entretanto, um quarto da sala havia sido destruído e o céu azul-pálido era visível por um enorme buraco na parede. Parecia haver uma séria chance de que todo o castelo fosse destruído.
Esperando em cima dos destroços estava uma garota arrogante com seus braços cruzados e com suas pernas perfeitamente esculpidas sob a luz do luar. Seus cabelos preto flutuavam ao seu redor enquanto ele era penetrado pelo seu olhar carmesim. Sua face de uma beleza desumana estava com um sorriso marcado por um inabalável deleite. Era uma expressão verdadeiramente desconfortável. Suas unhas eram pintadas de preto e brilhavam enquanto ela apontava para o lado de fora. Ela sussurrou com uma voz doce como de um passarinho, mas também manhosa como a de um gato que pegou sua presa.
— Observe Kaito.
Kaito obedeceu e espiou pelo buraco. O céu de um azul brilhante e a floresta de um verde vivo eram para ser de um visão pitoresca se não fosse pelo chão tingido de vermelho, acompanhado pelo cheiro de ferrugem. O outrora belo cenário agora era uma vista doentia.
Kaito fechou a cara o máximo que pode, ainda assim não dava para ignorar a quantidade de cadáveres espalhados.
— Muito bem, Kaito. Qual é a sua impressão?
— A minha impressão...? Isso é revoltante.
— Uma análise acertada, devo dizer. Porém falta nela um certo requinte e um pouco de talento para conseguir me entreter. Que criatura mais tediosa.
A garota deu de ombros. A besta agonizante é um trabalho horrendo feito de corpos humanos, uma criatura bizarra pra dizer o mínimo. Sua pele era composta por inúmeras faces humanas que tinham suas bochechas e seus cabelos fundidos umas nas outras, além de terem sido esticadas ao limite. Havia vários braços ao longo de suas costas que serviam como uma espécie de cabelo e um grande número de tetas balançando em seu abdômen.
A garota riu daquela abominação blasfêmia e com uma voz cheia de escárnio disse:
— A hora chegou, Kaito. O cavaleiro emitiu uma declaração de guerra. Ou seria mais correto dizer que isso não passa de uma provocação?
Ela parecia bastante satisfeita. Enquanto observava ela lamber seus lábios cor de sangue, Kaito pensou que ela se parecia menos com uma loba e mais com um feroz e faminto leão. Suprimindo seio anseio por vomitar, ele desviou o olhar do corpo da besta e depois de suspirar fez seu pronunciamento:
— Não que me importe, mas a comida estará pronta em uma hora. Deixe sua luta, tortura ou seja lá oque for pra outra hora.
Está era a situação absurda na qual Kaito Sena se encontrava depois de ter sido assassinado...
— // — // —
— Como está sem palavras, deixe-me dizer de outro jeito. Devote-se a mim.
— Eu passo.
Quando ele entedeu a audaz demanda da garota auto entitulada Elisabeth, Kaito imediatamente recusou. Naturalmente ele estava confuso do porque uma garota hávia lhe feito tal proposta logo após ter sido morto, mas depois de ver aquela repulsiva pilha de corpos, ele viu que fez a escolha certa. Ainda por cima ouvia-se cânticos sedentes por sangue direcionados a ela, além disso ela tinha sorriso sádico estampado no rosto, mas o pior era a maneira como ela se dirigiu a sí mesmo: A princesa da Tortura.
Ele estava com medo de tela feito ficar com raiva, mas por alguma razão ela apenas fez um gesto como se estivesse impressionada.
— Vejo que é bem decidido. Por acaso você presenciou uma ou duas de minhas memórias quando foi invocado? Mesmo assim, eu não esperava uma resposta tão rápida.
— Ok, vamos esquecer esse negócio de ‘servir você’ por um instante. Quando você disse ‘invocado’...Ei, onde estamos? Oque estou fazendo aqui aqui? Eu por acaso...Morri?
— Sem sombra de dúvidas! Você está realmente morto. Sua morte foi tão sem sentido quanto a de uma minhoca sendo pisoteada. Uma morte deplorável, terrível, cruel e grotesca! Ainda sim, eu invoquei sua alma nesta marionete e te dei uma nova vida. Uma rara oportunidade, não é? Então: Alegre-se do fundo de seu coração.
— Marionete...?
Quando ele ouviu a explicação bizarra de Elisabeth, Kaito começou a se examinar. Para uma marionete, sua pele parecia surpreendentemente com a humana. Ele não tinha um espelho, então não podia ver seu rosto, mas levando em conta a falta de defeitos no resto, ele suspeitou que não deveria estar diferente. Ele puxou um fio de cabelo e pôde ver que tinha o mesmo tom marrom-escuro.
Enquanto continuava a examinar seu corpo com desconfiança, Elisabeth falou em um tom impaciente.
— Quero que escute bem. O corpo que está abrigando sua alma é de um golem de minha própria criação. Não é um monte de sujeira qualquer que vá se desmanchar por ter as palavras mágicas em sua nuca apagadas. É uma fina peça de arte feita tanto por um mestre em magia como por um hábil artesão, também é graças a meu trabalho que você escuta minhas palavras em sua língua nativa. Sua construção ainda é extremamente robusta. Mesmo que ainda possua sangue e órgãos, é capaz de sobreviver com até 50% do corpo destruído. Dá para se considerar imortal. Por último, o sangue que corre em suas veias foi misturado ao meu, então se você perder muito é provável que sua alma seja dissipada.
— Mas o meu tamanho e até a cor do meu cabelo são as mesmas.
— Pelo visto sua estupidez não tem jeito. Eu já falei de minhas habilidades, não falei? Não confunda minha obra prima com a de uma loja de penhores qualquer. Se uma alma é posta em um receptáculo muito diferente do corpo original, a dissonância pode levar à loucura. O corpo foi feito para se transformar de acordo com a alma que o habita. Isso automaticamente elimina qualquer ferida ou doença. Sinta-se livre para chorar por tamanha compaixão.
Foi assim que Kaito se deu conta de algumas mudanças no seu corpo. Ele olhou para seu braço e percebeu que as lacerações, tão profundas que não podiam ser curadas sem virarem cicatrizes, haviam desaparecido completamente. A dor, que era sua companheira de longa data, já não estava mais presente.
— Huh... isso é surpreendente. Esse realmente não é meu corpo no fim de contas.
Kaito finalmente aceitou esse fato. Não teria como esse corpo livre de qualquer agonia ser seu. Não sentir pela primeira vez em um longo tempo era muito agradável, mas ao mesmo tempo o fazia se sentir estranho, como se ele fosse um boneco de plástico ou algo assim.
Enquanto Kaito estava maravilhado, Elisabeth continuou.
— Eu invoquei uma alma sem pecados para usar como servo. A igreja irá me punir caso descubram que invoquei algo não maligno, mesmo que seja para usar como empregado. Você se encaixa nos requisitos, já que sua morte foi muito mais cruel do que todos os seus pecados cometidos em vida, mas... huh, houve uma "estranha" resistência durante a invocação, mas e pensar que viria de outro mundo... Eu me pergunto se puxar você de outra dimensão foi bom ou se foi falta de sorte. Ah, eu suponho que agora não faz diferença de onde você veio. De agora em diante você ira servir apenas a mim, devotado de todo coração.
— Eu passo.
— Ã-Ha…
Elisabeth apertou seus olhos carmesins, aparentemente satisfeita a resposta que ouvira. Seu longo e esbelto dedo semelhante a uma lamina tocou graciosamente o queixo de Kaito e com uma voz doce como mel, sussurrou:
— Você foi morto. Seu assassinato foi tão sem sentido como o de uma minhoca pisoteada. Uma morte deplorável, terrível, cruel e grotesca. Mesmo essa sua cabeça oca consegue entender isso, não? Sua morte foi muito mais cruel que todos os pecados que cometeu em vida, preenchendo todos os requisitos para se tornar uma alma sem pecados, ainda sim você está com essa cara de um homem descendo até o inferno e ainda sim irá recusar esta segunda oportunidade? Prefere morrer como uma minhoca esmagada?
— Sim, com certeza. Já tive abuso o suficiente pra uma vida inteira. Eu resisti e persisti, mas sobreviver não é o mesmo que viver. Pra mim chega.
Kaito deu sua resposta. Sem nem mesmo precisar pensar a respeito, ele sabia o quão horrível foi a vida que teve.
Ele tentou ir pra escola por alguns anos. Depois ele foi forçado a se mudar várias e várias vezes para ajudar seu pai com seus trabalhos ilegais. Quando o jogo mudou e a ajuda não foi mais necessária, seu pai o batia simplesmente para descontar sua frustração. De todo jeito, foi um jeito doentio de se viver. Kaito nem sequer consegue se lembrar de como sua mãe era. Ele suspeitava que a dor e a má nutrição haviam tirado dela toda a força de vontade para fugir e eventualmente ela acabou morta, assim como ele.
Ele estava agradecido por seu novo corpo livre de toda dor, mas ele odiaria se ele se deixasse ser usado como um animal novamente. Se sua breve vida fosse prolongada a única coisa que ganharia era o fato de ter que aguentar mais desgraças.
— Eu já tive o suficiente. Estou jogando a toalha. Vá achar outra pessoa pra ter servir.
— Entendo. Bem, gostando ou não ainda irei te fazer um mordomo.
Novamente os anseios de Kaito foram completamente ignorados. Seus olhar se fechava enquanto Elisabeth dava de ombros.
— Se invoca-se outro servo, a igreja viria tirar satisfação de mim e fazer outra marionete levaria tempo. Qual o sentido de criar mais trabalho para fazer um servo se é justamente o trabalho que eu quero que ele faça pra mim? Não consigo pensar em uma maior forma de perder tempo. De todo modo...
De repente ouve-se um rugido, pouco antes da porta atrás de Elisabeth ser explodida em pedaços.
A maneira como a pesada porta girou no ar antes de finalmente cair no chão era quase cômica. Um estilhaço cortou sua bochecha, mas ele sequer olhou para trás. Os olhos de Kaito se abriram de medo, enquanto ele olhava para a entrada.
No meio do corredor estava um cavalo colossal e seu cavaleiro. As rédias eram feitas de correntes em forma de espinhos e a sela foi feita com ossos. Mas o mais estranho era a foto de nem o cavalo ou o cavaleiro possuírem pele alguma. Eles se assemelhavam a bonecos de anatomia, com seus músculos e vasos sanguíneos expostos e a carne exposta e reluzente. Era uma visão tão horrenda que fazia repensar o conceito de autopreservação.
Elisabeth finalmente se virou para a entrada e começou a falar com um ar de desinteresse.
— O Cavaleiro, O Governador, O Governador-mor, O conde, O Alto Conde, O Duque, O Ark Duque, O Marquês, O Supremo Marquês, O Monarca, O Príncipe, O vice-Rei, O Rei e o Kaiser, estes são o 14 demônios que fui condenada a exterminar. A exceção do Kaiser que já foi capturado, restam 13.
O cavaleiro berrou novamente e seu cavalo se mostrou inquieto. Suas bocas são simples buracos esculpidos na carne e o som que sai delas são como sussurros infernais. Enquanto os gritos de ódio preenchiam as orelhas de Kaito, ele subitamente entendeu o que estava acontecendo.
“Essa criatura horrenda diante de mim não pode ser outra coisa se não um demônio.”
— EI! Oque ele quer? Por acaso esse é um dos demônios que você mencionou?
— Para um imbecil cuja morte foi como a de uma minhoca, você parece surpreendentemente calmo.
— Enquanto meu cérebro não atrofiar eu ainda consigo raciocinar.
— Bem, é quase isso. Aquilo é um servo do Cavaleiro. Ele não fez um contrato com um demônio pessoalmente, mas virou o lacaio daquele que fez por escolha própria. Uma pessoa fraca, para dizer a verdade. Acredite se quiser, mas tanto ele quanto o Cavaleiro já foram humanos.
Ao escutar a explicação de Elisabeth, Kaito fixou o olhar sobre os demônios novamente. Ele não conseguia acreditar que aquelas coisas já haviam sido humanas, não que quisesse. Só um louco aceitaria se tornar daquele jeito de boa vontade. Elisabeth zombou de Kaito ao adivinhar oque estava pensando por conta de sua expressão.
"Sua reação é compreensível. É repugnante, não é? Vender sua alma a um demônio e abandonar sua humanidade. Tudo pela ganância de adquirir poderes sobre-humanos. É patético, não acha? Se quiser rir, ria. Eu lhe dou permissão. Esse é o desejo dele no fim das contas, afinal uma palhaçada é uma palhaçada justamente por ser engraçada, não concorda?"
Mesmo para uma provocação suas palavras eram muito cruas. O cavaleiro soltou outro e mais profundo grito. O ódio em sua voz era tamanho que o som feriu os ouvidos de Kaito, mesmo estando cobertos.
Ele então sacudiu as rédeas e chutou seu cavalo, que acelerou rapidamente, quebrando o chão e partindo para Elisabeth para tentar pisoteá-la.
— Seu reles escravo, minha lâmina é boa demais para tipos como você... Dama de ferro
Elisabeth falou algo incompreensível e estendeu sua mão. A escuridão combinada com uma chuva de pétalas vermelho sangue saídas de seus dedos flutuavam pelo ar. Ouviu-se o som de um gongo e então uma marionete do tamanho de uma pessoa levantou do chão imersa em trevas.
A marionete, a qual Elisabeth chamou de "Dama de ferro", parecia muito mais simpática do que o nome sugeria. Fios dourados serviam como cabelos e cobriam por completo suas costas. No lugar dos olhos havia joias azuis brilhantes. Seus lábios eram curvados em um meigo e amável sorriso.
Enquanto ela abria seus braços para um abraço de boas vindas, o cavaleiro tomado pela fúria apenas seguiu avançando.
Justamente quando Kaito pensou que o cavalo iria esmagá-la, algo inesperado aconteceu.
Notou-se o som de engrenagens, com os olhos da marionete se abrindo subitamente. As joias azuis que os compunham viraram ao contrário, dando origem a uma cor escarlate flamejante. Sua expressão outrora afeiçoada, agora era de puro ódio. Seu estômago começou a se abrir com o som de um clique.
Um par de braços saiu de dentro, cada um equipado com longas e afiadas garras. Eles agarraram o cavalo e seu cavaleiro, esmagando seus braços e pernas com frieza, malevolência e um toque mecânico como de uma máquina. Os gritos de desespero foram se tornando ensurdecedores, conforme eles eram moídos como um pedaço de carne qualquer.
Com o tempo eles já não eram mais capazes de oferecer qualquer resistência, até finalmente se transformarem em uma grotesca bola de carne e serem tragados para o estômago da Dama de Ferro. Como um símbolo de castidade, o ventre era composto por inúmeras agulhas.
— Ahh!!!
Ignorando os gritos de dor, a Dama de Ferro fechou seu ventre…
Enquanto sua expressão voltava pouco a pouco ao normal, a Dama de Ferro delicadamente acariciava sua barriga. Os enlouquecidos gritos de agonia vindos de dentro imploravam por misericórdia. Até mesmo Kaito começou a sentir que enlouqueceria só de ouvir aquilo.
— Uma vez dentro da Dama de Ferro, a morte não vem rápido.
Elisabeth falava claramente despreocupada. Daí ela se virou para Kaito com um sorriso bem sugestivo…
— Se insiste em morrer de novo, então não há o que fazer. Não sou outra coisa senão generosa, por isso, irei garantir seu desejo. Mas eu não vou simplesmente te matar. Se você deseja tanto assim a morte, então isso vai ser do meu próprio jeito... Então, oque você decide? Vai se tornar meu mordomo ou um pedaço de carne?
— Mordomo...
— Ora, quanta rápidez.
E foi assim que Kaito se tornou o servo da Princesa da Tortura, oque nos trás a de volta ao presente.
— // — // —
— Isso… É… Horrível!
Em conjunto deste espirituoso protesto, o coração assado adornado com ervas banhado ao molho de vinagre feito por Kaito foi arremessado pela sala, seguido do prato e dos talheres. Uma perigosa chuva de comida e cutelaria caia sobre a antiga toalha de mesa.
Continuando com sua proclamação, Elisabeth pôs um dos pés sobre a mesa.
— Mas... Mas oque é isso? É absolutamente repulsivo. Isso parece palatável, ainda sim a carne está mal cozida e tem textura de borracha. O molho de certa forma retira o odor peculiar de órgãos e o estranho gosto adocicado e ao mesmo tempo azedo cria uma horrenda harmonia que perdura na língua. É uma obra impressionantemente horrível!
— A sua descrição é que é impressionante.
Com um olhar mortal, Kaito arrancou o garfo que estava preso na parede. Ele se perguntava da onde ela tirou tanta raiva para dar tamanho sermão.
Alguns dias já se passaram desde ele forçadamente se tornou seu mordomo. No começo esses chiliques o assustavam, mas em se tratando de matéria de maus tratos ele já havia vivido mais que o suficiente para uma vida inteira e não era a primeira vez que sua vida estava por um fio, então se acostumou rápido.
— Eu não sei quanto a homens que batem em mulheres, mas uma comida péssima como essa merece ser jogada no olho da rua! Isso é algo que tenha nome?! É tão grotesco que eu prefiro comer comida de porco! Porque diabos todas as suas comidas são assim tão repugnantes?!
— Você fica reclamando do cheiro, então eu pensei em usar vinho pra disfarçar.
— ..Espere um pouco. Você está dizendo que usou o meu precioso vinho para fazer esta porcaria?"
Kaito decidiu que o silêncio valia ouro. Sem precisar de resposta Elisabeth balançou sua mão.
Uma cadeira surgiu logo atrás de Kaito. Ele caiu sobre elas e imediatamente foi amarrado com vários cintos, como em um filme. Quando percebeu, tanto o acento quanto os braços possuíam buracos para agulhas, pinos e espetos. Abandonando seu comportamento frio, ele começou a espernear em pânico.
— Espera, calma, por favor! Vamos conversar. Pensa comigo: Eu nunca cozinhei nada antes, como eu saberia como cozinhar órgãos?
— Salve suas desculpas. De todo modo, isso é jeito de falar comigo, a Princesa da Tortura? Você tem nervos de aço. Talvez você acabe refletindo sobre sua arrogância enquanto é preenchido por buracos, hmm?
— Me desculpa! Olha, desde que fui morto eu tenho dificuldades em registrar emoções como medo e perigo" Me desculpa, ok? Pode pelo menos não me torturar?
— Muito bem. Irei lhe conceder misericórdia... Ou pelo menos é isso que eu deveria dizer, mas você está me dizendo que só me respeita porque tem medo?
— Bem… Não… É isso...
— Já terminaram seus argumentos Kaito?
Antes de conseguir terminar de gritar, o seu destino foi selado. Ele iria se tornar uma almofada e alfinetes, porém Elisabeth pareceu reconsiderar. Enquanto ela bufava, a cadeira desapareceu.
— Muito bem. Com minha infinita generosidade irei lhe conceder mais uma última chance. Ordeno que me sirva um pudim.
— Pudim?
Elisabeth confirmou balançando a cabeça, então sentou-se em sua cadeira e cruzou as pernas. Com uma voz cheia de convicção pronunciou:
— Eu tenho minhas dúvidas se um tolo que não consegue nem mesmo cozinhar irá saber de confeitaria, mas talvez você tenha talento para doces. Não custa tentar. Se até isso estiver além de seu alcance, então será descartado como um lixo qualquer.
— Pudim certo? Eu acho que sei do que está falando, mas de onde venho nós pronunciamos.
— Purin.
— Purin? Eu não conheço este prato, mas pelo visto deve ter pelo menos uma vaga semelhança."
Kaito acenou para sua resposta despreocupada. Só para constar, ele tinha fortes memórias associadas a este prato.
A muito tempo uma mulher que morava com seu pai havia feito o tal “purin” para ele, quando ele ainda era uma criança. Ele ficou extremamente feliz, quanto ela apenas devolveu um sorriso forçado. No dia seguinte, ela se foi. Pensando bem, ele se lembrou que provavelmente ela tinha feito o purin para se desculpar por fugir e deixar ele para trás. Até hoje aquele raro momento de felicidade continuava vivo. Ele ainda se lembrava mais ou menos como ela fazia.
Era possível recriar esta receita com os ingredientes encontrados na cozinha, mas não tinha uma panela para isso, por isso Kaito voltou para Elisabeth.
— Ei, Elisabeth. Você pode fazer golens de barro, então você também sabe fazer panelas?
— Você tem a audácia de pedir algo à pessoa que está pensando em se desfazer de você? Que rapaz mais estranho você é. Que seja. Como é essa panela que você precisa?
Com seus limitados talentos linguísticos, Kaito tentou explicar como era. Elisabeth estalou seus dedos com uma expressão perplexa em seu rosto. Um momento depois, pequenos passos ecoaram pelo corredor.
A porta da sala de jantar rangeu enquanto era aberta e atrás dela estava um pequeno golem, feito de pedaços de barro retangulares. Ele abanou como se dissesse adeus e colapsou, deixando para trás uma pilha de barro.
— Que... Espera ai, Elisabeth; Oque você acabou de fazer? Não se sente mal por ele?
— Não precisa sentir pena. Ao contrário do que parece, ele não possui vontade própria. Agora vamos a penela.
A lama se contraiu até alcançar o formato necessário. Kaito seguiu com sua explicação, dizendo como precisava ser feito e depois de um período de tentativa e erro, finalmente alcançou a forma que Kaito queria.
— Este barro é bastante tolerante ao calor. Mesmo que ainda incerta do que você faro com ela, use como quiser.
— Obrigado. Foi de muita ajuda.
Tomando bastante cuidado para não derrubá-la, Kaito retornou a cozinha. Ele encheu a panela de água, daí adicionou trigo e colocou no fogo. Depois ele esquentou um pouco de leite em uma caçarola e derreteu açúcar nele. Assim que esfriou, adicionou um ovo batido e mexeu gentilmente para evitar criar bolhas, logo engraxou a panela com manteiga e misturou o ovo, mas era ai que vinha a parte dificil: Ele tinha que por a tampa e deixar ferver de 10 a 15 minutos, o problema é que ele não levava fé em regular o fogo.
— Como será que estou indo...? Huh? Esperai ai. Funcionou?
Quando Elisabeth disse que a panela era tolerante ao calor, realmente era surpreendente resistente. Mesmo estando incandescente, a quantidade de calor era exatamente a que precisava para ferver a mistura. Agora o resto estava nas mãos da sorte.
Logo o doce aroma começou a se espalhar pela cozinha. Para esfriar a panela, Kaito usou a geladeira, a qual era refrigerada por espíritos do gelo. Ele deixou esfriar por 10 minutos e dai trouxe para a sala de jantar.
Para sua surpresa, Elisabeth estava esperando pacientemente. Ela não devia ter nada melhor pra fazer.
— Hmm? Estou surpresa. Eu pensei que iria fugir correndo.
— Bem, graças a você, tudo acabou bem. Aqui, veja.
Kaito colocou a panela diante dela. Elisabeth ergueu sua cabeça em preocupação. Ela parecia estar esperando que Kaito removesse a tampa e assim o fez, deixando o doce aroma se espalhar pelo ar. Depois de ver a substância amarelo pálido ali contida, Elisabeth olhou com o canto dos olhos para Kaito.
— O que é isso? Isso não é pudim.
Então são assim tão diferentes? Isto é purin. É a versão de pudim a qual estou familiarizado.
— Purin, você disse? hmm.
Depois de devolver suas palavras mecanicamente, Elisabeth pegou a colher e a encheu. Ela franziu as sobrancelhas enquanto inspecionava vagarosamente a receita, até enfim mastigá-la. Após um breve silêncio, ela deu outra colherada.
— Isso é tão estranho...Ou melhor...É... Isso é tão...Pouco firme...E Xaroposo.
Elisabeth comia colher atrás de colher com um vigor insaciável. Não tardou e todo panela estava vazia. Por fim ela bateu a colher na mesa.
— Eu aprovo!
— Ah, bom saber...
Elisabeth abriu um sorriso reluzente de satisfação, como se dissesse que ele é capaz de tudo se ele se dedicar.
“Para alguém capaz de torturar os outros em um piscar de olhos, ela é surpreendentemente normal.”
No momento em que essas palavras passam pela mente de Kaito, Elisabeth estalou seus dedos. Com medo de que ela tivesse lido seus pensamentos, ele se preparou caso a cadeira de ferro aparecesse.
Um tabuleiro de xadrez feito de luzes vermelhas surgiu à sua frente, sem sombra de dúvidas uma magia de Elisabeth. Vendo os olhos de Kaito se abrirem, Elisabeth disse:
— Para]ece que você não é inteiramente inútil. Em retribuição a isso, irei lhe informar a respeito da sua atual situação.
Elisabeth balançou sua pálida mão. O tabuleiro de xadrez começou a rodar. Enquanto se ajeitava na cadeira, o tabuleiro parou e sua voz tomou um tom monótono.
— Alegre-se, porque conhecimento é poder, além do mais, o destino das formigas e dos ignorantes é terem suas vidas controladas por outro, por isso, o homem superou os insetos e se tornaram animais e de animais viraram humanos. Alguns até mesmo superaram Deus.
Duas peças grandes surgiram em cima do tabuleiro, uma branca e outra preta, ambas adornadas por asas. Enquanto flutuavam, Elisabeth apontou.
— Neste mundo, Deus e o Diabo são bem reais. Eles existem em um reino mais elevado, cujos olhos humanos não alcançam, mas sua existência foi provada pelos teólogos, estudiosos e magos. É claro, Deus e Diabo não são mais do que nomes que os demos por uma questão de conveniência. Nós chamamos a entidade que criou o mundo de Deus e aquela que quer destruí-lo de Diabo, portanto, o Diabo só pode interferir com o mundo humano se Deus o abandonar, entretanto há uma exceção: Se o Diabo conseguir um contratante o jogo acaba virando.
— Um contratante?
— São aqueles que usam seus corpos como intermediários para invocar o Diabo para nossa dimensão, onde normalmente ele não pode existir e assim firmar um contrato com ele. Daí em diante ele se funde e corrompe suas formas, mas em retorno recebem poderes sobre-humanos que podem usar a seu bel prazer. Trazer o verdadeiro Diabo, com poder o suficiente para destruir o mundo não é fácil, de fato, não existe nenhum receptáculo capaz de contê-lo, por isso ele ainda não se manifestou, mesmo assim seus fragmentos possuem um grande poder e são eles que existem em nosso mundo atualmente.
A peça negra chacoalhou e começou a se dividir em outras. Ao todo eram 14 peças, todas enfileiradas. Entre as peças haviam algumas em forma de bestas e outras mais humanas, mas uma delas se destaca: Ela possuia uma coroa e estava amarrada com correntes.
— 14 pessoas formaram contratos com 14 demônios. Já citei seus nomes pra você. Quando as pessoas se referem a "demônio", elas estão se referindo a estes 14, assim como seus contratantes. Eles possuem servos também, os quais trabalham por uma fatia de seu poder.
Em frente das 14 estranhas peças agora se encontravam todo uma fila de peões. As peças de demônios colocaram suas mãos sobre seus peões e os transformaram em monstros horrendos. Elisabeth pegou um deles.
— O cavaleiro sem pele que você viu, era um dos servos do Cavaleiro. Chamá-los de servos dos contratantes é um desperdício, então é melhor chamá-los de lacaios.
Elisabeth pôs novamente a peça no tabuleiro. As 14 peças e seus grotescos peões começaram a marchar.
— Demônios adquirem seus poderes através da lamentação das criações de Deus, especialmente do sofrimento humano. Assim como os demônios, seus seguidores são conhecidos por vários desastres.
De uma única vez, as peças abriram suas bocas cheias e dentes retorcidos. Uma nova fileira de peões se materializou e foram consumidos pelas outras peças. Elisabeth estalou os dedos e uma peça com a forma de uma mulher apareceu no tabuleiro.
— A igreja é uma organização religiosa a qual adora a imagem de Deus, o mesmo cujo a humanidade uma vez dependeu. Ela possui uma organização que tende a guiar as pessoas de acordo com a vontade de Deus e preservar a paz mundial. São eles que me pediram para caçar os 13 demônios exceto o Kaiser, o qual já se encontra capturado. Nesse momento, meu adversário é o Cavaleiro.
Kaito observou uma das peças montada em um cavalo avançar diante das outras. A peça de armadura deformada avançou para ele. A peça feminina virou-se para ele, segurando uma espada com um brilho vermelho.
— O Cavaleiro é o mais fraco dos 14, ainda sim, para uma pessoa normal, ele se assemelha a um pesadelo em carne e osso."
Enquanto ela falava o chão tremeu. Antes que a espada pudesse alcançar o Cavaleiro, as peças desapareceram.
Mais uma vez o castelo vibrou. Elisabeth se pôs em pé de uma maneira graciosa. Ela ignorou as palavras de Kaito e seguiu andando com seu vestido balançando. Sem êxito, Kaito partiu atrás dela.
Elisabeth deixou a sala de jantar e seguiu pelo corredor. Quando ela chegou na porta da sala do trono ela a escancarou. Imediatamente um cheiro de carne e sangue os atingiu como um caminhão. Eles podiam ouvir o som de alguma coisa se empanturrando de carne.
Após uma breve hesitação, Kaito olhou pelo buraco na parede. Em Cima do corpo espetado da besta estava uma nova criatura. Ela estava comendo a carniça, arrancando grandes pedaços de carne com sua boca massiva. Embutido em suas laterais, estavam rostos humanos, cada um dos quais tentava mastigar qualquer pedaço de carne que conseguissem. Kaito quase não conseguia conter sua respiração ao presenciar aquele espetáculo macabro.
Elisabeth se virou e começou a falar com um sorriso perverso no rosto.
— Isso também é o trabalho de um demônio. Eu esperava que fosse só ele, mas pelo visto um segundo apareceu.
— Eu não acredito que você estava esperando algo assim...
— Essa besta conseguiu chegar aqui sem se decompor. Os materiais usados para criá-la devem ter vindo da vila vizinha. Quando um demônio ataca uma vila ele deixa alguns sobreviventes, mas mesmo que metade dos habitantes tenham escapado, eu duvido que uma besta como essa ficasse tão pequena com a metade restante, então naturalmente era de se esperar que tivesse outra.
“Como ela pôde fazer uma hipótese dessas tão calmamente?”
Kaito balançou sua cabeça só de pensar em tamanha insanidade.
Enquanto pensava, a besta rugia ferozmente e então saltou balançando as várias protuberâncias que cobriam seu corpo. Com suas garras, ela se prendeu na parede do castelo, fazendo-o sacudir, com poeira caindo do teto. Seu olhar mortal se dirigiu para Elisabeth.
Ao ver sua cabeça atravessar o buraco da parede, Elisabeth suspirou.
— Céus. Mesmo que vocês todos tenham sido vitimas, ainda sim é uma vista deplorável.
— Sem mais delongas, irei garantir que fiquem em paz.
Elisabeth estalou seus dedos. O chão começou a tremer. Incontáveis estacas de ferro atravessaram o chão em direção a criatura, perfurando seu peito uma atrás da outra. Ainda que seu corpo tivesse sido retalhado, ela continuava a avançar para pegar Elisabeth com sua mandíbula, mas a quantidade massiva de estacas acabou evitando que conseguisse.
Junto com o som das estacas perfurando o corpo de seu alvo de novo e de novo, uma nuvem de poeira misturada com pétalas carmesins ondulavam como se fossem uma tempestade. Assim que a poeira baixou, os corpos de 2 bestas se encontravam lado a lado. O sangue escuro começou a se espalhar pelo chão.
Elisabeth se virou para Kaito. Uma gota de sangue escorreu pela sua bochecha, mas ela mal parecia se importar, até começar a falar.
— Certamente há traços do Cavaleiro na vila. Estamos indo, queira me fazer companhia.
Com seu vestido flutuando, Elisabeth partiu.
Lutando para fazer suas pernas pararem de tremer, Kaito seguiu atrás dela.
— // — // —
Elisabeth descia as escadas em direção ao subterrâneo. Misteriosos grunhidos ecoavam pelo corredor, invocando a sensação de que era um labirinto guardado por um monstro. De fato, não seria de se surpreender que realmente existisse um monstro ali.
Ela continuou em um ritmo consistente, até finalmente chegar até uma porta, a qual a abriu com um chute. Kaito se manteve ao lado de Elisabeth enquanto ela observava o interior.
A sala não possuía mobília ou janelas, somente um massivo círculo mágico pintado no chão.
Enquanto ele olhava mais de perto, percebeu o quão complexo seu design era. O ar era pesado com um forte cheiro de ferrugem, daí ele se deu conta que o círculo era pintado com sangue.
— Este é um círculo de teleporte feito com o meu sangue. Ele pode me levar a onde eu quiser, contanto que eu me lembre de ter estado lá.
— Não sou um grande fã do sobrenatural, mas isso me parece ser bem conveniente. Não temos desses de onde venho.
— Ah sim, você vem de um mundo de máquinas. Você fez bem em não fazer pouco caso da magia. Como meu servo, você pode usar seu sangue para encantamentos se precisar.
— Como? Não tem como eu conseguir usar tanto sangue assim!
— Você deveria tentar uma hora.
— Eu recuso veementemente."
Kaito se pôs em pé ao lado de Elisabeth já em cima do círculo mágico. Ela estalou seus saltos no chão.
Com o som de uma labareda, flores carmesins começaram a dançar ao longo da circunferência do círculo. As várias pétalas se fundiram criando uma parede cilíndrica. O cheiro de ferro assombrou Kaito mais uma vez. Em um instante, as pétalas se transformaram em sangue.
Elisabeth estalou seus saltos mais uma vez e as paredes de sangue se abriram como cortinas. O cenário escondido pelas paredes veio à tona. Eles estavam nos restos de um campo de batalha. Essa era a única maneira que Kaito poderia descrever oque estava a sua frente.
Havia fogo até onde a vista alcançava e incontáveis corpos estavam espalhados entre as casas em chamas. A única coisa que Kaito tinha visto que se assemelhava a isto era uma fotografia de um campo de batalha distante, de uma guerra já muito antiga.
Já haviam se passado 2 horas desde a criação da primeira besta e a chegada de Kaito e Elisabeth, mas o fogo não dava sinais de se extinguir. Enquanto ele olhava para os corpos queimando, Kaito podia sentir o suor escorrendo por sua nunca. O cheiro de carne queimada invadia seu nariz e o calor irradiava por sua pele.
Tinha um homem o qual teve metade de seu corpo completamente carbonizado. Uma velha senhora que sua não apenas sua cabeça, mas até mesmo sua coluna arrancada. Outra mulher teve os seios amputados. Um jovem garoto teve seu rosto raspado contra o chão até ficar liso. Uma criança agonizava, dando seus últimos suspiros.
Nenhum deles teve um pingo de dignidade que fosse. Todas as suas mortes foram horrendas. Diferentemente da besta, seus corpos ainda eram reconhecíveis. Era precisamente por isto que este era um espetáculo macabro o suficiente para enlouquecer qualquer um. A ânsia de vômito atingiu Kaito antes que ele pudesse se controlar.
Sem sombra de dúvidas este era o inferno.
Ao lado de Kaito, cujo havia perdido a vontade de falar, Elisabeth sussurrou:
— Eu já havia mencionado antes, mas este é o trabalho de um demônio.
Ela seguiu adiante e então se virou para ele. Seus cabelos negros e as chamas balançavam ao vento em sintonia.
— Demônios recebem seus poderes através do sofrimento dos homens, principalmente da discórdia em suas almas que ele trás. Este é o resultado. Os métodos usados aqui são...Fofos, eu diria. Agora mesmo, em algum lugar, horrores além da imaginação estão acontecendo.
Kaito recuou diante de suas palavras. Ele estava acostumado com a dor e o sofrimento. Ele era muito bem familiarizado com o medo e a inevitabilidade das tragédias que se abatem sobre as pessoas. Mas não havia como ficar bem após presenciar este mórbido espetáculo, com pessoas sendo mortas sem motivo e nem misericórdia.
— Como você consegue chamar isso de ‘fofo’!? Pare de brincar comigo! Não importa como você enxerga isso, com certeza é o inferno!
— Até mesmo o inferno tem seus níveis e este é só o primeiro deles. Até onde me recordo, este poderia ser um campo de flores. Demônios trazem tragédias muito mais cruéis que esta... É por isso que a Igreja deixa esses porcos para uma puta como eu.
— Elisabeeeeth!
Ela acabou sendo cortada por um furioso grito, e com isso, um grupo de aldeões surgiu de trás de um curral. Os homens nervosos, com suas roupas impregnadas em fuligem, de repente cercaram Kaito e Elisabeth, todos armados com ferramentas de fazenda.
Um cavaleiro de armadura parou ao lado deles.
Kaito congelou quando o viu.
Entretanto, o cavaleiro parecia ser membro de algum exército deste mundo. Ele vestia um capacete com plumas e tanto a armadura dele quanto seu cavalo estavam adornados com desenhos de lírios.
Ouvi-se um som metálico característico do desembainhar de sua espada. Elisabeth apenas suspirou.
— Ora, se não é um cavaleiro real. Me diga, que assunto você tem comigo?
— Não se faça de idiota! Eu fui designado da capital para esta vila. Por curiosidade resolvi ficar de olho em seu castelo e daí descobri sua verdadeira natureza! Eu sei oque você tem feito. Esta horrível tragédia é toda sua culpa!
— Você está são? O que está vendo é obra do trabalho do Cavaleiro. Queira me desculpar, eu não havia me dado conta que aqueles que não testemunharam em primeira mão não sabem disso, ou melhor, não invente de jogar culpa de sua incompetência em meus ombros. A Igreja me encarregou de caçar demônios, não de matar humanos...por enquanto.
— Silêncio sua mentirosa! Quem iria acreditar nessa história?!
A voz do cavaleiro se tornou mais severa. Kaito recuou um pouco. Ele então apontou sua espada para Elisabeth e disse em uma voz trêmula de ódio.
— Não pense que esqueci o que você fez.
Elisabeth ficou parada com uma feição completamente apática, sem fazer nenhum tipo de protesto. Sua postura fez o cavaleiro perder todo o pouco de compostura que lhe restava. Ele disparou de forma frenética várias menções ao seu passado.
— Você torturou toda a população de Fiefdom! Você desmembrou seus corpos, costurou todos os seus orifícios, esfolou sua carne até os ossos, derreteu suas peles, arrancou seus olhos, suas línguas e quando se cansou você matou os pais e a crianças, os velhos e as mulheres, arrancando seus corações ainda batendo! A Princesa da Tortura Elisabeth Le Fanu! Quem iria acreditar em qualquer coisa que saia dessa boca imunda?!
Ao ouvir essas palavras, Kaito se lembrou da visão que presenciou alguns dias antes.
Ele se lembrou daquilo que viu na hora de sua morte: Uma montanha de corpos, todos jogados sem um pingo de dignidade. Ele lembrou da sede por sangue que a multidão nutria e do sorriso da bela garota de cabelos negros e olhos carmesins.
Elisabeth sorria até mesmo agora. Mesmo escutando o discurso do cavaleiro, seu rosto não era diferente de uma pessoa escutando o som dos pássaros cantarem.
— E eu certamente não esqueci o que eu vi você fazer com meus companheiros na planície dos espetos! Você faz ideia de quantas noites sem dormir eu fiquei depois de sobreviver a aquilo?
A espada em suas mãos tremeu. Subitamente ele parou de falar e olhou para Kaito. Sua armadura estalou enquanto ele falava com Kaito ao mesmo tempo com confusão e simpatia.
— Porque você permanece ao lado dessa monstruosidade? Eu ouvi que Elisabeth estava a procura de um servo, mas se ela estiver lhe prendendo contra sua vontade, você pode vir comigo e ser aceita como refugiado.
Kaito se virou para Elisabeth. Ela cruzou seus braços e permaneceu em silêncio.
É verdade que Kaito foi trazido de volta à vida contra sua vontade e ainda forçado a servi-la. Ele ainda presenciou sua crueldade. De fato, ele não queria nada além de viver em paz nesse novo mundo. Agora era sua chance de fugir. Mas quando estava prestes a dar o primeiro passo, Kaito parou.
— Vamos, se apresse.
— Sua oferta parece um sonho para mim, mas posso perguntar uma coisa antes?
— O que é?
— Porque você me olha com esses olhos de alguém que encontrou sua próxima refeição?
Após esta pergunta, um inconfortável silêncio se abateu sobre eles. Os homens se viraram para o cavaleiro. Alguns pareciam preocupados, mas ele não disse nada. Olhando diretamente para o cavaleiro, Kaito continuou:
— Quando eu ainda estava vivo eu conheci vários homens que estariam dispostos a surrar uma criança por um prato de comida. Esse seu olhar não é diferente de nenhum deles.
Ele não obteve resposta, mas ao seu lado, Elisabeth começava a tremer até quebrar em uma risada. Ela parecia verdadeiramente bizarra, com seu corpo se retorcendo enquanto abraçava seu estômago em um claro sinal de euforia.
— É claro, é claro. Isso faz todo o sentido. Ah, mas eu não esperava que você fosse um membro do corpo de cavaleiros. Isso é hilário. Me diga: Você me permite uma pergunta, meu orgulhoso senhor?
Sua risada era doce. Alguns até diriam inocente. Seus olhos carmesins brilhavam enquanto ela falava com uma voz suave e gentil.
— Eu chacinei 500 homens na planície das estacas. Eu os espalhei, aniquilei e exterminei e certamente eu não me lembro de ter deixado nenhum escapar.
Seu sorriso desapareceu. Seus olhos estavam cheios de desprezo e sua resposta veio em um tom frio como o gelo.
— Então, porque você continua vivo?
Naquele momento as cabeças dos aldeões foram decepadas. Elas caíram no chão todas ainda de bocas abertas com choque. Um enxame de moscas saiu de um buraco em suas nucas. As moscas começaram a juntar os corpos, então elas roeram a carne, deixando a pele deles envolta de uma substância e assim fazendo uma miniatura da criatura que Kaito havia visto no castelo.
Kaito tomou distância, enquanto aquele bizarrice lhe retirava o fôlego. Ao mesmo tempo, o corpo do cavaleiro foi envolto por chamas cor de safira. A pela do cavalo empalideceu diante da labareda azulada e seu cavaleiro aumentou de tamanho. Em ordem para acomodar seu tamanho desproporcional, a armadura inchou como um balão. Um longo cabelo e barba grisalhos saíram pelas frestas. O cavaleiro envelheceu de uma maneira horrenda.
Diante do imponente cavaleiro demoníaco, sua fala continuava sem qualquer traço de medo.
— Eu não sei se você estava tentando baixar minha guarda ou simplesmente comer meu servo bem na frente de meus olhos, mas de qualquer jeito você é um tolo. Se você queria se transformar deveria tê-lo feito desde o começo e nos poupado dessa farsa infantil. Ter sobrevivido a planície das estacas e ter vendido sua alma ao demônio parece que não lhe ensinou nada.
Elisabeth deu um longo suspiro e acrescentou com satisfação:
— Mas talvez seja por isso que você falhou em se fundir logo com o demônio mais fraco de todos, o Cavaleiro.
O Cavaleiro soltou um furioso rugido. Seu cavalo pálido saltou rapidamente em direção a Elisabeth, muito mais rápido do que seu lacaio sem pele havia feito. Fogo e raios rodeavam o Cavaleiro, então ele segurou um dos raios e o transformou em um gigantesca lança.
Elisabeth se quer se mexeu e a lança a atravessou.
Kaito abafou seu grito. A arma vibrou quando perfurou seu peito, com seu sangue escorrendo até o chão. O Cavaleiro arrancou a lança, fazendo Elisabeth cair trêmula.
Uma recordação passou pela mente de Kaito.
Eram suas memórias de quando era espancado até cair, como se fosse lixo.
— Elisabe...
Kaito correu até ela, mas parou logo em seguida. Ela estava rindo, contorcendo seu estômago ainda sentada em uma poça feita com seu próprio sangue, como se tivesse acontecido algo tão engraçado que ela não conseguisse se controlar.
— Heh-heh,ha-ha, ha-ha-ha-ha-ha-ha...
Ela retorceu seu rosto em dor e se colocou de pé. Kaito podia ver claramente através do buraco em seu peito. Suas entranhas estavam saindo pela ferida, mas ela simplesmente as amarrou em seu braço e terminou de arrancá-las. Com seu sangue escorrendo como um rio, ela jogou suas tripas fora.
"Entendo...Mesmo um dano desta magnitude não é mais que uma coceira. Agora quero que preste atenção. É assim que a verdadeira agonia é.
Elisabeth levantou uma das mãos para cima. Uma grande nuvem de trevas e flores escarlates rodou a sua volta, então suas feridas, assim como suas roupas, voltaram ao normal. Ela pegou algo de dentro da nuvem negra e escarlate.
"Alegre-se, seu tolo. Eu irei empunhar esta lâmina para ti."
Ela empunhou uma longa espada. Sua lâmina era vermelha-sangue e ela reluzia sinistramente.
— Espada Executora de Frankenthal!
Ela pronunciou seu nome, com as runas entalhadas brilhando como vivas. Quando a luz chegou ao rosto de Kaito, ele pôde sentir o significado das runas, que forçaram seu caminho até seu cérebro conseguir formar uma frase completa.
Você é livre para agir como quiser, mas reze para que Deus seja sua salvação. O início, o meio e o fim, tudo está na palma de sua mão
— Venha. Vamos aproveitar o nosso tempo ao máximo!
Elisabeth cortou o vento com sua espada, como se estivesse decepando os braços de seus inimigos. Correntes de prata surgiram do ar e se misturaram com seus ataques. As correntes se enrolaram nos braços do Cavaleiro, arrancando-o de seu cavalo. Ele esperneou, mas era incapaz de resistir. Um momento depois, ele estalou seus dedos e outra besta surgiu atrás de Elisabeth. Sem se virar, ela balançou sua espada novamente
Mais correntes surgiram e prenderam a basta com firmeza. Ouviu-se o som da carne sendo torcida e despedaçada. As correntes torceram, formando a forma de um cavalo, daí elas se enrolaram no cavalo do Cavaleiro, atuando como um par de rédeas.
Elisabeth levantou sua lâmina para os céus, fazendo com que mais correntes se enrolassem em torno do Cavaleiro. Quando ficaram prontas, cada braço, assim como cada perna estava ligada a um cavalo, incluindo seu próprio. Ele tentou chamar por ele, embora tudo tenha sido em vão.
— Agora...Vamos ver se você gosta de ser dividido.
Com a espada balançando de novo, os cavalos partiram em conjunto.
Os membros do cavaleiros se esticaram, com suas juntas fazendo barulhos enquanto se deslocavam. Sua pele se esticou ao limite e começou a rasgar. Sangue escorreu pelas frestas de sua armadura. O Cavaleiro soltou um grito de dor e ódio.
— Elisabeth!!!
Sua voz transbordou de agonia e fúria.
Kaito se aproximou de Elisabeth e se engasgou. Os olhos debaixo do capacete eram humanos mais uma vez. Eles estavam diferentes de quando estavam focados em Kaito e eram do mais puro azul. Ele virou seu rosto para Elisabeth.
O contratante do Cavaleiro era bastante novo. Olhando para os olhos nobres daquele homem, Elisabeth murmurou com ternura.
— Um sobrevivente da planície das estacas? Deve ter sido doloroso. Eu entendo que me deteste.
— Elisa...Elisabeth!!!
"...Minhas desculpas, meu bom senhor, mas os gritos de um demônio são tão desconfortáveis quanto os de um porco."
Ela deu um sorriso venenoso. O Cavaleiro deu um grito rico em maldade e sedento por sangue.
— Elisabeth!!!
No instante que se seguiu, ouviu-se apenas o som de carne sendo arrancada e os membros do cavaleiro foram arrancados de seu tronco. Os apêndices foram arrastados pelas ruas, ainda amarrados aos cavalos. O corte foi até seu abdômen, fazendo seus órgãos caírem como uma cascata. Debaixo de seu capacete, o Cavaleiro vomitou sangue e mais sangue, antes de dar seu último suspiro. Seu corpo então se incendiou com fogos azuis.
— Vamos voltar para casa. Aquele seu purin foi delicioso, mas não é muito nutritivo. Estou faminta.
Sua espada se transformou em pétalas carmesins e ela seguiu adiante. Kaito não conseguia fazer outra coisa se não observar. Ele pensou na cena que se sucedeu logo em seguida à sua invocação e na acusação feita pelo Cavaleiro. Se ele focasse muito nisso, acabava sentindo somente dor, ainda sim ele precisava saber.
— Elisabeth. Tudo o que ele disse é verdade? Você torturou e matou todos os seus súditos?
— Sim. É verdade. Ele não prestou falso testemunho nem teve a ideia errada. Entenda quem é que você está servindo. Eu sou a Princess da Tortura, Elisabeth Le Fanu. Eu causei mais dor e sofrimento que qualquer outro que conheci. Eu fui presa pela Igreja e agora fui encarregada de exterminar os 13 demônios.
Ela respondeu sem um pingo de hesitação. Sua personalidade é grosseira e insensata, talvez até demais. Ao relembrar seu rosto meigo quando ela comeu o purin, Kaito se sentiu quase traído. Ela é alguém que machuca as pessoas, alguém que tira dos outros e ele não fez questão de esconder o descontentamento em seu rosto. Então Elisabeth prosseguiu com sua declaração de culpa de uma maneira totalmente inesperada.
— E quando eu matar todos eles, eu também serei posta na estaca.
Sua afirmação foi convicta. Os olhos de Kaito abriram. Elisabeth olhou diretamente para ele, com seus olhos carmesins claros como rubis. Seu semblante calmo não deu sinais dela estar mentindo.
Uma frase ecoou na mente de Kaito.
"Até o dia de sua morte, tente pelo menos fazer algo de bom"
Então era isso. Kaito permaneceu em silêncio, perplexo, sem saber como reagir a esta revelação. Elisabeth deu de ombros, se virou e foi para o círculo de teleporte.
— Quando retornarmos, de um jeito no jantar. Se você consegue fazer doces daquele calibre, eu tenho certeza que pode fazer uma refeição decente. Se você falhar em fazer algo comestível, irei lhe torturar por afogamento.”
Kaito a seguiu, mas parou por um momento para olhar para trás.
A cena pintada diante dele era sem sombra de dúvidas infernal. Um grito distante ecoou e o curral colapsou. As chamas ficaram ainda mais fortes. Pensando na forma bizarra do Cavaleiro, ele murmurou para si mesmo.
— ...Então restam 12, não é?
Kaito parou ao lado de Elisabeth. Ela estalou seus saltos.
Enquanto os 2 desapareciam, o fogo azul que queimava o Cavaleiro se apagou e suas cinzas foram levadas pelo vento.
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